3 anos de Operação Lava Jato, Julgamento das Bruxas de Salem e a Histeria Coletiva

21/03/2017

Por Ian Martin Vargas – 21/03/2017

Anno Domini 1692. Cidade de Salem, Colônia Inglesa de Massachusetts, atual Estados Unidos da América. Uma comunidade puritana cuja população era restritamente guiada pelos dogmas, leis divinas e costumes da igreja. O liame entre a religião e a moral local era inextrincável. Eis que o reverendo Samuel Parris testemunha sua filha Bette Parris, de 9 anos, e sua sobrinha Abigail Willians, de 11 anos, dançando e entoado canções com a escrava que, cuidava das mesmas, Tituba. Após os episódios relata-se que as crianças apresentaram febres e contorções estranhas e passaram a observar espectros e testemunhar atos malignos sendo praticados por membros da comunidade local. Instalou-se na pacata Salem e, posteriormente em Boston, um lendário julgamento com vários magistrados e que corroborou com a prisão e investigação de mais de 150 pessoas e morte de cerca de 20, em sua maioria mulheres, sob acusação de bruxaria e satanismo. Ora, no que pese os fatos terem se passado já na Idade Moderna, na fase de colonização das Américas, os laços com a Idade Média e domínio da moral religiosa não haviam sido desatados. Pelo contrário: a forte influência da religião e religiosidade da comunidade em que se passou o julgamento favoreceu uma vasta gama de acusações feitas pelas crianças Bette e Abigail contra os mais diversos membros daquela sociedade. Grávidas, idosos, outras crianças e indivíduos impopulares de hábitos não ortodoxos e pouca aderência a religião eram acusados de manter pacto com o diabo, realizarem magias e eram apontados como responsáveis pelas doenças e mortes da cidade. O processo, kafkiano por si só, foi marcado pela inexistência da defesa, testemunhos extremamente frágeis feitos por crianças, denúncias que consistiam em elucubrações fantasiosas, assacadilhas e imprecações públicas, atuação dos magistrados que mais agiam como promotores em seus atos, e pelas injustas e inconcebíveis penas capitais e prisões irracionais de pessoas que, tiveram as famílias posteriormente indenizadas e viraram personagens épicos da literatura nas mãos de Arthur Miller, e no cinema até os dias atuais. Aquelas pessoas enforcadas e presas foram vítimas de um sistema inquisitorial religioso e moral que jazia amparado no Poder Judiciário do Common Law Inglês. O julgamento entrou para a história como um episódio de histeria coletiva conduzido por membros do judiciário sedentos por atender anseios morais e crentes em um conceito deturpado e parcial de justiça. Dito isso se faz necessário trazer o exemplo de Salem para os dias hodiernos e para a nossa realidade pátria.

Essa semana a Operação Lava Jato completa 3 anos desde que deflagrada pela Polícia Federal e tendo sido, desde então, conduzida pela 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, Paraná, República Federativa do Brasil. A operação, desde seu prólogo teve o intuito de efetuar persecução criminal referentes a Petrobrás. Um processo de grande complexidade que envolve agentes públicos e privados, vide políticos, empresários, diretores da referida empresa. Nesse sentido, com o tempo foi observar enorme adesão popular pela Operação e pelo magistrado responsável, o Juiz Federal Sérgio Moro. Acompanhando decisões e atos tanto do juiz quanto dos procuradores, cujo resumo foi a criação do chamado monomito do herói, conforme escreveu Joseph Campbell[1]. Ao ver a idolatria ao juiz Moro, lembramos da frase do grande dramaturgo Bertolt Brecht: “Infeliz da nação que precisa de heróis”. Foi assim que vivenciamos shows de pirotecnia jurídico-moral na condução do processo pelos aclamados protagonistas do processo.

Inúmeros foram os atos do processo ao longo dos três anos que demonstraram, de modo cristalino, a finalidade de justiça moral da Lava Jato, ainda que isso venha a ferir direitos e garantias fundamentais da Constituição, lei penal e processual penal. Eis alguns exemplos:

1. O vício na aplicação desenfreada do instituto da delação premiada, prevista na Lei 12. 850 de 2013, já tão criticada na doutrina por ser realizada como alternativa ao suplício e mossas das prisões preventivas, por atenuar privilegiadamente a conduta de criminosos que denunciam seus colegas de organização criminosa, incentivando indivíduos a praticarem crime e atuarem de modo a resguardar meios para eventual delação e pela falta de sigilo dos acordos homologados e outros sendo realizados.

2. Condução coercitiva ilegal do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, intensamente explorada midiaticamente, ato eivado de nítida intenção eleitoral e moral e que possuía ululante falta embasamento.

3. Liberação para mídia nacional de áudio da então presidente da República, Dilma Rousseff e Lula nas vésperas da posse deste como Ministro da Casa Civil, o que, além de carecer de competência jurisdicional para tal ato de interceptação telefônica, colocou em risco toda a segurança nacional uma vez que se atestou para o resto do mundo a debilidade das instituições nacionais em proteger o cargo do chefe do executivo, a segurança cibernética e telefônica. Em razão de tal ato ilegítimo, cogitou-se em artigos acadêmicos até em enquadrar a conduta do ínclito magistrado na arcaica Lei de Segurança Nacional em decorrência de tal ilegalidade.

4. Decretação da prisão preventiva do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, fundamentada na mesma decisão de afastamento do cargo tomada pelo Supremo Tribunal Federal em resposta ao pedido da Procuradoria-Geral da União. Fato este que tornou-se infundado após o parlamentar ter o mandato cassado pelo plenário da Câmara. O enquadramento simplório e insuficiente do vago “risco a ordem pública” do artigo 312 do Código Processual Penal, demonstrou-se genérico, opaco e ilógico, uma vez que o indivíduo não era mais presidente do parlamento e sequer era deputado para se valer da condição afim de acobertar provas e praticar outros crimes como agente público. Decisão moral sem alicerce jurídico.

5. Oferecimento da denúncia de Lula, após apresentação pelo Procurador Deltan Dallagnol em PowerPoint dentro de suntuoso hotel e com acompanhamento jornalístico nacional, atendendo anseio de milhares de manifestantes pelo país e cuja convicção dos membros do Ministério Público Federal, se sobrepôs às provas ou indícios mínimos delas.

6. O aparecimento do juiz Moro em eventos partidários, o que dispensa comentários acerca da fundamental e preciosa imparcialidade do magistrado, como aplicador do garantismo constitucional e lei penal.

7. A teratológica e draconiana decisão de reconhecimento da extinção de punibilidade a ex-primeira dama Marisa Letícia, que, entretanto não reconheceu a absolvição sumária da mesma, o que contraria o próprio artigo 397, IV do Código de Processo Penal.

8. Recentes gravações de audiências marcadas por certo desequilíbrio, irritabilidade e desrespeito do eminente juiz Moro para com a figura dos advogados. Pedidos do magistrado para que um defensor faça concurso para juiz para poder conduzir a audiência, uma vez que o advogado contestou o pedido feito para que uma testemunha concedesse sua opinião evocando a ilegalidade do ato e a necessidade que a testemunha relatasse fatos.

O moralismo que caracteriza a Lava Jato, a heroicização midiática do juiz responsável e dos membros do Ministério Público Federal causou, nas nuances institucionais e no comportamento dos indivíduos, a mesma histeria coletiva que ocorreu em Salem. Na mesma ótica, as acusações verborrágicas, se alastraram ao longo da operação pelas redes sociais, pelas ruas e nos diálogos entre os indivíduos de nossa sociedade. Instigou-se ainda mais o ódio, exclusão e a criação de opiniões avessas ao próprio Estado Democrático Social de Direito. Os diálogos extremistas e ofensivos que vem crescendo com o andamento do processo de modo que chegam a beirar as imputações das bruxas supracitadas. Os defensores da Constituição e da lei processual penal foram taxados injustificadamente de partidários de ideologia política. Uma vez que não se podem eliminar as opiniões morais, a Lava Jato colaborou para que se extirpassem quaisquer possibilidades de um diálogo entre divergências ideológicas, como aquele defendido pelo jurista americano Michael Sandel[2] para que se alcance uma sociedade justa com uma cidadania e política democrática mais ampla. Este diálogo é defendido, em um contexto global, por Todorov[3], para que se evite o choque entre civilizações e culturas. Contudo nota-se que o status quo nacional é outro. O ativismo judicial, tão brilhantemente combatido diariamente por ilustres doutrinadores como Lênio Streck, trazem, cada vez mais indícios de expansão de seus tentáculos de autoritarismo e de sua consolidação.

Ao se analisar a atuação do Poder Judiciário nos últimos anos, contemplou-se um fenômeno já chamado por muitos de morismo. Esse fenômeno se caracteriza principalmente por manifestações midiáticas anômalas de investigações criminais. Tal fato afeta diretamente o Estado Democrático de Direito que não caminha para o retorno às ditaduras de outrora ancoradas na lei mas separadas da moral de modo kelseniano, mas sim para um Estado de Exceção, esquadrinhado por Agamben[4] e que seria um instrumento de combate a uma necessidade provocada pela erosão dos poderes do legislativo, dando lugar ao ativismo da magistratura. Assim segundo este célebre filósofo italiano, o Estado de Exceção demonstra uma linha tênue entre democracia e totalitarismo, consistindo em uma situação que apresenta um conteúdo de aparente legalidade.

Indubitavelmente o Poder Judiciário é o garantidor da aplicação da Constituição de nosso Estado de Direitos Humanos Universais. Assim expõe o brilhante e sapiente Cândido Furtado Maia Neto[5]:

“no Estado Democrático de Direito a última palavra é e deve sempre ser do Poder Judiciário; do contrário a sociedade estará em grande risco, no tocante a segurança cidadã e jurídica, onde as garantias fundamentais individuais” 

Porém a quem recorrer se o próprio Judiciário descumpre a lei e menospreza a Constituição Federal? Melancolicamente a Operação Lava Jato colaborou para acentuar os conflitos entres os indivíduos de nossa sociedade assim como serviu de catalisador para um decisionismo sem precedentes que torna o Judiciário protagonista de uma tendência jurídica nacional para que se instaure um Estado de Exceção. Do mesmo modo, a operação atende a sociedade do espetáculo trazida por Guy Debord[6] na década de 60 com suas respostas morais e pelo tautismo midiático. Mídia esta que conduz grande parte da população, sem encorajar o senso crítico e formação de opinião jurídica, a um mesmo estado controle psíquico e comportamental que viviam os membros da sociedade do romance 1984 de George Orwell[7]. Contudo é necessário frisar que é evidente que a Operação Lava Jato é extremamente importante para a sociedade brasileira. Uma eficiente persecução penal em relação à políticos de alto escalão, empresários influentes e agentes públicos que contam com a estrutura da máquina estatal para execução de crimes abomináveis e que juntos formam uma junção de cleptocracia com plutocracia, ou seja, um governo da corrupção e das riquezas respectivamente, é fundamental. Porém é incabível que em um processo tão importante, sejam flexibilizados direitos e garantias constitucionais e textos processuais penais, atos estes que contam com amplo apoio de monopólios de comunicação, que não os criticam como combatem duramente as irregularidades e crimes dos poderes executivo e legislativo. É crucial que o processo abandone a apatia pela Constituição sob pena de imitarmos os colonos ingleses em uma histeria desordenada sem senso crítico e que dá fundamento a um totalitarismo judicial que mitiga direitos e põe em risco as liberdades democráticas para atender, tantas vezes de maneira ilegal e antiética, anseios morais.


Notas e Referências:

[1] CAMPBELL, Joseph. A Jornada do Herói. São Paulo: Ágora, 2003.

[2] SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Record, 2011.

[3] TODOROV, Tzvetan. São Paulo. Vozes, Petrópolis 2010

[4] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2010.

[5] http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/13030-13031-1-PB.pdf

[6] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Contraponto: Rio de Janeiro, 1997.

[7] ORWELL, George. 1984. Companhia das Letras: São Paulo, 2009.


ian-martin-vargas. . Ian Martin Vargas é Graduando em Direito pelo Centro Universitário Dinâmica Cataratas. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Thomas Szasz // Foto de: Peter K. Levy // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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