2022: O ANO DA DEMOCRACIA E DA CONSTITUIÇÃO – PARTE 2

31/01/2022

Coluna Por Supuesto

Parte 1

É bastante preocupante que agentes públicos exorbitem suas atribuições como se esta prática isto fosse normal e previsível dentro do marco jurídico do Estado de Direito. Quebras de sigilo, depoimentos vazados ou divulgação de dados de inquéritos considerados sigilosos em redes e demais meios de comunicação, tornaram-se frequentes em detrimento da proposta de rumos traçada pela Constituição.

Quando questionados por seus atos a atitude do agente costuma resistir aos controles republicanos. Digo isto a pesar de que, certamente, o não comparecimento do presidente para prestar depoimento sobre a suposta prática de crime de violação de sigilo funcional, como resultado do INQ 4878, pelo atual entendimento do STF, não terá maiores consequências, na esfera penal.

É bom lembrar que o STF, na ADPF 395. Rel. Min. Gilmar Mendes, reafirmou a prerrogativa de recusa do implicado a depor em investigações ou ações penais contra si. O silencio não pode ser tomado como admissão de responsabilidade, e junto à não autoincriminação, constitui garantia do devido processo legal, emanada historicamente do bom e velho direito inglês. Incabível, também, qualquer tipo de condução coercitiva, que representaria uma restrição da liberdade de locomoção, e que não pode ser aplicada a pessoas por sobre as quais não existe nenhum tipo de decisão que fulmine, no caso, a presunção da sua inocência.  

Tudo isto faz parte da necessária limitação da capacidade de punir do Estado com relação a qualquer pessoa, base de um Direito para a democracia. Mas, o tema que me parece também, in paralelo, muito relevante, é como esse episódio cujo protagonista é o presidente, suscita uma reflexão sobre questões como “bom governo”, “responsabilidade do agente público”, “moralidade”, “prestação de contas”, todas questões principiológicas na seara do Direito Público ligadas à prática administrativa e á forma como deve-se conduzir o agente público, especialmente quando se trata do primeiro magistrado do Estado, dentro da forma de governo republicana, o regime político democrático e o sistema presidencialista.

As práticas de bom governo, que exigem equilíbrio e ponderação para o exercício da atividade de administrar recursos, viabilizar iniciativas e trabalhar para concretizar fins constitucionais, em todas as áreas, bem como de utilizar com responsabilidade as prerrogativas consagradas pelo ordenamento, não só fortalecem a democracia senão que também constituem instrumentos essenciais para a transparência.  

Claro que a conduta presidencial e em geral o uso das competências e formas de comunicação dos agentes estatais com a sociedade são temas que devem estar permanentemente na pauta. Porém, neste 2022 adquirem uma dimensão especial, tendo em vista se tratar de um ano de definições para países como Brasil que atravessarão processos eleitorais que desde já se mostram conturbados. É o caso da Colômbia, também em fase pré-eleitoral, e de Estados como o Chileno, que caminha no seu processo constituinte.

As Constituições latino-americanas tem sido especialmente cuidadosas com a consagração do direito fundamental ao bom governo. A Constituição boliviana de 2009 proclama no artigo 232 que a Administração Pública se rege pelos princípios de “legitimidade, legalidade, imparcialidade, publicidade, compromisso e interesse social, ética, transparência, igualdade, competência, eficiência, qualidade, “calidez”, honestidade, responsabilidade e resultados”. Chama a atenção o requisito de “calidez” que em bom português poderia ser traduzido como o da “amabilidade”, da “cordialidade” ou do “tratamento afável”, de “acolhimento” e compreensão das necessidades das pessoas.

Igualmente, a Constituição de Equador, no seu artigo 83 estabelece com clareza, dentre os deveres e responsabilidades dos nacionais:

“(...) 2. Não ser ocioso (...) 7. Promover o bem comum e antepor o interesse geral ao interesse particular conforme o bom viver; 8. Administrar com honestidade e atrelado á lei do patrimônio público e denunciar e combater os atos de corrupção”

No Brasil, a Constituição Federal, além dos conhecidos princípios orientadores da Administração Pública consignados no artigo 37, mantém uma estrutura de controle. Há possibilidades de constituir comissões parlamentares de inquérito e existem tribunais de contas auxiliando ao Legislativo.  

De outra banda, muito embora existam os institutos de democracia direta, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, expostos no artigo 14 da CF, e ainda o cidadão conte com a possibilidade de ingressar com ação popular, conforme o artigo 5º, LXXIII - aos quais deve naturalmente se prestar muita maior atenção - a gestão pública transparente e o bom governo exigem a implementação de uma democracia mais sólida. O interessante é que a Constituição de 1988 proporciona estes recursos.  

Há que se dar maior força à utilização de instrumentos como os consagrados no artigo 5°, incisos XXXIII - XXXIV, “a”, isto é, respectivamente, o direito à informação e o direito de petição, essenciais para a vigilância popular da condução dos recursos públicos. Igualmente gerar as condições para uma participação maior no planejamento municipal, como estabelecido no artigo 29, XII e no planejamento e execução da política agrícola – artigo 187; na seguridade social – artigo 194, parágrafo único, VII; na gestão da educação – artigo 206, VI; no acesso aos bens culturais – artigo 215, parágrafo 3°, IV. A Carta de 1988 outorgou visibilidade aos setores que participam no processo civilizatório nacional – artigos 215,parágrafo 1ºe, artigos 231 e 232, historica e injustamente afstados na hora de tomar decisões.

Desde logo, o bom governo exige mecanismos e órgãos de controle, além de uma cultura de respeito pelo princípio da responsabilidade do Estado, que não é apenas uma responsabilidade política senão também jurídica. Note-se que em cada campo as valorações e consequências são diferentes. A primeira se relaciona com o cumprimento de um programa de governo arquitetado sobre a base de fins previstos na Constituição. A segunda se relaciona com as competências estabelecidas no ordenamento para exercer cada ato, com as formalidades de cada um deles seja válido, com os objetivos in concreto, caso a caso.

E vale lembrar que estas responsabilidades não são apenas atribuíveis ao Executivo, mas ao “Poder Público”, é dizer, a todos aqueles que de alguma forma tenham contato com o patrimônio público ou que tenham por mandato da Constituição ou da lei o dever de cumprir com fins públicos. Importante frisar o assunto porque quando se fala em “bom governo” regularmente é feita alusão ao Executivo-governo, ou às práticas de bom governo na Administração Pública. E aquilo que constitui uma experiência importante no campo da América Latina é, precisamente, que temos que falar de todos os que exercem funções públicas.   

Bom governo é a transparência que inspira a confiança cidadã. A continua probidade que sugere que aquilo realizado ou a realizar possui interesse público e não vai dirigido a beneficiar particulares em claro favorecimento singular, exclusivo, discriminador.  

Bom governo é aquele que se comunica adequadamente e conduz no meio das crises. Que não entorpece o cumprimento das diretrizes constitucionais ou utiliza as faculdades para fraudá-las. Que não procura interpretações estapafúrdias para justificar arbitrariedades ou omissões. Um bom governo é aquele no qual seus agentes não tem como norma colocar em risco a democracia.

Um bom governo exige mudanças e continuidade. As primeiras se referem à constante procura pela eficiência, a segunda à necessidade estabelecer políticas de Estado. Alguém mencionou a Edmund Burke, que alertava no século XVIII, que “Um Estado sem condições, sem meios para modificar-se, tampouco dispunha de meios para sua conservação”.

Prestar contas é essencial. Provavelmente o presidente não vai depor, o marco jurídico penal é claro.  Mas a questão é: quando este presidente vai começar a governar ou a parar de desgovernar e descumprir a Carta de 1988? A história leva seu carro e a responsabilidade política e jurídica está ali, para quem quiser ver e examinar...por supuesto.   

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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