Virou moda falar sobre a reforma tributária: "a imprensa fala, todos falam, mas pergunte a um deputado ou a um senador qual a diferença entre taxa, imposto e contribuição. Eles não sabem!" - Confira a entrevista com o Prof. Dr. Ubaldo Cesar Balthazar

26/06/2015

Por Marcelo Pertille - 26/06/2015

Professor, o que é reforma tributária? É, aproveitando a pergunta, uma medida viável?

Costumo dizer que há três sentidos para a expressão reforma tributária: o primeiro refere-se a uma reforma constitucional ampla; o segundo alude-se a uma reforma constitucional restrita e, por último, aquele que alcança apenas alterações infraconstitucionais.

Por reforma constitucional ampla entende-se uma modificação completa na distribuição de competências tributárias. Atualmente a Constituição Federal discrimina as competências tributárias entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Define quem é competente para instituir os tributos. A União tem competência para instituir sete impostos e todas as contribuições especiais, os Estados podem criar três impostos, taxas e contribuições de melhoria, e os Municípios detêm competência para instituir também três impostos e mais as suas taxas e contribuições de melhoria. Aliás, a União também pode instituir taxas e contribuições de melhoria. O mesmo ocorre com o Distrito Federal, que institui os tributos estaduais e municipais.

Considerando que o Brasil é uma federação, penso que uma reforma tributária, qualquer que seja o alcance da expressão dentre as três acepções mencionadas, teria que gerar harmonia e isonomia na distribuição de competências. De toda sorte, temos que definir qual o tipo de reforma que desejamos. É fundamental refletir acerca da real necessidade de uma completa reestruturação tributária ou se precisamos apenas de medidas com reflexos pontuais, principalmente no capítulo da Constituição que versa sobre o Sistema Tributário, e que não afetariam a distribuição de competências.

Mas imagino que a reforma infraconstitucional seria a mais apropriada porque a União, com essa competência para instituir praticamente todas as contribuições especiais, com exceção daquelas previdenciárias dos Estados e Municípios, e ficando com a totalidade da receita, acaba repartindo muito pouco. De notar que nos últimos 10 anos os Estados, por conta de pressões políticas, conseguiram aprovar duas emendas que obrigaram a União repartir um pouco mais a receita de algumas dessas contribuições sociais.

Mas insisto que para dar efetividade ao pacto federativo precisamos redistribuir competências. Uma vantagem da realização de uma reforma constitucional restrita seria a de remeter à lei, ordinária ou complementar, muito do que está hoje constitucionalmente previsto sobre o sistema tributário. O constituinte acabou transformando o texto constitucional, na parte tributária, em um minicódigo tributário por conta da tradicional cultura brasileira da “lei que cola e lei que não cola”. O que ocorre com a regulamentação constitucional do ICMS, por exemplo, é algo fantástico. Há regras ali que poderiam estar até em decretos, mas estão na Constituição para prevenir a guerra fiscal entre os Estados membros da federação.

Mas por que digo que a melhor reforma seria a legal? Porque mesmo mantendo essa discriminação de competências é possível fazer com que a União distribua mais recursos para os Estados e Municípios sem que seja necessário alterar o texto constitucional. Para tanto bastaria limitar a competência da União para criar contribuições especiais e uma pequena emenda para dar aos Estados, Distrito Federal e Municípios competência para instituir duas ou três contribuições especiais, com finalidades específicas.

Enfim, considerando esses três conceitos de reforma tributária, na verdade, se formos perguntar para deputados e senadores o que é reforma tributária eles não saberão dar a resposta, pois muitos deles não sabem do que estão falando.

Virou moda falar sobre o tema. Digo isso porque já fiz essa pergunta a um deputado e a um senador e percebi que ambos não tinham as noções necessárias para enfrentar a questão. A imprensa fala, todos falam, mas pergunte a um deputado ou a um senador qual a diferença entre taxa, imposto e contribuição. Eles não sabem!

Imagino que os parlamentares entendam que reforma tributária significa tão somente repartir recursos, fazendo com que a União tenha que dar mais dinheiro aos Estados e Municípios. Essa não é uma reforma tributária, mas uma reforma na repartição de recursos federais!

Reafirmando minha posição, defendo que a reforma legal seria mais apropriada porque o grande problema de uma reforma constitucional seria conciliar todos os interesses dos envolvidos, com consequente repartição de recursos, atendendo à União, aos Estados, Distrito Federal, Municípios, classe empresarial (indústria e comércio), sindicatos patronais e dos trabalhadores, associações e até conselhos de bairros.

Realizamos uma reforma tributária em 1965, que foi a única grande reforma feita por aqui. Muitos afirmam que a emenda 18/65 promoveu a maior reforma tributária já feita no Brasil. Costumo dizer que não, pois nem antes nem depois dela houve qualquer reforma digna desse nome. Ela foi, na verdade, a única reforma tributária jamais feita. Acabou com um sistema tributário que nem dava para chamar de sistema, era um caos. Alfredo Augusto Becker chamava a legislação tributária de “cipoal tributário”, e de “manicômio jurídico tributário”. Era uma desorganização completa, com origens no Brasil Colônia, fruto de um conjunto de regras que foram sendo constantemente adaptadas sem que fossem consideradas como parte de um sistema. Basicamente só contadores conseguiam entender de fato aquele emaranhado.

Em 1965 houve de fato a reforma tributária, mas ninguém foi ouvido. Ela foi imposta pelo governo militar sob a condição: “ou aprova, ou eu fecho o congresso”. Isso também ocorreu com a Constituição de 1967, pois dizer que ela teria sido promulgada é uma brincadeira...

Então, considerando o período democrático que vivemos, o senhor diria que é praticamente impossível fazer uma reforma tributária constitucional?

Sim, é impossível. Em um governo forte e autoritário, que não ouça ninguém, que imponha vontades, é possível. Hoje vivemos outra realidade. Pode ter certeza, nunca mais conseguiremos realizar uma reforma constitucional tributária ampla.

Se o país é democrático, e os movimentos sociais dos últimos tempos tem provado um amadurecimento da população nesse sentido, o conflito de interesses é barreira para uma reestruturação geral do sistema tributário.

Então, assim como boa parte do mundo fez e faz, precisamos implementar pequenas reformas. A maioria dos países europeus fez reformas tributárias antes mesmo de existir uma disciplina jurídica  denominada Direito Tributário, pois o tributo é tão antigo quanto o Estado, mas Direito Tributário é coisa nova, do século XX. Este ramo jurídico tem o DNA alemão do Código de 1919, logo depois da primeira guerra. Ali começou uma organização, a formação de um sistema em torno de um conceito nuclear, o tributo, consolidação de princípios, formação de institutos. A partir dali os Estados Europeus começaram suas adequações com o que eu chamo de revoluções tributárias. Foi quando se consolidou a social democracia em boa parte da Europa, momento em que as elites europeias perceberam que era preferível ceder os anéis a perder os dedos... Mas isso é outra conversa.

A partir de lá a Europa não defende mais reformas tributárias amplas. Os países fazem pequenos ajustes. Fernando Henrique Cardoso e Lula perceberam isso muito bem, pois tivemos minirreformas em seus governos o tempo todo.

As várias propostas de reforma dos anos 1990 foram unificadas, em 1996, em uma única, a famosa PEC 175-A, que também não foi aprovada, mas suas ideias foram sendo incorporadas à Constituição tanto por FHC, e seu segundo governo, como por Lula, em sua gestão de oito anos. Compreendeu-se que seria mais fácil trabalhar os interesses em jogo com pequenas  mudanças. E, em um país que hoje enfrenta uma crise política, onde as ideias políticas estão polarizadas, é ainda mais difícil. Além do mais, uma reforma constitucional de grande porte implicaria em divisão de recursos e a União, sobretudo ante a crise econômica em que vivemos, não tem o menor interesse em dividir ainda mais o bolo...

Mas insisto que pequenas adaptações são possíveis, pois ideias fragmentadas são de melhor absorção, como ocorreu com a Emenda 42/2003 no governo Lula. Lula, aliás, prometeu que até o fim do seu mandato faria uma grande reforma e não conseguiu, mas penso que ele sempre soube que seria quase impossível.

Professor, qual seria o primeiro passo de uma reforma pontual?

Instituição do imposto sobre grandes fortunas, que está previsto na Constituição, mas que, como sempre digo, não é implementado porque as grandes fortunas não permitem.

Até, e isso envolve questão terminológica, não seria necessário criar o imposto, efetivamente. Certamente que seria importante tributar as grandes fortunas, como fazem alguns países europeus, como Noruega, França e Espanha, que aplicam alíquotas pequenas sobre grandes patrimônios, e altos rendimentos, visando uma melhor distribuição do ônus fiscal.

Outros países europeus adotam outra estratégia, pois em vez de criar um imposto diferente, incidente sobre grandes fortunas, apenas mexem na tabela de alíquotas do imposto de renda da pessoa física. Já há hoje uma psicologia do tributo sendo estudada e concluindo que é mais fácil tributar consumo do que renda. As pessoas tendem a não saber quanto pagam de impostos nas despesas do dia a dia, mas incomodam-se, por exemplo, em ter, a cada ano, que pagar ao Estado o equivalente ao ajuste fiscal relativo ao Imposto de Renda.

O Imposto de Renda tem efeito psicológico adverso à medida que o contribuinte, quando faz a declaração, toma consciência e passa a saber, efetivamente, quanto está pagando. Mas o susto seria maior se cada um soubesse quanto pagou de ICMS,de IPI, de contribuições sociais durante o ano.

E tudo isso, importante ponderar, agrava-se com a má qualidade dos serviços públicos, que faz com que as pessoas optem por sonegar diante da certeza de que a receita fiscal é mal empregada.

E sob o ponto de vista da população que vê a reforma tributaria como saída para pagar menos tributo?

Até agora falamos do plano estatal, mas para o contribuinte a reforma tributária ideal seria aquela que atendesse a um critério de capacidade contributiva. Há a necessidade de impostos sobre patrimônio e renda que exijam mais de quem tem mais capacidade e, para isso, é necessário mexer nos limites da tabela do Imposto de Renda também. Hoje todos que tem renda mensal a partir de R$ 4.664,68 estão sob a mesma alíquota de 27,5%, não havendo diferença entre aqueles que recebem cinco, dez ou cem mil reais.

Para o contribuinte a reforma tributária ideal está ligada à confecção de uma tabela de alíquotas reais, proporcional à capacidade econômica e que atenda ao principio constitucional da capacidade contributiva.

Também é importante que os impostos de consumo sejam realmente seletivos, tributando de forma menos onerosa os produtos essenciais. Alguns defendem que já fazemos isso hoje, no que respondo: vamos devagar! Energia elétrica é um bem supérfluo ou essencial? Não há dúvida de que é essencial e, no entanto, tem uma das alíquotas mais elevadas, cerca de 25%.

O senhor acha que o brasileiro paga muito imposto?

É difícil dar essa resposta. A carga tributária brasileira é de fato elevada, considerando a economia brasileira e a renda média do brasileiro. Mas estamos longe de ter a carga tributária mais elevada do mundo.

Em relação ao PIB nossa tributação gira em torno de 37%. Muitos Estados europeus tem a carga tributária perto dos 45%. E por que lá ninguém reclama? A resposta está no retorno que recebem da Administração Pública. A Suécia no final dos anos 90 fez uma profunda reforma na previdência e, na oportunidade, a mídia brasileira noticiou que até eles estavam acabando com alguns serviços sociais. Não acabaram com nada, até aumentaram.  Cortaram o que acreditavam ser supérfluo.

O senhor concorda que é necessário explicar melhor ao contribuinte o que é feito com o tributo pago para que se sinta mais conformado?

Sim. Até já trabalhei em um artigo essa questão, que envolve o grau de resignação do contribuinte brasileiro. Ninguém gosta de pagar tributo, nem os brasileiros nem os suecos. Um juiz da Suprema Corte americana do século XIX disse que gostava de pagar tributo porque com ele era possível comprar civilização. É preciso que a pessoas possam confiar na ideia de que arcar com esse ônus acaba produzindo bons serviços. Isso conforta! É a questão da solidariedade, de fraternidade aplicada ao tributo. Temos, inclusive, que acabar com o conceito de fraternidade entendido apenas sob o viés filosófico-religioso. Deve ser visto como instituto jurídico mesmo. A fraternidade deve ser aplicada para que não tenhamos uma disparidade de renda tão grande quanto temos hoje no Brasil. O último livro de Thomas Piketty, O Capitalismo no Século XXI, mostra que a Europa está passando por um movimento, depois dos trinta anos da Social Democracia Europeia, que novamente começa a concentrar renda. Após pesquisar por mais de dez anos, Piketty propõe medidas para que se reequilibre essa equação. O mundo, não só o Brasil, precisa de um equilíbrio.

Professor, quais caminhos o senhor indica para a tão falada reforma tributária?

É necessária a harmonização de tributos sobre consumo (IPI, ISS ICMS) e também de algumas contribuições sociais. Unificar tudo isso e criar um único imposto sobre o valor acrescentado, o chamado IVA. Como já participamos do Mercosul, uma forma de fazer o contribuinte empresário brasileiro não sair em desvantagem frente aos demais membros do bloco, seria fazer com que os cinco membros arcassem com os mesmos tributos,que é algo que já fazem entre eles. Eles já tem o imposto sobre valor agregado. A União Europeia tem vinte e sete Estados e está conseguindo conciliar os diversos interesses. Perceba que eles têm realidades muitos diferentes entre si. Mas primeiro precisamos fazer nosso dever de casa, aqui dentro do Brasil. Precisamos criar o nosso IVA, que incidiria sobre a produção, circulação e consumo. Seria uma reforma tributária pontual. Já tentamos isso, no final dos anos 1990, mas foi difícil conciliar interesses dos Estados, Municípios e União. Voltamos à estaca zero, pois os governadores não abriram mão da administração do IVA, cedendo-a à União. Precisamos dessa harmonização interna e depois buscar compatibilizar interesses com o Mercosul. Mesmo que o Mercosul esteja hoje desacreditado, no futuro essa política de interação comercial entre os Estados será necessária, não há outra saída. Para enfrentar os gigantes (União Europeia, EUA e Japão), nós temos que fortalecer o continente. Algo como a ideia antiga de Simon Bolívar de fazer um Estado Latino-Americano, uma utopia hoje. É algo que espero que um dia alcancemos, apesar das realidades tão distintas. Formaríamos uma espécie de Confederação Latino-Americana de Estados.

O senhor entende que a reforma tributária é mais emergencial que a política?

Diria que precisamos primeiro da reforma política. Acabar com o financiamento privado de campanha e com esse elevado número de partidos. Também acabar com diversas outras práticas que são verdadeiros convites à corrupção, como, por exemplo, algumas espécies de “caixa 2”, que nem são consideradas crime. Eu pergunto: quem entrega dinheiro a um candidato porque concorda com o seu programa político? É um dinheiro emprestado a juro e cobrado no momento certo. Antes de se falar na reforma tributária, que é difícil diante dos muitos interesses, temos que fazer uma verdadeira reforma de Estado. É de interesse do próprio Estado que isso se efetive. A reforma tributária também é de interesse do Estado, mas envolve, mais diretamente, os interesses de partes da sociedade. A reforma política organizaria a casa para, num segundo momento, todos os interessados sentarem a mesa para conciliar interesses na reforma tributária, que, como disse, deve ser pontual.

O senhor entende que o sistema tributário é muito complexo para a população entender o que e como paga?

A Secretaria da Fazenda aqui de Santa Catarina tem um projeto de uma disciplina que é ministrada nas escolas, sobre educação fiscal. É preciso ensinar os nossos jovens sobre a importância do imposto. Não fizemos isso ainda. As pessoas pagam e não sabem o porquê e nem para onde vai esse dinheiro. Muitos administradores públicos também não sabem, ao entendem nada de tributos. Esses impostômetros colocados em algumas cidades deviam, por exemplo, se chamar tributômetros. A mídia também não entende e acaba não ajudando. O tema tributário é complexo, mas diria que nos mesmos moldes dos outros ramos do Direito, que também fazem parte do dia a dia da população, pode ser ensinado e compreendido por todos.

Muito obrigado pela atenção, professor!


Sem título-1Dr. Ubaldo Cesar Balthazar é Doutor em Direito pela Universidade Livre de Bruxelas (1993, Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1983). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1974), Atualmente é Professor Titular, em regime de Dedicação Exclusiva, da Universidade Federal de Santa Catarina. Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, mandato 2012-2016. Professor convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e do Instituto dos Advogados de Santa Catarina (IASC). Atual Presidente do Conselho Curador da Fundação José Arthur Boiteux. Escritor.        


Sem título-9

.

Marcelo Pertille é Especialista em Direito Processual Penal e Direito Público pela Universidade do Vale do Itajaí, Advogado e Professor de Direito Penal de cursos de graduação em Direito e da Escola do Ministério Público de Santa Catarina.              

.                                                                                                                    


Imagem Ilustrativa do Post: Speak into the Mic // Foto de: Alan Levine // Sem alterações


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura