1964: o que comemorar?  

01/04/2019

 

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

No último dia 25 de março (segunda-feira) o porta-voz da Presidência da República[1] pronunciou a determinação do Presidente Jair Bolsonaro para que as forças armadas (Ministério da Defesa), no sentido de “comemorar” o Golpe que derrubou Presidente Jango Goulart no ano de 1964, fizessem alusão aos 55 anos da data por meio de ordem do dia nas unidades militares.

Seguindo tal orientação, qual a importância para o Chefe de Estado e Governo incitar referida comemoração? É evidente que considerando a sua trajetória como político, com várias passagens de inflamação à violência e ao ódio contra a democracia e aos direitos humanos, tem-se em conta o sentido político de tal “comemoração”.

Isso oportuniza recordar a Ignácio de Ellacuría[2], que apresenta em suas obras duas categorias importantes: a) a historicização dos conceitos e a b) inversão ideológica dos conceitos; vejamos uma síntese objetiva de ambas:

As ideologias dominantes vivem de uma falácia fundamental, a de dar como conceitos reais e históricos, como valores efetivos e operantes, como pautas de ação eficazes, uns conceitos ou representações, uns valores e umas pautas de ação, que são abstratos e universais. Como abstratos e universais são admitidos por todos: aproveitando-se disso, subsumem-se realidades que, em sua efetividade histórica, são negação do que dizem ser.[3]

E a inversão ideológica dos conceitos:

O perigo da ideologização consiste na legitimação que pode outorgar à um sistema injusto, em busca de manter seu status quo, pode se realçar o bom e se ocultar o mal que tem, utilizando expressões ideais que são contraditas pelos acontecimentos reais e pelos meios empregados para colocar em prática o conteúdo dos ditos ideais.[4]

Destacadas estas ideias, cabe afirmar que no cenário do debate aqui apresentado não existe outro entendimento para o conceito “comemorar” que não seja fora da realidade histórica brasileira de 1964 à 1985. Os fatos daquela realidade foram narrados pela Comissão Nacional da Verdade e reconhecidos nos casos de Gomes Lund e Vladimir Herzog na Corte Interamericana de Direitos Humanos e mesmo pelas próprias forças armadas[5].

Vale lembrar um pouco do contexto e seus argumentos: em 1964 foi deposto de forma controvertida jurídica e política, o então Presidente João Goulart, que tinha seu mandato constitucional em plena vigência; na leitura de Bolsonaro e dos seus apoiadores isso seria uma revolução para evitar o comunismo no Brasil, diga-se de passagem, este tipo de argumento e expediente político já havia sido utilizado no golpe do Estado novo com o plano Cohen. Porém, por vezes o mesmo discurso volta a aparecer quando se trata de ofensiva contra a democracia nacional, em especial quando ela ameaça expandir-se para além do seu conceito formal[6].

Dada tal situação, o Ministério Público Federal (MPF) através da manifestação de alguns procuradores soltou nota pública pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, destacando que os atos de 1964 representam historicamente um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional.

Ademais, a nota pública do MPF informa que qualquer comemoração alusiva ofende a memória e o Estado democrático (princípio estruturante da ordem constitucional conforme o primeiro artigo da constituição vigente), além, é claro, de recordar que o modo de operação pós-golpe de 1964 representou severa restrição aos direitos fundamentais e à participação democrática da sociedade nos atos do governo.  Em especial, o próprio cargo de Presidente da República era eleito de forma indireta durante o regime que Bolsonaro defende (uma estranha postura para um governante que se diz defensor da democracia e da constituição).

Da mesma forma, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma Ação Civil Pública com pedido de tutela provisória de urgência para evitar tais comemorações. Esta peça processual constitucional tem como fundamentos a narrativa dos horrores da ditadura, a violação de Lei Federal, a violação do princípio constitucional da moralidade administrativa, a violação ao direito à memória e à verdade, além de destacar a repercussão na imprensa nacional e internacional.

Independente do baile das liminares, entre deferimentos e indeferimentos de urgência, sobram argumentos em favor das violações e brotam exposições criativas que reforçam a decisão presidencial.

Tal foi o caso dos argumentos por indeferimento da medida ajuizada pela DPU, na qual cabe destacar a desconsideração do caráter lesivo segundo a decisão judicial; entre os argumentos da desembargadora federal aparece uma não lesividade aos termos levantados pela DPU (afronta à memória e à verdade, à moralidade administrativa e ao Estado Democrático de Direito), bem como o pronunciamento insere-se na discricionariedade do administrador.

Ora, nas entrelinhas de tal decisão da Corregedora Regional da Justiça Federal da 1ª Região (em plantão), aparece um simples ato comemorativo que cabe ao Presidente da República  decidir, como se não tratasse de um tema extremamente sensível à história da sociedade brasileira e a realidade constitucional que guarda o próprio argumento da Desembargadora (pressuposição da pluralidade de debates e de ideais, os quais foram violentamente suprimidos pelo regime que esta autorizou comemorar).

Contudo, interessa saber quais as razões de comemorar um ato político manchado pela tortura dos nacionais? Atos executados pelo Estado contra os cidadãos, tais como: execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, violações sexuais, espancamentos, vedação de defesa e amparo jurídico com o devido processo legal; expulsão dos locais de trabalho ou interrupção do desenvolvimento de carreiras dos mais variados grupos de profissionais.

Os efeitos perversos, constatados como graves crimes de violação dos direitos humanos, e as atrocidades massivas contra a humanidade não encontram justificativa em qualquer outra ação que não a guerra contra os próprios nacionais perpetrada pelo mesmo Estado que tem como objetivo proteger e promover os seus direitos e a  dignidade humana; e essa tarefa não é uma opção, é um compromisso constitucional e com o Estado Democrático de Direito.

Ainda assim, nos discursos dos defensores da comemoração aparece a defesa dos interesses nacionais, o que em verdade eram interesses políticos dos subservientes com o imperialismo estadunidense (em especial dos setores econômicos nacionais). Ou seja,

a razão última do golpe de 1964, como sempre é ideologizada e invertida nos termos ellacurianos, para esconder os interesses do alinhamento à globocolonialidade[7].

Também cabe relembrar que as pautas populares do governo Jango Goulart, na forma de direitos sociais incomodavam e muito as elites nacionais, as quais atravessadas pela colonialidade histórica do seu imaginário social viam como risco de abalo às hierarquias que intentavam preservar.

Dessa maneira, o alinhamento político do golpe de 1964 afastou a democracia e os direitos fundamentais da pessoa humana para reproduzir uma ideia de ordem diretamente ligada ao capitalismo vigente. Logo, o resultado foi, como se pode constatar, a perpetuação de inúmeras violações dos direitos, rupturas institucionais/constitucionais e práticas antidemocráticas.

Este cenário é proferido por seus defensores como a afirmação da independência nacional, um ato nacionalista para manter a ordem, a segurança e o desenvolvimento da nação brasileira. A pergunta é: independência ou seu uso para encobrir a subserviência aos mandos estadunidenses? Nacionalismo ou abertura da exploração das riquezas nacionais ao capital externo, conforme se pode recordar das preferências às empresas privadas na “constituição militar”[8]? E a ordem, por acaso, seria sinônimo de calar-se frente às violações dos direitos? E nesse caso, violar uma ordem jurídica não seria uma desordem? E a segurança nacional, por acaso, não era sinônimo de perseguir e eliminar aos oponentes ou contestadores? Se a resposta é afirmativa, isso implica em insegurança social, tendo em vista que somos uma sociedade com pluralismo de ideias e opções políticas. Logo, o papel do Estado golpista foi criar preferências na execução da segurança nacional, excluindo aqueles que eram indesejados nos seus planos.

 Como é possível verificar não existem argumentos, frente à historicização dos conceitos, que possam fundamentar qualquer memória comemorativa aos atos de 1964 e dos anos que seguiram.

Sendo assim, por quais motivos o chefe de Estado quer comemorar, não foi este eleito sob a égide da democracia? Não lhe agrada estar governando sob o manto de um texto constitucional democrático e que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana? Estaria o senhor presidente buscando meios para seguir exaltando as suas preferências de outrora, quando manifestou apoio à tortura/ aos torturadores e as violências contra os brasileiros praticadas pelos próprios nacionais?

Não sejamos apanhados pela aparência dos discursos. Por detrás dos conceitos de  liberdade do povo, da democracia e do Estado Democrático de Direito proferidas pelo senhor presidente está escondida uma inversão ideológica dos termos. Estes termos devem ser historicizados desde a realidade histórica concreta, descolonizados na recepção social que determinados setores fazem e afirmados como manifestação antidemocrática, perversa com a alteridade, simbolicamente violadora dos direitos humanos e difusora do ódio.

Portanto, os acontecimentos de 1964 e pós-1964 não devem ser comemorados, pois de fato não há motivos para tal. Ao invés disso, devem ser relembrados na memória histórica do país, afinal não foram acontecimentos passados, são acontecimentos presentes que tomam variadas maneiras de se expressarem, todas elas dolorosas e manchadas de sangue.

 

Notas e Referências

[1] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-de-1964-diz-porta-voz.shtml

[2] ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía de la realidad histórica. San Salvador: UCA, 1999.

[3] “[L]as ideologias dominantes viven de una falacia fundamental, la de dar como conceptos reales e históricos, como valores efectivos y operantes, como pautas de acción eficaces, unos conceptos o representaciones, unos valores y unas pautas de acción, que son abstractos y universales. Como abstractos y universales son admitidos por todos: aprovechándose de ello, se subsumen realidades que, en su efectividad, histórica, son negación de lo que dicen ser.” ELLACURÍA, Ignacio. La historicización del concepto de propriedade como principio de desideologización. In: SENENT, Juan Antonio. La lucha por la justicia: seleccón de textos de Ignacio Ellacuría (1969-1989). Bilbao: Universidad de Deusto, 2012, p. 236.

[4] “El peligro de la ideologización consiste en la legitimación que puede otorgarle a un sistema injusto, en búsqueda de mantener el status quo, pues se realza lo bueno y se oculta lo malo que tiene, utilizando expresiones ideales que son contradichas por los hechos reales y por los medios empleados para poner en práctica el contenido de dichos ideales.” ROSILLO, Alejandro.  Praxis de liberación y derechos humanos: una introducción al pensamiento de Ignacio de Ellacuría. México: UASLP, 2008, p. 121.

[5] Ofício nº 10944/GABINETE, em 19/09/2014, recordado na recomendação da PRDC/RS Nº 11/2019.

[6] Em especial vale recordar Ellen Wood quando menciona que a democracia formal tolera todas as  mazelas econômicas, pois a forma do capitalismo não é atingida em suas estruturas pelos pactos políticos formais, por essa razão uma democracia substancial é aquela que avança sobre as determinações econômicas e os privilégios do seu sistema, tornando-se um perigo ao grupos dominantes, nomeados por Bolsonaro como sociedade civil (quando em verdade eram sociedades econômicas altamente interessadas nos privilégios que seriam propostas pelo novo regime). WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo editorial, 2003.

[7] A globocolonialidade manifesta-se na ascensão e hegemonia global do neoliberalismo. Esse mecanismo de proliferação dos seus desmandos ainda necessita dos Estados como órgão de disseminação jurídico-política das suas ordens e também como braço armado para impor tais condições aos sujeitos desviantes.

[8] Emenda constitucional nº 1, 1969. Art. 170. Às emprêsas privadas compete, preferencialmente, com o estímulo e o apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas. § 1º Apenas em caráter suplementar da iniciativa privada o Estado organizará e explorará diretamente a atividade econômica. § 2º Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as emprêsas públicas e as sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às emprêsas privadas, inclusive quanto ao direito do trabalho e ao das obrigações. § 3º A emprêsa pública que explorar atividade não monopolizada ficará sujeita ao mesmo regime tributário aplicável às emprêsas privadas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm

 

 

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