Por Thula Pires e Felipe da Silva Freitas – 13/03/2017
O ano de 2017 começou em meio a muitos escândalos, vamos nos concentrar nos episódios envolvendo o sistema carcerário. Mais de uma centena de corpos em cárcere foram exterminados e no dia 04 de janeiro a Human Rights Watch se manifestou no sentido de que o Brasil deveria “retomar o controle do sistema prisional”[1]. Tomamos a fala da referida ONG como ponto de partida, não apenas porque o apelo a organizações internacionais costuma ter primazia em países sob o jugo da colonialidade, mas também porque se costuma atribuir a essas avaliações o caráter de observações comprometidas com a defesa dos direitos humanos.
Discordamos veementemente da afirmação de que o país precisa “retomar o controle do sistema prisional”. O que nós precisamos é romper com um sistema penal de base escravista, responsável em grande medida pelas consequências expostas pelos corpos empilhados, majoritariamente negros, como aqueles mantidos mortos em vida no cárcere. As medidas anunciadas pelo governo federal por ocasião dos massacres no sistema carcerário reeditaram iniciativas de outros governos e apresentaram invencionices punitivistas, que em nada se relacionam com o enfrentamento ao grave problema do sistema penitenciário brasileiro.
O Plano Nacional de Segurança Pública, anunciado em 05 de fevereiro de 2017 pelo então Ministro da Justiça Alexandre de Moraes[2], não passou de uma operação de marketing incapaz de acessar os reais componentes da crise. Pelo contrário, seus termos agravam problemas com os quais já vimos convivendo há anos no Brasil como o hiperencarceramento, o excesso de presos provisórios, a tragédia da guerra às drogas, e, a total violação de direitos dentro das unidades prisionais.
A despeito de um jogo de cena retórico, as propostas apontam em sentido contrário às reais necessidades do sistema. Existem demandas reais por diminuição do número de pessoas presas, revisão da política de drogas e redefinição do modelo de gestão prisional com garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade. Em sentido oposto, o Plano anunciado pelo governo ilegítimo aponta para o fortalecimento das estruturas policiais – voltadas exclusivamente para a esfera da repressão penal; para criação de novos presídios federais; para o afastamento da gestão prisional por órgãos públicos; para o fortalecimento da Força Nacional e para uma série de medidas superficiais como mutirões carcerários e forças tarefas das Defensorias e do Judiciário.
Nada de estrutural para diminuir o número de pessoas presas indevidamente no país foi apresentado. As saídas possíveis para o quadro de horror que hoje se verifica nas prisões passam por uma séria e radical inversão de rota em termos de níveis de encarceramento e políticas de segurança. É preciso desmistificar a atuação do sistema de justiça, visibilizar o racismo manifestado nos enunciados normativos, nos respectivos entendimentos jurisprudenciais e na condução dos procedimentos de aplicação da norma penal pelos órgãos de criminalização secundária. Fundamental ainda que se construa novos modelos institucionais na área de justiça criminal e segurança pública, implicando cada estrutura e agente público com os privilégios da branquitude, do patriarcado, da heteronormatividade compulsória, bem como dos decorrentes das hierarquias de classe, religião, idade e deficiência.
Nas leituras críticas que tem tomado espaço na mídia a partir dos massacres de janeiro importantes apontamentos têm sido feitos na perspectiva de indicar o desacerto das medidas adotadas pelo governo federal, da necessidade de se ouvir mais os especialistas na área e de que é absolutamente inadequado ampliar o controle penal para casos em que o grande desafio está justamente na proteção de direitos e não na relativização de garantias constitucionalmente conquistadas. A discussão sobre direitos humanos e sobre o sistema de justiça penal precisa avançar no sentido de acessar “as vidas dos que são considerados menos que humanos, feitos invisíveis e propensos desproporcionalmente aos efeitos históricos e contemporâneos das políticas de estado, bem como de sua negligência social” (VARGAS, 2010, p. 33).
A lacuna da maioria das avaliações que circulam – sejam em meios mais progressistas sejam nos discursos mais conservadores – diz respeito ao fato de pouco se indagar sobre o porquê de tanta violência não registar em nossa gramática social. Porquê pilhas de corpos se acumulam – dentro e fora das prisões - e este fato não é capaz de comover e nem indignar o país? As leituras postas em debate sobre a questão prisional têm tido pouca força para pautar a raça, o gênero e a identidade sexual destes corpos matáveis. Quando muito constata-se o perfil e passa-se ao próximo ponto da pauta.
A não racialização da discussão a despolitiza e esteriliza, na medida em que não se põe em conta porque os problemas apontados (hiperencarceramento, tortura, guerra as drogas etc) acontecem especificamente contra um determinado grupo e porque esta ocorrência é tida não como um episódio pontual, mas, como a própria lógica de funcionamento do sistema. Torturas, execuções, violações de direitos de toda ordem são parte da própria gênese de operacionalização das prisões no país. A pergunta central não é só como estas operações acontecem, mas, porque estas tragédias são toleradas, estimuladas e esquecidas.
A resposta para estas indagações é complexa e passa essencialmente por dois grandes desafios teóricos e políticos. Por um lado, é necessário compreender que a função da prisão no Brasil está diretamente associada ao controle dos corpos de pessoas negras e à atualização política da escravidão como experiência social contemporânea. Por outro lado, a resposta às indagações relativas à tragédia prisional brasileira passa por debater como construiu-se socialmente no Brasil uma autorização pública para que pessoas negras possam ser violentadas, torturadas e mortas sem que isso desencadeie processos de mobilização ou indignação social.
O uso das prisões como instâncias de contenção de corpos indesejáveis e a privatização da execução penal datam no Brasil do período colonial (BATISTA, 2006). O modelo foi mantido em grande medida pela fase imperial e perversamente reeditado durante as múltiplas experiências republicanas. Em todos esses momentos, “a clientela do sistema penal vai sendo regularmente construída de maneira tão homogênea e harmônica que de nada poderíamos suspeitar. Sempre os mesmos, sempre pelos mesmos motivos, os criminalizados parecem representar a parcela da humanidade que não cabe no mundo”. (FLAUZINA, 2008, p. 33).
É a indiferença em relação aos milhares de corpos negros que se amontoam nas prisões brasileiras que cria o clima, o cenário e as condições para que espetáculos de horror ocorram no sistema carcerário e, mesmo assim, não tenham força para mudar os termos do debate. É a indiferença ante os corpos que tombam diariamente que constrói o lastro para que não ocorra um debate sério sobre justiça, crime e segurança pública no Brasil e que isso siga sendo um “não problema social”.
Como alertou Abdias Nascimento em 1978: “Na impossibilidade de apelar para consciência brasileira, acreditamos que a consciência humana não poderá mais permanecer inerte, endossando a revoltante opressão e liquidação coletiva dos afro-brasileiros [...] tanto mais eficaz quanto insidiosa, difusa e evasiva” (NASCIMENTO, 1978, p. 136). Aceitando essa provocação, acredita-se que a leitura decolonial e diaspórica do sistema de justiça penal pode produzir uma lente de análise capaz de superar as lacunas deixadas pelas leituras criminológicas críticas até então desenvolvidas.
Nesse sentido, lembramos que o próximo dia 21 de março marca o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. A data foi escolhida pela Organização das Nações Unidas a partir de outro massacre contra corpos negros, protagonizado pela violência de Estado: o massacre de Shaperville, ocorrido em 21 de março de 1960 na África do Sul. Que no próximo dia 21 de março estejamos todos comprometidos com a renovação da luta contra o escravismo e suas manifestações contemporâneas. E que possamos ir além, não apenas transformando essa luta em uma disputa cotidiana, mas evidenciando outras datas que mantenham em alerta as sociedades latino-americanas contra o genocídio de negros e indígenas.
Notas e Referências:
[1] Disponível em <https://www.hrw.org/pt/news/2017/01/04/298325>, acesso em 10 de março de 2017.
[2] Disponível em <http://www.justica.gov.br/noticias/plano-nacional-de-seguranca-preve-integracao-entre-poder-publico-e-sociedade/pnsp-06jan17.pdf>, acesso em 10 de março de 2017
BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. In Arquivos do Ministério da Justiça. Ano 51, n. 190. Brasília: Ministério da Justiça, 2006.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. Processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
VARGAS, João Costa. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. In Revista da ABPN, v. 1, n.2- jul-out. de 2010, p. 31-65.
. . Thula Pires é Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio) e professora da graduação e pós graduação na mesma instituição. . .
. . Felipe da Silva Freitas é doutorando e mestre em direito pela Universidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana.. .
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