Você não ouviu o samba que eu lhe trouxe

22/06/2018

O Ministro Luís Roberto Barroso, há algum tempo atrás, citou um trecho da música As Caravanas, do último disco de Chico Buarque, em meio a uma discussão com o Ministro Gilmar Mendes, entre trocas de acusações exaltadas, durante a sessão do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).  

É curioso ouvir os versos de Chico na boca deste Barroso que veste a toga. Como diria um samba conhecido, parece que o Ministro não ouviu o samba que Chico lhe trouxe.

Em As Caravanas, Chico apresenta uma crítica contundente à forma violenta como o controle social é feito em relação às pessoas negras e pobres das comunidades que “invadem” as praias das zonas nobres da capital carioca[1]. A música retrata, com estranhamento irônico, o discurso de uma gente ordeira e virtuosa que apela por punições duras, tem que bater, tem que matar (ou sou eu que ouço vozes?).

Na sessão da semana passada, o STF julgou inconstitucional o art. 260 do CPP, vedando a realização de conduções coercitivas, por restringir de forma indevida a liberdade de locomoção e presunção de não culpabilidade.

O Ministro Barroso foi vencido na oportunidade, tendo votado pela constitucionalidade da condução coercitiva, por meio de ordem judicial: (a) somente após a intimação do investigado ou acusado; (b) independente de intimação quando for hipótese de cabimento da prisão preventiva.

Professor Rômulo Moreira, conhecedor da obra de Chico e do processo penal, se perguntava o que será que andam suspirando pelas alcovas, o que anda nas cabeças e nas bocas. O que não faz sentido[2]

As razões do voto do Ministro chegaram a mim como aquela gota d’água que faz o pote transbordar. Barroso sustentou, com orgulho, que sempre tratou réus ricos e pobres da mesma forma. Paradoxalmente, ele constata que existe uma “velha ordem que precisa ser empurrada para margem da história e acho que nosso papel é empurrá-la”. O curioso papel de empurrar imparcialmente. Fora do mundo de sonhos de João e Maria e no sistema concreto de um processo democrático, não é possível ser bedel e juiz.

O Ministro afirmou também que “ninguém deseja um Estado Policial”, mas que não é possível ser conivente com um “pacto oligárquico que protege essa gente”. Em sua leitura, o “Direito Penal finalmente vai chegando, aos poucos, com atraso, mas não tarde demais, ao andar de cima, aos que sempre se imaginaram imunes e impunes”. E, em seguida, veio a frase mais impactante da sessão:

“Agora que juízes corajosos rompem este pacto oligárquico de impunidade e de imunidade e começam a delinear um direito penal menos seletivo e começam a alcançar criminosos do colarinho branco, há um surto de garantismo, é um mal travestido de bem.”

As concepções do Ministro sobre processo penal parecem tão confusas quanto o eu lírico de A Rosa de Chico. As evidentes restrições de direitos fundamentais são julgadas com tranquilidade de consciência, como se não empurrassem também os mais pobres aos braços de estivador do estado policial. Rosa (a santa!) às vezes trocava o nome do eu lírico de Chico e trazia umas coisas do norte pra compensar. Nessa retórica de enigma de esfinge, é possível continuar a chamar de Estado de Direito – com direito penal “moderado, sério e igualitário” – medidas próprias de Estado de Polícia. Trocar seu nome por Estado de Justiça ou Alberto não altera sua operacionalidade concreta.

O Ministro concebe um projeto de direito penal “equalizado”, que seja “mais manso no andar de baixo e mais sério no andar de cima e, sobretudo, igualitário”. Este delírio de igualdade, imagina o ser humano deslocado de suas condições sócio-históricas, alheio às estruturas de classe e raça, fora das dinâmicas concretas do controle. Só assim é possível crer que os meninos do Brejo da Cruz, o pivete e Geni sejam equivalentes a um engravatado apedrejado (ainda que simbolicamente) e escarrerado na esquina.

Os retrocessos no processo penal marcam os corpos dos pobres como tatuagem e pesam feito cruz em suas costas. As demandas criminalizadoras, a atuação das agências policiais, o desejo de ver morrer da gente ordeira e virtuosa têm direção certa na rosa dos ventos zangada do sistema punitivo.   

Sem aprofundar essa prosa nos diversos problemas do voto do Ministro sobre categorias importantes do processo penal, como as prisões cautelares e seus requisitos, é preciso dizer que essa dualidade em relação ao endurecimento das medidas processuais pode ser percebida em vários casos recentes.

Bom exemplo deste paradoxo são os votos do Ministro Barroso na remição ficta[3], para os casos em que o trabalho não é ofertado nas prisões, e do indulto presidencial de 2017[4]. No primeiro, foi exposta a preocupação em não “modificar substancialmente a política pública do setor”, pois estaria substituindo o Poder Executivo. Deferir uma medida como a remição ficta causaria um “impacto devastador” no sistema penitenciário, segundo o Ministro.

No entanto, na decisão liminar que alterou e reescreveu decreto de indulto presidencial, o Ministro – sob o pretexto de preservar a política criminal definida pelo legislador – alterou expressamente a orientação político-criminal do indulto, que é ato privativo do Presidente da República.

Também de forma curiosa, o voto pela execução antecipada da pena antes do trânsito em julgado[5] e o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro[6] parecem ser coisas absolutamente independentes, como se não fosse levada em conta a potencialidade devastadora desta hermenêutica feita a fórceps. Os 14 mil mandados de prisão expedidos em São Paulo, com base no novo entendimento do STF, apontam para um resultado previsível[7].

Como último exemplo, é possível observar o horizonte de decisão do voto do Ministro Barroso em relação à descriminalização do porte de drogas para consumo[8]. Em seu voto, constrói a imagem de um sujeito que fuma um baseado depois do jantar, em casa. Ao ser provocado, desta vez no sentido positivo do termo, afirma que não conhece os usuários de crack, apenas pela televisão. Não há como fugir à imagem do amigo de Barroso fumando um bom baseado na sala de casa assistindo pela tevê às intervenções violentas da polícia junto aos pobres da chamada cracolândia.

A predominância de um discurso marcado por um viés político, levou os professores Jorge Chaloub e Predo Luiz Lima a mobilizarem a categoria de jurista político[9] para descrever a atuação do Ministro, dentro e fora do Tribunal. Esta leitura é interessante e ajuda a compreender a posição do Ministro, enquanto defensor de um suposto “progressismo reformista”. Os juízes corajosos cumprem um papel essencial, afinal de contas.  O avanço das instâncias judicias sobre a política também marca esta posição, como bem registrado pelos autores do artigo.

Enfim, a manifestação mais recente do Ministro Barroso, referindo-se a um suposto “surto de garantismo” e sua defesa de uma posição contra o “pacto oligárquico”, reforçam o conteúdo de seus votos recentes em matéria processual penal: sob uma retórica de neutralidade, busca-se “equalizar” o direito penal, para repartir a punição igualmente entre ricos e pobres.

O endurecimento de normas processuais penais e a redução de garantias fundamentais são tidas como medidas exclusivamente voltadas a reduzir a impunidade da alta criminalidade, sem considerar que estas medidas tornarão ainda mais graves e absurdas as condições do sistema penal em relação aos mais pobres.

Esse moço tá diferente. Quem te viu quem te vê...

Notas e Referências

[1] Como neste caso: https://extra.globo.com/noticias/rio/pm-aborda-onibus-recolhe-adolescentes-caminho-das-praias-da-zona-sul-do-rio-17279753.html. Acesso em 19 jun. 2018.

[2] Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2018/06/19/sera-mesmo-que-ha-um-surto-de-garantismo-sera-ministro-barroso/. Acesso em 19 jun. 2018.

[3] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380188. Acesso em 19 jun. 2018.

[4] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/LiminarMinistroBarrosoADI5874.pdf. Acesso em 19 jun. 2018.

[5] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246. Acesso em 19 jun. 2018.

[6] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=308712125&tipoApp=.pdf. Acesso em 19 jun. 2018.

[7]  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/apos-decisao-de-segunda-instancia-justica-manda-prender-14-mil-pessoas.shtml. Acesso em 20 jun. 2018.

[8] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z8LhuORvmko. Acesso em 19 jun. 2018.

[9] Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/viewFile/19489/71771. Acesso em 19 jun. 2018.

 

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