#3 - Judicialização das tensões entre os bancos tradicionais e as fintechs    

30/11/2020

Não é novidade que os serviços bancários têm passado por profundas transformações, impulsionadas, em grande medida, pela inclusão digital da população e pela inovação no mercado financeiro. O contraste entre a evolução tecnológica e o sistema financeiro tradicional tem, a cada dia mais, acirrado os conflitos entre as chamadas fintechsstartups criadoras de inovações na área de serviços financeiros, com processos baseados em tecnologia, cujo principal produto é a oferta de crédito – e os bancos tradicionais.[1]

As fintechs ocupam espaços antes não explorados pelos grandes bancos, os quais, por sua vez, já se associam a algumas daquelas. É inegável que esses novos agentes vieram para se instalar e permanecer no setor financeiro.[2] Esse tensionamento exige que o legislador e as autoridades reguladoras tenham um olhar voltado às especificidades trazidas pelos novos negócios em busca da definição de uma política que regulamente adequadamente o setor,[3] sem, contudo, malferir princípios da ordem econômica, como a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170, “caput”, IV, § único, da CF).[4]

A livre iniciativa, princípio básico do liberalismo econômico,[5] “tem uma conotação normativa positivada (liberdade a qualquer pessoa) e um viés negativo (imposição da não-intervenção estatal)”,[6] ou seja,  projeta a liberdade individual no plano da economia, assegurada a livre escolha das profissões e das atividades econômicas e a utilização dos meios mais apropriados à consecução dos fins desejados. A livre concorrência, por sua vez, “é algo que se agrega à livre iniciativa, e que consiste na situação em que se encontram os diversos agentes produtores de estarem dispostos à concorrência de seus rivais.”[7] Para garanti-los, estabelece a Constituição, no art. 173, § 4º, que “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

O embate gerado pela criação/exploração de novas tecnologias já foi objeto de análise pelo STF no julgamento do RE 1.054.110/SP, no qual foi prestigiada a inovação tecnológica e se reprimiu a reserva de mercado, ainda que implementada por meio de lei. O Tribunal assentou que “a possibilidade de intervenção do Estado na ordem econômica para preservar o mercado concorrencial e proteger o consumidor não pode contrariar ou esvaziar a livre iniciativa, a ponto de afetar seus elementos essenciais”.[8] E como outro indicativo dessas transformações tecnológicas que interferem diretamente na economia e no Direito, o STJ reconheceu que o contrato eletrônico com assinatura digital é título executivo válido para ser executado.[9]

Muito embora algumas fintechs atuem de forma mais estruturada e independente dos bancos tradicionais – algumas até como bancos múltiplos –, para outras, a operacionalização de novos serviços oferecidos aos consumidores exige o estabelecimento de relações contratuais com os bancos. Assim, v.g., para a viabilização de operações de crédito e débito para seus clientes,[10] são celebrados contratos de abertura de conta corrente entre bancos e fintechs. Segundo se noticia, alguns desses contratos são rescindidos por iniciativa dos bancos tradicionais, como já ocorreu, por exemplo, com empresas que comercializam moedas virtuais (criptomoedas).[11]

De modo geral, as decisões do Judiciário paulista se inclinam para coibir o cancelamento unilateral e injustificado de conta corrente ao argumento da caracterização de abuso de direito (art. 187, do Código Civil). Sem embargo do entendimento de que os bancos não são obrigados a contratar com qualquer pessoa física ou jurídica, têm-se exigido, como pressuposto de legítimo cancelamento unilateral, que haja a exposição clara e objetiva dos motivos que o justificaram (v.g., origem ilícita ou suspeita dos valores depositados ou irregularidade da atividade).

Por outro lado, ao tratar especificamente da exploração de moedas virtuais – e sem discutir o aspecto concorrencial da questão –, precedente do STJ consignou que o “encerramento do contrato de conta-corrente, como corolário da autonomia privada, consiste em um direito subjetivo exercitável por qualquer das partes contratantes, desde que observada a prévia e regular notificação”, sendo legítima, “sob o aspecto institucional, a recusa da instituição financeira recorrida em manter o contrato de conta-corrente, utilizado como insumo, no desenvolvimento da atividade empresarial, desenvolvida pela recorrente, de intermediação de compra e venda de moeda virtual, a qual não conta com nenhuma regulação do Conselho Monetário Nacional (em tese, porque não possuiriam vinculação com os valores mobiliários, cuja disciplina é dada pela Lei n. 6.385/1976)”.[12]

É digno de nota que essas novas plataformas financeiras têm requerido a aplicação do arcabouço protetivo do Código de Defesa do Consumidor – como ocorreu no precedente acima citado –, notadamente para usufruírem das regras de inversão do ônus probatório e da disciplina atinente às práticas comerciais abusivas.

Todavia, pela letra da lei, consumidor é apenas e tão somente a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º), havendo entendimento do  STJ (REsp 1.195.642/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi) no sentido de que o diploma consumerista não deve ser aplicado quando o produto ou serviço for contratado para a implementação de atividade econômica, já que, nesse caso, fica afastada a existência do destinatário final para a configuração da relação de consumo.  Especificamente sobre esse tema: “a regra do art. 39, IX, do CDC não se aplica às instituições financeiras, afastando-se a obrigatoriedade de manutenção do contrato de conta-corrente (precedentes).”.[13]

Nos litígios entre as fintechs e os bancos, a discussão gira exatamente em torno da presença, ou não, do requisito do exaurimento da função econômica do serviço, e de alguma hipossuficiência técnica, jurídica ou econômica que justifique a aplicação do regime protetivo do CDC.

Por fim, registre-se que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 487/2013 – Novo Código Comercial – que estabelece, em seus artigos 403 e 404, a não aplicação das normas do CDC às relações empresariais, o que se alinha ao entendimento do STJ acima destacado.

 

Notas e Referências

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

LANGLEY, Paul; LEYSHON, Andrew. The Platform Political Economy of FinTech: Reintermediation, Consolidation and Capitalisation. New Political Economy, p. 1-13, 2020. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13563467.2020.1766432>. Acesso em 10.10.2020.

MERLONE, Nicholas. Direito fundamental econômico das fintechs: desenvolvimento brasileiro. Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, v. 111, n. 1. Brasília, 2019.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006.

VERÍSSIMO, Levi Borges de Oliveira. Regulação econômica de fintechs de crédito: perspectivas e desafios para abordagem regulatória. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v. 13, n. 1. Brasília: BCB, 2019

[1] O termo “fintech”, uma contração de “financial technology”, surgiu no início dos anos de 1990 (LANGLEY, Paul; LEYSHON, Andrew. The Platform Political Economy of FinTech: Reintermediation, Consolidation and Capitalisation. New Political Economy, p. 1-13, 2020. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13563467.2020.1766432>. Acesso em 10.10.2020.

[2] Sobre o tema: MERLONE, Nicholas. Direito fundamental econômico das fintechs: desenvolvimento brasileiro. Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, v. 111, n. 1. Brasília, 2019, passim.

[3] VERÍSSIMO, Levi Borges de Oliveira. Regulação econômica de fintechs de crédito: perspectivas e desafios para abordagem regulatória. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v. 13, n. 1. Brasília: BCB, 2019, passim.

[4] Há regulamentação do Banco Central a respeito das relações jurídicas que envolvem as fintechs (Resoluções 4.656 e 4.657).

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 43. ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 808.

[6] TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 83.

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 459.

[8] STF, Pleno, RE 1.054.110/SP, rel. Min. Roberto Barroso, j, 09.05.2019, p. 06.09.2019.

[9] STJ, 3ª Turma, REsp 1.495.920/DF, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 15.05.2018, p. 07.06.2018.

[10] É o que se denomina mercado C2C (fintechs que atuam na intermediação de transações entre particulares).

[11] https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2018/09/646859-bancos-cancelam-contas-de-corretoras-de-criptomoedas.html

[12] STJ, 3ª Turma, REsp 1.696.214/SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 09.08.2018, p. 16.08.2019

[13] STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1.473.795/RJ, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 29.06.2020, p. 01.07.2020.

 

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