# 2 - A (não)estabilização da tutela antecipada: ajuste no conceito de recurso ou surgimento de um novo efeito recursal?

04/03/2019

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

É incontestável que a doutrina apresenta papel normativo. Não que seja apropriado, porém, compará-la à lei, como se juristas carregassem à tiracolo mandato popular e assim pudessem inovar e/ou corrigir, a partir das suas próprias (e variantes) visões de mundo, o direito posto.  

A chave é compreender a diferença entre texto e norma, sendo a última fruto do resultado interpretativo que dará cabo de alguma questão, em especial ao próprio conflito de interesses submetido ao Judiciário, e que deve levar em conta, como matéria-prima axial, a mensagem trazida pelo primeiro. É relevante, sobretudo, o seguinte: a legalidade oprime o intérprete, assim como as alegações de fato, os fundamentos jurídicos e os pedidos, tudo funcionando de modo conjunto para balizar o poder estatizado atuante na construção de decisões. 

Mantendo o foco na legalidade, tem-se nela e a partir dela o controle das conjecturas (amiúde desenfreadas, rebeldes e desenraizadas) oferecidas pela comunidade de intérpretes jogo de linguagem específico. É ela, em termos exatos, mecanismo obstativo de pulsões realistas, proativos ou desconstrucionistas. A observância intransigente e cuidadosa dos contornos da lei no contexto de uso pelo intelecto humano (ou seja, o atravessamento dos planos semântico e pragmático da linguagem) faz esfumaçar a tensão entre “o que é” e “o que deveria ser”, notadamente porque tal postura conservadora exige a suspensão da subjetividade (marcada por inclinações ideológicas, razões inconscientes, intuições, aversões e/ou aprovações), não raro capaz de iludir, enviesar, alucinar e, naquilo que importa mais de perto, descarrilar a interpretação do seu bom caminho. Se o caso concreto não traz determinantes pragmáticos que autorizem novos sentidos ao texto normativo, as possibilidades dos determinantes semânticos bitolam o processo interpretativo mesmo a contragosto do intérprete de ocasião[1].

Pois a despeito de a verdade judicial (=resposta adequada ao caso concreto) depender de uma construção amarrada ao sistema jurídico positivado,[2] o que se verifica hoje é o recrudescimento de uma anomalia, cujas origens talvez se expliquem pelo que já se denominou, com muita felicidade, de ditadura do relativismoé aquilo de não reconhecer coisa alguma como definitiva, propondo, como medida, o próprio eu e seus caprichos.[3] A cada dia resta mais evidenciado, infelizmente, o sucesso alcançado pelo realismo jurídico (ou melhor, sua vulgata) em terras brasileiras, fazendo emergir a embaraçosa conclusão de que, por aqui, textos legais (o mesmo vale para os bíblicos e literários) são encarados como piqueniques em dias de sol: aqueles que os redigem fornecem tão somente as palavras enquanto os intérpretes colaboram livremente com os sentidos.[4]

Superado o preâmbulo, merece atenção um problema, oriundo da (mal formulada) redação do art. 304 do CPC/2015, e que, bem entendido, provoca questionamentos sobre aspectos relacionados à técnica recursal em circunstâncias específicas. Reza o aludido dispositivo que “[a] tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.

É mínimo o esforço intelectivo despendido para que a mensagem legislativa seja apreendida. Deixando de lado os detalhes, se o réu almejar prestação jurisdicional completa, fundada em cognição exauriente, deverá desafiar, mediante recurso cabível, a decisão concessiva da tutela antecipada. Não agindo assim, operar-se-ão o novidadeiro fenômeno estabilizatório e a consequente extinção do feito.

Embora parcela considerável da doutrina insista em oferecer solução diversa, sem dúvida, mais lógica e pragmática ao menos em algumas hipóteses – já encampada, inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça[5] –, o fato é que inexistem alternativas dentro das fronteiras da regra instituída pelo devido processo legislativo, a qual, apesar de tecnicamente ruim, supera com tranquilidade o teste da constitucionalidade. Se a lei condiciona a estabilização da decisão concessiva da tutela antecipada à não interposição do respectivo recurso, não pode o intérprete, que não dispõe de licença criativa, avançar para recomendar, como caminho viável, a prática pelo réu de quaisquer outros atos que traduzam a sua vontade de dar sequência ao procedimento e obter tutela jurisdicional de mérito. Fingir-se de cego ante a nitidez do direito posto não lhe é, nem de longe, uma escolha viável, pois, do contrário, estará encampando um progressismo interpretativo que só fará avolumar, no celeiro doutrinário e jurisprudencial, o imenso rol de exemplos de superinterpretação (Umberto Eco), alimentando a velha e perniciosa confusão (antidemocrática e antirrepublicana) entre de lege ferenda e de lege lata.[6] Além dessa questão atinente aos limites semânticos do texto, Igor Raatz ainda estima que o entendimento ora rebatido reduz a estabilização a uma figura tão excepcional que ela acabaria deixando de existir e vai na contramão da tônica do CPC, no particular, que é a de prestigiar a jurisdição sem finalidade cognitiva, com prevalência da tutela sumária, mantendo intocado o paradigma da ordinariedade[7]. Em suma, a opção vazada no art. 304 é fruto de um democrático processo de deliberação legislativa e não contém inconstitucionalidade formal ou material, por isso deve ser obedecida. O resto é capricho do intérprete insatisfeito que busca fazer ruir a pretensão de autoridade do direito em face da sua particular pretensão de correção – que pode ser justa, no caso, mas nem por isso se mostra menos antidemocrática.

Atenção: não se trata de negar a importância da pretensão de correção no direito. Ninguém despreza que os seres humanos possuem concepções substantivas de justiça de modo mais ou menos consciente e informado, muitas distintas e algumas incompatíveis entre si. Ocorre que a pretensão de correção atua no processo de produção do direito levado a efeito no devido processo legislativo pelos representantes democraticamente eleitos pelo povo, razão pela qual todo texto legislativo espelha o consenso majoritário possível no tempo e no espaço sobre um determinado valor. Sucede que a pretensão de correção feita texto jurídico-normativo anseia pretensão de autoridade (para ficar com a expressão de Joseph Raz), isto é, sua aplicação quando presentes seus pressupostos de incidência sem reabrir o debate moral à sua base – sem prejuízo do controle de constitucionalidade substancial[8]. Acudir à pretensão de autoridade do direito está muito longe de representar simplificação formalista ou redução empobrecedora do fenômeno jurídico, antes significa respeitar a dignidade da legislação e a integridade do Legislativo, levando a sério a separação dos poderes no Estado Democrático de Direito[9]. Isso não implica a interdição do debate moral no âmbito da arena democrático-parlamentar, pelo contrário, pois nessa seara ele pode – e deve! – prosseguir, viabilizando, quiçá, o êxito de uma visão oposta àquela anteriormente vencedora. Mas é importante frisar que, até lá, prevalece a solução posta aqui e agora. Decididamente, é ilegítimo deslocar o centro de gravidade das decisões coletivas do Legislativo para o Judiciário[10]-[11].

Indo ao ponto: o único ato capaz de obstar a estabilização da tutela antecipada é mesmo a interposição do respectivo recurso. Afora essa conclusão, o jurista já não estará propriamente interpretando, porquanto terá ingressado, ainda que não o anuncie ou sequer o perceba, no “reino das propostas legislativas”. Nada mais salutar que a doutrina sirva de lanterna para o legislador, municiando-o com a sua experiência técnico-jurídica, mas é imperativo que atue de modo transparente, sem escamotear intenções, isto é, deve elucidar, se for este o caso, que tal ou qual orientação possui caráter meramente sugestivo por representar uma proposta legislativa. Em suma: a doutrina observa imperfeições e propõe melhorias (o Judiciário pode fazer o mesmo, aplicando a lei mediante ressalva das soluções mais proveitosas que o Parlamento poderia instituir) e o Legislativo, persuadido do seu acerto, absorve-as para conferir-lhes status de norma jurídica. Até lá, repita-se, vincula o que está posto.

Não é possível falar sequer em interpretação extensiva do art. 304 para admitir que outras respostas do réu possam obstar a estabilização.

Miguel Teixeira de Souza ensina que a interpretação extensiva “é uma interpretação praeter litteram: a dimensão pragmática da lei vai para além da sua dimensão semântica”. Ela ocorre, prossegue, “sempre que a letra se refira à espécie e o seu significado deva abarcar, por imposição dos elementos não literais da interpretação, o gênero ou sempre que a letra de uma tipologia taxativa respeite a um ou a alguns subtipos e o seu significado deva abranger, pelo mesmo motivo, outros subtipos do mesmo tipo. À interpretação extensiva está subjacente um juízo de agregação: o que vale para a parte deve valer igualmente para o todo.[12] É ilustrativo o caso do art. 5º, LXIII, CRFB, que prescreve: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. Ainda que o dispositivo não fosse claro quando à indicação meramente exemplificativa das situações-tipo por ele abrangidas – “o preso será informado de seus direitos, entre os quais” –, a interpretação extensiva seria imperativa. Em que pese falar de “o preso” e “permanecer calado”, também abrange quem se encontra “em liberdade” e assegura a “incolumidade corporal do indivíduo”, vedando “coleta forçada de material genético”. O significado da tipologia taxativa referente a alguns subtipos (“preso” e “permanecer calado”) abarcaria outros subtipos (v.g. “investigado ou réu em liberdade” e “coleta forçada de material genético”) do mesmo tipo (“garantia da não autoincriminação”). Em suma, todos os subtipos capazes de assegurar a garantia de não autoincriminação poderiam ser atribuídos ao art. 5º, LXIII, CRFB, via interpretação extensiva[13].

Não é o que se dá com o meio de obstar a estabilização dos efeitos da tutela antecipada antecedente. Ele não é espécie que possa abarcar gênero, nem de subtipo que possa alcançar outros subtipos. As demais respostas do réu não têm aquele escopo. A título de exemplo: (i) a contestação é a via pela qual o réu se contrapõe à pretensão do autor (e apenas eventualmente veicula insurgência contra a decisão que admitiu a petição inicial) – e, de resto, como a petição inicial está incompleta não é possível contestar naquele momento, mas apenas demonstrar a ausência dos pressupostos necessários à concessão da tutela antecipada, sendo que a via adequada para tanto é o recurso; (ii) a exceção de impedimento ou suspeição é a via por meio da qual a parte se insurge contra a “parcialidade” do julgador, nada contém de resistência em relação à pretensão do adversário e muito menos contra eventual tutela antecipada antecedente; (iii) uma simples petição apresentada apenas para sinalizar que irá contestar não espelha manifestação contra a decisão, além de não estar prevista no sistema do direito positivo como meio idôneo para qualquer fim, muito menos para produzir o efeito jurídico típico de obstar a estabilização. De modo que falta rigor metodológico ao posicionamento favorável à interpretação extensiva do art. 304.

Lembre-se que o direito é fenômeno de imputação, não de causalidade (Kelsen). O direito positivo define como e quando determinados atos jurídicos produzem determinados efeitos jurídicos. E o direito positivo brasileiro é inequívoco no sentido de que o recurso é o ato jurídico apto a produzir a eficácia jurídica de obstar a estabilização da tutela antecipada antecedente. Portanto, gostemos ou não, apenas a interposição de recurso obsta a estabilização da tutela antecipada antecedente. Não é dado à doutrina nem à jurisprudência criar soluções ideais indicando as condutas do réu que elas consideram ter ou não aptidão para obstar a estabilização.

De todo modo, convém reconhecer que a solução legislativa não é de todo despropositada: se o recurso é meio interno, por excelência, de impugnação de decisão judicial e é razoável supor que só se obsta a estabilização de tutela antecipada antecedente da qual se discorda, mostra-se plenamente compreensível a escolha do legislador de atar a contenção da estabilização à interposição do recurso de agravo. Nada deixa mais nítido o interesse de impedir a estabilização que a interposição de recurso contra a decisão que a concedeu.

Claro, a opção não é perfeita. Por vezes, o réu se verá diante da insólita circunstância de ter que interpor recurso sabidamente fadado ao fracasso apenas para evitar a estabilização (v.g. porque somente dilação probatória futura terá condições de evidenciar a inexistência do direito do autor). De todo modo, e como já demonstrado alhures, o manejo puramente burocrático do recurso é a única saída reconhecida pelo sistema do direito positivo para obstar a estabilização da tutela antecipada antecedente. Impossível escapar da conclusão de que apenas o recurso (agravo por instrumento ou agravo interno, conforme o caso) pode impedir a estabilização dos efeitos da tutela antecipada antecedente[14].

Seguindo. A explicação doutrinária, concernente à ideia mesma de recurso, é formulada em atenção aos seus denominadores comuns (= atributos permanentes), colhidos do direito positivo e presentes em todas as espécies recursais.[15] Conceito sempre lembrado, talhado por processualista de saudosa memória, é aquele segundo o qual recurso é o remédio voluntário e idôneo a ensejar, no âmbito de atividade jurisdicional já iniciada, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão judicial que se impugna.[16]-[17].

De mais a mais, a temática ganha superlativa nitidez quando consideradas algumas diretrizes (políticas, ideológicas e positivadas), correntemente denominadas princípios, que alicerçam o instituto e permitem enxergar, dominar e alcançar a ordem entre determinados acontecimentos na esfera da atividade procedimental-jurisdicional. São elas, a despeito do dissenso entre autores, a formalidade (exercita-se o recurso nos estritos termos prescritos nas leis), o duplo grau (permissão ao vencido de incitar a reavaliação da decisão atacada), taxatividade (a existência de tipos recursais subordina-se a expressa previsão legal), a unicorribilidade (salvo previsão em contrário na lei, para cada decisão há um recurso específico que pode ser manejado), a fungibilidade (admissão, em caso de dúvida objetiva, de um recurso interposto por outra modalidade recursal), a dialeticidade (ônus que possui o recorrente de motivar seu recurso no ato da interposição), a voluntariedade (a interposição de recurso é ônus cuja iniciativa depende do legitimado, parte ou terceiro), a irrecorribilidade das interlocutórias (restrição à recorribilidade imediata, ou em separado, de decisões interlocutórias em hipóteses não previstas na lei), a complementaridade (salvo exceções previstas em lei, veda-se a posterior retificação ou complementação das razões recursais), e a proibição da reformatio in pejus (não está o órgão ad quem autorizado a proferir decisão mais desfavorável ao recorrente do que aquela objeto de impugnação).[18]

O que incomoda, explicitando o problema que justifica o presente ensaio, é o réu, vez ou outra, situar-se na posição de, descrendo completamente da possibilidade de reverter os rumos da decisão de urgência que lhe foi prejudicial, ter ainda assim que interpor o respectivo recurso (agravo de instrumento ou interno, conforme o caso).[19] Mesmo não possuindo, naquele momento, elementos de prova suficientes para a refutação daquilo que foi decidido, a sua inércia em recorrer sujeitá-lo-á a um resultado não desejado: a extinção do feito provocada pelo fenômeno estabilizatório (CPC/2015, art. 304). Não fosse isso, a sua estratégia de defesa resumir-se-ia no esforço de produzir, ao longo do procedimento, provas robustas capazes de reformar, mais a frente, a decisão provisória. Mas a contundente inteligibilidade da lei desampara tal possibilidade, exigindo performance de mão única de direção àquele cuja intenção é obter sentença de mérito. Ou seja, o manejo do recurso adequado se imporá ao réu mesmo que não anseie fazê-lo, inclusive por entrever inexistente chance de sucesso, pois só assim obterá êxito em bloquear a extinção prematura do feito. 

Surge então a suspeita de que, hoje, o conceito de recurso, ofertado pela doutrina, necessitaria de adaptação. É que, como antevisto, nada há nele que inclua a circunstância na qual a vontade, que guia a iniciativa do recorrente, tenha por alvo não propriamente a impugnação da decisão e sim objetivo distinto. A pergunta central: teria surgido no Brasil um recurso atípico, ou pelo menos com finalidade atípica, ainda que concorrente com as finalidades já consagradas, cujo escopo é evitar o encerramento antecipado do litígio e, sobretudo, assegurar a amplitude do direito de defesa?

Uma resposta negativa se impõe porque, pela redação do art. 304 do CPC/2015, a obstrução da estabilização da tutela antecipada não está subordinada ao provimento do recurso, advindo, antes, automaticamente da mera interposição do recurso respectivo. O que fez o CPC/2015, a bem da verdade, foi criar um novo efeito recursal – o qual nominamos, à míngua de significante melhor, efeito desestabilizador ou obstativo da estabilização da tutela antecipada – para agravos de instrumento ou interno, sempre que tiverem por alvo a reforma ou invalidação de decisão antecipatória antecedente. Registre-se: indispensável é apenas a iniciativa da parte em interpor o recurso adequado, não se exigindo pedido expresso, provimento e declaração judicial atestando a não estabilização. A desestabilização é implicação mecânica, ope legis, ou seja, oriunda pura e simplesmente da lei e que, só por isso, independe do órgão judicante.

De todo modo, ainda que inalterada a finalidade fulcral dos recursos – a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão impugnada –, bem assim seu próprio conceito, a doutrina precisa ajustar-se seja para incluir, entre os muitos efeitos recursais – impedimento à formação da coisa julgada, manutenção da litispendência, remessa a um novo julgamento do conteúdo do provimento, suspensão ou não dos efeitos do ato impugnado,[20] etc. –, o efeito obstativo da estabilização da tutela antecipada, seja para iluminar analiticamente suas propriedades e reflexos pragmáticos.[21]

É trabalho que os autores se comprometem a realizar no futuro!

           

 

 

Notas e Referências

[1] “Se há algo que constranja o magistrado (e há), e se há algo que constranja também o cidadão também o cidadão independentemente de pronunciamento oficial posterior (e há), devemos admitir a existência de determinantes semânticos que, embora não seja “significados intrínsecos” (ninguém aqui está defendendo o “mito do museu” de Quine), precedem o aplicador do direito, no sentido de que antes de a ele chegar já estarem inseridos em uma comunidade linguística de significados, significados esses que são apreendidos pelo usuário competente da linguagem. A existência de determinantes semânticos não exclui a existência de determinantes pragmáticos extraíveis do contexto específico de aplicação desse mesmo texto jurídico – isto é, determinantes pragmáticos relacionados com as perguntas particulares que surgirão na relação processual concreta, ou, acrescento, no caso não-oficial concreto (...) Trazendo para a prática, isso equivale a afirmar que, no caso de tráfico de drogas acima citado, não obstante virtualmente ninguém se pergunte se tráfico é ou não é proibido (pergunta respondida ex ante), podem os magistrados, em algum caso concreto específico, diante de particularidades até então imprevistas – fenômeno típico da indeterminação da linguagem –, elaborar as “perguntas metodológicas fundamentais” (...) a fim de atribuir novo sentido ao verbo “preparar” contido como um dos núcleos do tipo penal do art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/2006”. (TORRANO, Bruno. Pragmatismo no Direito e a urgência de um “pós-pós-positivismo” no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2018, p. 205-207).

[2] Nesse sentido, a lição precisa de Eduardo José da Fonseca Costa: “A GARANTIA FUNDAMENTAL DA LEGALIDADE [plano positivo] bem concretiza a arqui-garantia da não-criatividade [plano pré-positivo]. O juiz deve manter-se no reduto tedioso da legalidade. A lei – aprovada por representantes eleitos democraticamente pelo povo – é o limite normativo do seu movimento. As únicas possibilidades funcionais do juiz são as possibilidades semânticas do texto legal. Aplicando conteúdo semântico extralegal, o juiz não aplica criação legislativa, mas criação sua (sob inspiração própria ou alheia). Não interpreta-aplica, mas esquematiza-aplica. Age como legislador. Inventa sem autorização constitucional. Atua imaginativamente à margem de legitimação democrática. No entanto, no Brasil, jamais um cientista do processo se ocupou da legalidade (CF, art. 5o, II) como uma garantia fundamental contrajurisdicional. Aliás, espanta – mesmo entre os constitucionalistas – a penúria literária sobre o tema. Pudera: no país do ativismo judicial agudo, a lei é sinal de mau agouro e legicentrismo item no Código Internacional de Doenças.” (FONSECA COSTA, Eduardo José da. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. Empório do Direito. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Publicado: 19/04/2018).

[3] Santa Missa Pro elegendo Romano Pontífice, Homilia do Cardeal Joseph Ratzinger, celebrada a 18 de abril de 2015. Disponível: <http://www.vatican.va/gpII/documents/homily-pro-eligendo-pontifice_20050418_po.html>.

[4] A metáfora, que nega a relação entre textos e piqueniques, é de autoria de T. Todorov: TODOROV, Tzvetan. Viaggio nella critica americana, Lettera, 4 (1987), p 12 apud ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 28.

[5] Recentemente, o STJ decidiu, por unanimidade, que qualquer tipo de impugnação à decisão concessiva de tutela antecipada é meio hábil para impedir a ocorrência do fenômeno estabilizatório (CPC/2015, art. 304) (STJ, REsp 1.760.966/SP, Terceira Turma, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgamento em 04/12/2018, disponível: ). Utilizou-se de expediente meramente retórico, denominando-o “interpretação sistemática e teleológica”. Primeiro, identificou de forma adequada o problema: adotar a estrita prescrição legal, em casos envolvendo os arts. 303 e 304 do CPC/2015, estimularia a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os tribunais, além do que incentivaria o ajuizamento da demanda autônoma (CPC/2015, art. 304, §2o) a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada. Depois, provada a deficiência abissal da regra, a atuação jurisdicional seguiu rumo a ignorar as suas fronteiras textuais, abrindo à fórceps clareiras de sentido ali impossíveis de se extrair, para assim alterar, ao fim e ao cabo, a obra legislativa. Eliminado o verniz, no entanto, o que se verifica, pura e simplesmente, é que a Corte responsável pela fixação da melhor interpretação das leis federais funcionou ali, como amiúde tem funcionado, como um braço do Parlamento, tomando para si a resolução de problemas estranhos à sua atuação. Não interpreta e sim cria novas regras

[6] Em palestras, Eduardo José da Fonseca Costa já denunciou, repetidas vezes, esse grave erro no qual incide corriqueiramente a doutrina.

[7] Eis os argumentos lançados pelo autor para divergir daqueles que admitem que qualquer resposta do réu constitui meio idôneo para impedir a estabilização: “Três razões nos levam a não concordar com esse entendimento. A primeira, diz respeito à necessidade de que sejam respeitados os limites semânticos do texto normativo. O legislador não modificou o significado da palavra recurso, razão pela qual nem a doutrina, nem o órgão jurisdicional tem a liberdade para substituir a palavra recurso por qualquer manifestação do réu tendente a dar prosseguimento ao processo. Ora, texto e a norma não são cindíveis (embora exista entre eles uma diferença ontológica), razão pela qual não se pode considerar correta uma interpretação que extrapole os limites semânticos do texto. A segunda, é que esse entendimento transforma a estabilização numa figura tão excepcional que ela acabaria deixando de existir, até por razões práticas: como, no final das contas, somente em caso de revelia haveria a estabilização (pois qualquer atitude do réu impediria esse fenômeno) o autor nunca teria interesse na estabilização, pois diante da revelia do réu inevitavelmente teria preferência pela decisão fundada em cognição exauriente com aptidão para ser coberta pela coisa julgada. A terceira, está no contra sensu da proposta: se a tônica é a jurisdição sem finalidade cognitiva, com a prevalência da tutela sumária, os mecanismos tendentes a impedir a estabilização devem ser os mais restritos possíveis, sob pena de nunca nos desvencilharmos da ordinariedade” (RAATZ, Igor. Tutelas Provisórias no Processo Civil Brasileiro. Livraria do Advogado. 2018, p. 173).

[8] Concordamos com a conclusão de Bruno Torrano: “Levar a sério as discussões realizadas pelas grandes assembleias legislativas significa lançar robustas suspeitas sobre aqueles intelectuais que pretendem servir-se do sistema de controle de constitucionalidade para fazer prevalecer, contra a deliberação dos presentantes do povo, ilustrativa de um “desacordo razoável” em questões política e moralmente sensíveis, as razões políticas e morais que eles, do alto de suas cadeiras acadêmicas, consideram mais “científicas”, mais “democráticas” ou mais “progressistas”. (...) a crítica aos teóricos “inconstitucionalistas” não significa adesão à tese de que o judicial review não possui valor democrático (como se devesse ser extinto ou radicalmente mitigado), e sim que, justamente em razão desse valor, devemos utilizá-lo de forma mais consciente e responsável, a fim de preservar sua vitalidade e respeitabilidade institucional e social”. TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei. Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2ª ed. Fórum. 2019, p. 407).

[9]  Georges Abboud assim resume as premissas de Jeremy Waldron sobre a repartição de funções no Estado Democrático de Direito: “De início, Waldron olha para a integridade de cada um dos poderes ou funções. Para o Legislativo, seria a dignidade da legislação, para o Judiciário, a independência dos Tribunais, e, para o Executivo, a autoridade. Cada um desses poderes deve ser entendido como responsável por um papel a desempenhar nas funções do Estado. Em segundo lugar, Waldron afirma que as funções governamentais devem ser vistas de maneira articulada. A ideia é que, em vez de apenas uma decisão política indiferenciada fazer algo sobre a pessoa X, há uma insistência de que qualquer coisa que façamos para X ou sobre X deva ser precedida por um exercício de poder legislativo que estabeleça uma regra aplicável a todos e não apenas a X, um processo judicial que determine a conduta de X em particular está dentro do âmbito dessa regra, e assim por diante. Além da integridade de cada uma dessas fazes, existe a sensação de que o poder é melhor exercido, ou exercido de forma mais respeitosa no que diz respeito aos seus assuntos, quando prossegue nessa sequência ordenada”. (ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2ª ed. Revista dos Tribunais. 2018, p. 1130-1131).

[10] Não são poucos os autores que pretendem inserir a Jurisdição no centro de gravidade das decisões sobre os desacordos morais da comunidade política, mas nenhum parece ter sido tão ambicioso – ao menos não explicitamente – quanto José Renato Nalini, defensor da “Rebelião da Toga”. Quem lê suas palavras é tentado a rejeitar o tom metafórico da expressão e interpretá-la como uma pretensão radicalmente literal: a criação de uma magistratura ensimesmada, sem limites formais de atuação e livre para fazer “justiça” – embora jamais diga sequer o que entende por “justiça”... Diz ele: “perante uma situação de injustiça e de iniquidade, para quem tem brio não há lugar para um conformismo, senão oportunidade para saudável rebeldia. É isso que se pretende do juiz brasileiro. Daquele que sente que a Justiça pode ser melhor e que não se acomoda. Observador qualificado de uma realidade cada vez menos compatível com o ideal concebido e acalentado a respeito do que deva ser o justo, o juiz não pode perder a capacidade de indignação. Se para os demais a aversão ao descalabro pode resumir-se ao protesto ou ao desalento, a sadia indignação do juiz deve suscitar uma atuação transformadora. (...) Cumpre ao juiz ter ideias novas e criativas. Não subordinar-se ao que lhe é imposto, senão depois de profunda análise e assimilação do transmitido. (...) O juiz sensível e destemido não pode senão ser rebelde. Ele tem uma antena permanentemente atenta às infelicidades, às angústias e sofrimentos. Tem consciência da finitude de seus poderes. Mas não ignora dispor de um arsenal de ferramentas para mitigar as dores de quem está faminto por justiça. É incomensurável o poder de um juiz consciente, forte e corajoso. Ele tem condições de conferir nova trajetória à sociedade aparentemente sem rumo. Basta compenetrar-se de que a tarefa mais séria de um julgador é interpretar o ordenamento à luz de uma Constituição que acreditou e prestigiou juiz e justiça”. (p. 319-321). Nalini tenta conferir ares de cientificidade ao seu projeto político – “a rebelião é a nova postura hermenêutica” (p. 320) –, mas fracassa – “interpretar, para o juiz, corresponde a uma função política” (p. 339). Afinal, não há limites duros à função interpretativa transformadora do juiz consciente, forte e corajoso – “aceitar a plenitude da função interpretativa do juiz implica conceder a ele larga margem de liberdade na indagação do sentido da norma”. Na esteira de Otto Bachof, confessa, relativamente às normas abertas, presentes nos temas mais sensíveis, que a sua interpretação “é pura política por falta de uma medida com base na qual se possa julgar com justiça”, o que não “impressiona o juiz bem preparado”, pois “tais conceitos são suscetíveis de preenchimento ‘com vida e conteúdo, mediante uma jurisprudência dirigida a concretizar e plasmar valores’” (p. 341). Numa espécie de eterno retorno ao dualismo metodológico lei vs. realidade dos tempos de Jhelinek e Laband, afirma que “o juiz hoje tem de adaptar a norma ao fato e não fazer com que o fato se conforme com a norma” (p. 342). Embora refira as conquistas hermenêuticas alusivas ao giro linguístico, particularmente a questão da pré-compreensão (p. 340), insiste no subjetivismo interpretativo expressado no habitus de decidir primeiro para depois buscar a interpretação (p. 343). Evidentemente, acusa o Legislativo de reunir tudo o que há de mais detestável na vida pública. Talvez não se trate de ceticismo, mas de repulsa. Afinal, questiona a espécie de produto que ele oferece ao intérprete, se o jogo democrático realmente oferece iguais condições de participação a todos os interessados ou se não passa de um simulacro onde predominam interesses escusos das oligarquias, sustentando que não seria exagerado afirmar-se a “tendência de conversão do Parlamento em versão pós-moderna de um feudalismo heterogêneo” (p. 343). Nega que contemporaneamente se encontre no Parlamento coincidência entre legitimidade e racionalidade – “as Assembleias Legislativas começam a perder o caráter mítico que ostentaram durante cerca de dois séculos, na cultura ocidental” (p. 344). Nessa linha, não surpreende que encontre exatamente aí o fundamento para o protagonismo judicial – “É isso que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa”. (p. 344). Não menos surpreendente a derradeira conclusão: “o juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo”. (p. 344). Ora, se não há legitimidade fora do Judiciário resta saber o que precisa existir além dele... Todas as passagens extraídas de: NALINI, José Renato. A Rebelião da Toga. 3ª ed. Revista dos Tribunais. 2016.

[11] A leitura da obra de José Renato Nalini nos leva facilmente a dar razão a Jeremy Waldron no tocante à dignidade da legislação (e, pois, do Legislativo), ainda que discordemos da sua rejeição radical do controle substancial de constitucionalidade. São as palavras do professor da Universidade de Nova Iorque: “Acredito que a legislação e as legislaturas têm má fama na filosofia jurídica e política, uma fama suficientemente má para lançar dúvidas quanto a suas credenciais como fontes de direito respeitáveis. (...) o problema que percebo é que nem sequer desenvolvemos uma teoria normativa da legislação que pudesse servir como base para criticar ou corrigir suas extravagâncias. Mais importante, não possuímos um modelo jurisprudencial capaz de compreender normativamente a legislação como forma genuína de direito, a autoridade que ela reivindica e as exigências que faz aos outros atores de um sistema jurídico. Nosso silêncio nessa questão é ensurdecedor se comparado com a loquacidade sobre o tema dos tribunais. Não há nada sobre legislaturas ou legislação na moderna jurisprudência filosófica que seja remotamente comparável à discussão sobre a decisão judicial. Ninguém parece ter percebido a necessidade de uma teoria ou de um tipo ideal que faça pela legislação o que o juiz-modelo de Ronald Dworkin, “Hércules”, pretende pelo raciocínio adjudicatório. (...) nossa jurisprudência está repleta de imagens que apresentam a atividade legislativa comum como negociata, troca de favores, manobras de assistência mútua, intriga por interesses e procedimentos eleitoreiros – na verdade, como qualquer coisa, menos decisão política com princípios. E há razão para isso. Pintamos a legislação com essas cores soturnas para dar credibilidade à ideia de revisão judicial (isto é, revisão judicial da legislação, sob a autoridade de uma carta de direitos) e ao silêncio que, de outra maneira, seria o nosso embaraço quanto às dificuldades democráticas ou “contramajoritárias” que, às vezes, pensamos que a revisão judicial implica. Construímos, então, um retrato idealizado do julgar e o emolduramos junto com o retrato de má fama do legislar. Os cientistas políticos sabem mais do que isso, naturalmente. Ao contrário dos professores de Direito, eles têm a boa vontade de combinar um modelo cético de legislação com um modelo igualmente cético de adjudicação de recurso e do Supremo Tribunal. Parte do que tenho interesse em fazer nessas palestras é perguntar: “Como seria construir um retrato róseo das legislaturas, que correspondesse, na sua normatividade, talvez na sua ingenuidade, e, certamente na sua qualidade de aspiração, ao retrato dos tribunais – o fórum de princípio, etc. – que apresentamos nos momentos mais elevados da nossa jurisprudência constitucional? (...) tentarei recuperar e destacar maneiras de pensar a respeito da legislatura que a apresentem como um modo de governança dignificado e uma fonte de direito respeitável. Quero que vejamos o processo de legislação – na sua melhor forma – como algo assim: os representantes da comunidade unindo-se para estabelecer solene e explicitamente esquemas e medidas comuns, que se podem sustentar em nome de todos eles, e fazendo-o de uma maneira que reconheça abertamente e respeite (em vez de ocultar) as inevitáveis diferenças de opinião e princípio entre eles. Esse é o tipo de compreensão da legislação que eu gostaria de cultivar. E penso que, se capturássemos isso, como a nossa imagem de legislação, haveria, por sua vez, uma saudável diferença no nosso conceito geral do direito”. (WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. Martins Fontes. 2003, p. 1-3). Daí estarmos de acordo, também, com Bruno Torrano: “as notórias deficiências políticas pelas quais passam o Legislativo não constituem razão para que desloquemos, automaticamente e mediante fórmulas vazias como “reaproximação do direito com a ética”, o centro de gravidade das decisões coletivas para o Poder Judiciário. O papel da teoria normativa do direito não é o de disfarçar ou amenizar as situações extremamente problemáticas como a vivida na recente democracia brasileira, e sim evidenciá-las, estudá-las e propor medidas inteligentes, imaginativas e adequadas. Isso significa que, mais do que se prender dentro de um pessimismo conformista, que apenas troca o problema do Legislativo pelo problema do ativismo de juízes não eleitos, cabe ao jurista engajar-se imaginativamente contra os problemas concretos colocados pelas circunstâncias, de modo a inserir a sua atividade dentro do espaço de política cultural”. (TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei. Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2ª ed. Fórum. 2019, p. 406-407).

[12] SOUZA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2013, p. 375.

[13] Mais amplamente, sustentando a eficácia civil da garantia de não provar contra si mesmo, conferir: SOUSA, Diego Crevelin de. Dever (ou Garantia) de (não) Provar contra si Mesmo?(!) O Dilema em torno do Art. 379, CPC. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. V. 5 (Direito Probatório). Coords. Marco Félix Jobim. William Santos Ferreira. 3ª Ed. Jus Podivm. 2018, p. 249-276. O texto também pode ser consultado na Revista eletrônica Empório do Direito, em: http://www.emporiododireito.com.br/leitura/abdppro-35-dever-ou-garantia-de-nao-provar-contra-si-mesmo-o-dilema-em-torno-do-art-379-cpc.

[14] Observe-se que o Superior Tribunal de Justiça não invocou a interpretação extensiva quando decidiu que qualquer reação do réu é hábil para obstar a estabilização. No já referido REsp 1.760.966/SP, a decisão unânime da Terceira Turma, relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze, (i) invocou a “interpretação sistemática e teleológica” – sem dizer o que entende por uma coisa e outra; (ii) aduziu que “o legislador disse menos do que queria” – sem instituir o método capaz de responder como e quando saber que o legislador disse menos do que queria, bem como de saber o que, exatamente, ele queria; (iii) observou que “a parte pode contestar refutando os argumentos da inicial e pleiteando a improcedência do pedido” e que “não seria razoável” a estabilização quando o réu já tivesse contestado o pedido – embora não diga como a parte já poderia contestar se a petição inicial ainda não está completa, muito menos institua o método necessário para se definir o que é ou não razoável, em abstrato e em concreto; (iv) ressaltou que o entendimento de que apenas a interposição do recurso pode obstar a estabilização “estimularia a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais” – o que constitui verdadeiro non sense, pois, a um, a “sobrecarga” dos Tribunais é uma consequência devidamente internalizada pelo sistema – o fato de caber recursos contra decisões é sempre um fator de potencial sobrecarga de trabalho dos tribunais –, e, a dois, essa sobrecarga nada tem de “desnecessária”, pois se a interposição de recurso é a única via para obstar a estabilização ela é profundamente necessária para o réu. Em acréscimo ao que já referimos pontualmente em relação a (i), (ii) e (iii), tome-se o posicionamento de Igor Raatz, referido na nota de rodapé nº 7. Se alguma resposta apresenta afinidade sistematicidade, pertinência teleológica, compatibilidade com o texto legal e razoabilidade com a sistemática pretendida, essa é justamente aquela que restringe o impedimento da estabilização à interposição do recurso. Sobre (iv), deixamos expresso que não se trata de preocupação menor. Realmente, a quantidade de processos em tramitação em nosso Poder Judiciário inviabiliza a prestação do serviço jurisdicional e por isso devemos levar a sério a cogitação das soluções voltadas ao gerenciamento do trabalho dos Tribunais. Contudo, substituir o império da lei pela conveniência – ou mesmo genuína necessidade! – dos tribunais passa longe de ser solução adequada, ainda mais quando isso se dá na esteira de entendimentos que instituem verdadeiras “autodefesas” dos Tribunais contra o volume de trabalho. Teríamos que indagar sobre os limites dessa “autoproteção”, sobretudo porque já temos demonstrações suficientemente preocupantes de que esse consequencialismo ensimesmado não é inofensivo às garantias individuais contrajurisdicionais. No momento em que escrevemos esse texto ainda prevalece no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que é possível a execução provisória da pena após o exaurimento da instância ordinária, sendo que um dos seus fundamentos é a tese de que as partes interpõem recursos “com indisfarçados propósitos protelatórios visando, não raro, à configuração da prescrição da pretensão punitiva ou executória” –

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=6604113. Ou seja, admitiu-se a execução provisória da pena, dentre outros motivos, porque se sabe que o tribunal pode não dar conta de julgar a tempo de impedir a consumação da prescrição da pretensão punitiva. Instituiu-se uma “autodefesa” do Tribunal à custa da integridade da garantia individual contrajurisdicional da pressuposição de inocência, tal como disciplinada em nosso direito positivo (art. 5º, LVII, CRFB, art. 283, CPP, arts. 105, 147, 164 e 171, LEP). Ora, o que impede que esse mesmo argumento seja utilizado contra outras garantias individuais contrajurisdicionais? É necessário muito cuidado com leituras da eficiência focadas exclusivamente no desempenho das agências estatais, pois elas podem criar as condições ideais para que o código custo/benefício, próprio do sistema econômico, penetre sorrateiramente no sistema do direito positivo e corrompa o seu modo específico de funcionamento, orientado internamente pelo código lícito/ilícito, sobretudo quando o maior risco é experimentado pelos direitos fundamentais de liberdade, cuja característica principal é serem contramajoritários. Em suma, fica clara a fragilidade (por que não dizer, também, a imprudência) metodológica e a inconsistência jurídico-normativa da decisão.

[15] São dois os denominadores comuns das espécies recursais: i) prolongam atividade jurisdicional já instaurada, nos mesmos autos ou em autos distintos, não havendo, portanto, uma nova ação; ii) têm por origem a iniciativa de alguém interessado em impugnar a decisão. (ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 50).

[16] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 14 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 233.

[17] Não se ignora a respeitável divergência tocante à característica da voluntariedade, havendo quem a exclua, reconhecendo, a fortiori, a natureza recursal do reexame necessário. Exemplificativamente, conferir: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8a ed. Revista dos Tribunais, 2016, especialmente item 106.3; DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V.3. 13ª ed. Jus Podivm. 2016, p. 401 e ss.

[18] Para uma análise aprofundada da temática: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. pp. 89-146

[19] O remédio recursal cabível contra a medida de urgência é o agravo de instrumento, quando quem a concedeu foi o juiz de primeiro grau, ao passo que desafia agravo interno tutela antecipada concedida pelo relator em ações de competência originária do tribunal.

[20] Para uma análise de todos os efeitos recursais: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

[21] Há questões a serem enfrentadas e respondidas pela doutrina: 1) O efeito desestabilizador da tutela antecipada somente se implementará caso superado o juízo de admissibilidade? 2) Não conhecido o recurso, há hipóteses em que o efeito desestabilizador, ainda assim, atuará?; 3) É aceitável juridicamente a condenação por litigância de má-fé à parte que, sem fundamento probatório para impugnar a decisão, ainda assim maneja recurso a fim de obstar o efeito estabilizatório?

 

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