Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 29/08/2015
A denominada “guerra às drogas” declarada pelo ex-presidente Richard Nixon em 1971 e intensificada nos anos 80 do século passado rapidamente tomou um aspecto global amparado pela expansão punitivista. A expansão do poder punitivo, de acordo com Maria Lúcia Karam[1], “impulsionada pela proibição e sua política de “guerra às drogas”, nitidamente se revela no encarceramento massivo. Após a declaração de guerra, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos da América por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%. Em duas décadas, entre 1980 e 2000, o número total de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de dois milhões, transformando a antiga ‘land of the tree’ no país que mais encarcera no mundo. Enquanto sua população corresponde a 5% dos habitantes do globo, os Estados Unidos da América 25% da população carcerária mundial”.
No Brasil, segundo país no mundo em que a população carcerária mais cresceu na última década, a situação, guardada as proporções, é praticamente a mesma. Com a terceira ou quarta maior população carcerária do planeta, cerca de 600.000 presos, o correspondente a mais de 300 presos por cem mil habitantes, o Brasil está bem acima da média mundial de encarceramento, que é de 144 presos por cem mil habitantes. Salienta-se que 27% (segundo dados do INFOPEN – junho de 2014) da população prisional cumprem a pena ou aguardam o julgamento por tráfico de entorpecentes. O homicídio corresponde a 14% e o latrocínio (roubo do qual resulta morte) a apenas 3%. Segundo os dados do INFOPEN, 56% da população prisional é formada por jovens entre 18 a 29 anos. A porcentagem de pessoas negras no sistema prisional é de 67% . Dois em cada três presos são negros. O grau de escolaridade da população prisional brasileira é baixíssimo. Oito em cada dez pessoas presas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental. Ainda, segundo os dados do INFOPEN, foram registrados 565 mortes nas unidades prisionais no primeiro semestre de 2014 (sem dados dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro), sendo que cerca de metade dessas mortes podem ser consideradas mortes violentas e intencionais.
Os dados do INFOPEN revelam que a cultura do encarceramento, a expansão do poder punitivo e a “guerra às drogas” têm nome, cor, endereço, escolaridade etc. São os mais vulneráveis que são selecionados pelo sistema penal. “Eles”, os “outros”, os “perigosos” é que são considerados os inimigos e que, portanto, devem ser neutralizados pelo sistema.
Na “guerra às drogas” a seletividade do sistema penal se mostra mais evidente. Assim, necessário destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Não é sem razão que a grande maioria da população carcerária é composta por negros e pobres. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou Jacqueline Sinhoretto, em estudo sobre o mapa do encarceramento, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantidade pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico", disse a pesquisadora.
Como já asseverou Maria Lúcia Karam[2] a “guerra às drogas” não é e nem nunca foi uma guerra contra as drogas, trata-se na verdade de guerra contra as pessoas. “A nociva e sanguinária ‘guerra às drogas’ é uma guerra contra os produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas. Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da nociva e sanguinária ‘guerra às drogas’ são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Os ‘inimigos’ nessa guerra são os pobres, os marginalizados, os não brancos, os desprovidos de poder”.
Esses sim, os negros, os favelados, os sem-teto, são as verdadeiras vítimas dessa “guerra às drogas”. São eles que são presos, processados e condenados. São eles que têm seus barracos invadidos sem qualquer ordem judicial. São os que são mortos em supostos “confrontos” e “resistência” pela policia.
Vera Malaguti Batista[3], em estudo profundo sobre as drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, concluiu que “o mercado de drogas ilícitas propiciou por um lado uma concentração de investimento no sistema penal, uma concentração de lucros decorrentes do tráfico e, principalmente, propiciou argumentos para uma política permanente de genocídio e violação dos direitos humanos contra as classes sociais vulneráveis: sejam eles jovens negros e pobres das favelas do Rio de Janeiro, sejam camponeses colombianos, sejam imigrantes indesejáveis no Hemisfério Norte”.
Por tudo, resta saber por quanto tempo mais vamos ter que assistir o encarceramento em massa de uma população desprovida de tudo. Quantos jovens ainda deverão morrer para que haja uma radical mudança na política de drogas.
Belo Horizonte, agosto de 2015.
Notas e Referências:
[1] KARAM, Maria Lúcia. Legalização das drogas. 1ª ed. São Paulo: Estudos Editores.com. 2015 (coleção para entender direito).
[2] Idem.
[3] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. ICC: Freitas Bastos, 1998.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUC Minas.
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