O Anuário Brasileiro de Segurança Pública[1], 2024, revela que a letalidade policial continua extremamente elevada, notadamente contra os mais vulneráveis.
Desde 2013, quando o Fórum Brasileiro de Segurança Pública passou a monitorar o indicador mortes decorrentes de intervenções policiais em território nacional, o crescimento no número de pessoas mortas foi de 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas no ano passado. Isso significa que 17 pessoas são mortas diariamente pelas forças policiais brasileiras em ocorrências que presumem o excludente de ilicitude, ou seja, que o agente estatal fez uso da força letal em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal/no exercício regular de direito. Embora a elevada letalidade não seja um fenômeno característico de todas as forças policiais brasileiras, é possível afirmar que em pelo menos metade dos estados as mortes por intervenções policiais têm se mostrado um problema em anos recentes.
A letalidade policial quase triplicou numa década. A polícia continua matando. Sempre ou quase sempre, pessoas jovens, pobres, negras e faveladas. Pessoas invisíveis e que somente são vistas depois de mortas quando se transformaram em cadáveres ou rostos estampados nos jornais. Não resta dúvida de que a sociedade também puxa o gatilho que mata essas pessoas. Somos participes dessas mortes. Não são raras as vezes que boa parte da sociedade ignora ou, até mesmo, aprova atitudes da polícia que procura através dos forjados “autos de resistência”[2] ou da desqualificação completa das vítimas - “bandidos” – justificar suas ações. Outra forma bastante comum de tentar justificar suas ações é a alegação - que não resistiria a uma investigação séria – de que as mortes ocorreram em confrontos com criminosos armados e em tiroteios.
É imperioso advertir que a chance de um negro (preto ou pardo) ser morto é quatro vezes maior que de um branco. A colunista ANA CRISTINA ROSA, em artigo publicado na Folha de São Paulo, no último dia 22, assevera que o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou um verdadeiro massacre racial. Coisa que faz do slogan ‘na dúvida, mate o negro’ a ilustração perfeita da prática das polícias”.[3]
De acordo com O Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
Enquanto a taxa de mortalidade de pessoas brancas foi de 0,9 mortos para cada grupo de 100 mil pessoas brancas, a taxa de negros foi de 3,5 para cada grupo de 100 mil pessoas negras. Isto significa dizer que a taxa de mortalidade de pessoas negras em intervenções policiais é 289% superior à taxa verificada entre pessoas brancas, na evidência do viés racial nas abordagens e no uso da força das polícias brasileiras. Em relação à proporção, 82,7% das vítimas eram negras, 17% brancas, 0,2% indígenas e 0,1% amarelos.
Necessário destacar, como faz com toda propriedade ORLANDO ZACCONE, que “a polícia mata, mas não mata sozinha”.[4] Na verdade, quem mata é o sistema penal. O sistema mata os pobres, os negros, os favelados, analfabetos, enfim, os vulneráveis. Quando não mata, encarcera. Conforme salientou o desembargador SÉRGIO VERANI, em sua tese no concurso para Livre Docência de Direito Penal, em 1988, “em todas as hipóteses, a ação violenta e criminosa do policial é justificada com o procedimento denominado ‘auto de resistência’ – prática ilegal e inconstitucional – e legitima-se através do discurso do Delegado, através do discurso do Promotor, através do discurso do Juiz”. [5]
A violência policial no Brasil tem raízes históricas. Quando a família real chegou ao Rio de Janeiro encontrou, segundo historiadores, uma “população hostil e perigosa” e muitos africanos. Com o temor que se repetisse no Brasil a mesma revolta de escravos ocorrida no Haiti em 1792, a realeza de Portugal logo formou uma força policial para controlar as chamadas “classes perigosas” que viviam no Rio. Constata-se assim que a função original e prioritária da polícia era defender a elite dirigente (realeza e seus aliados) contra as “pessoas perigosas e de cor” e, também, de recapturar escravos fugidos. Talvez aí resida a explicação para que até hoje, 200 anos após sua criação, a polícia continue agindo preconceituosamente e para defender prioritariamente os interesses das classes dominantes.
Não se pode negar que a repressão violenta ao crime, ou melhor, ao criminalizado sempre foi uma “delegação tácita conferida à polícia por parte dos grupos dominantes”[6]. É inegável, também, que o direito penal tem por alvo, preferencialmente, o crime comum (furto, roubo, “tráfico” e uso de drogas) – “crime de rua” – praticado por aqueles que são criminalizados, ou seja, os pobres, negros e excluídos da sociedade.
É preciso também salientar e reconhecer que muitos polícias também são vítimas da violência. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
Em âmbito nacional houve aumento nas mortes em confronto em serviço de policiais civis (8 em 2023 ante 4 em 2022) e de policiais militares (46 ante 39), enquanto as mortes em confronto ou por lesão não natural fora de serviço apresentaram queda, 12 em 2023 contra 20 em 2022 para policiais civis e 61 em 2023 ante 92 em 2022 entre policiais militares.
O Anuário também traz dados relativos ao número de suicídios de policiais por inúmeros fatores, principalmente em razão da “alta exposição ao estresse e ao trauma”. No ano de 2023, em relação ao ano anterior, a taxa de suicídios de policiais civis e militares da ativa cresceu 26,2%.
Os policiais, de algum modo, acabam se tornando vítimas, vítimas de um sistema inumano e cruel, de um mundo igualmente perverso. Neste mundo “mocinhos” e “bandidos” se confundem.
Urge que seja discutida uma reforma estrutural e substancial das polícias, bem como do sistema penal – fundado no punitivismo e no direito penal “da lei e da ordem” que tem levado ao encarceramento em massa e da massa -, em “termos técnicos, o sistema de segurança pública e justiça criminal manteve-se basicamente com as mesmas estruturas e práticas institucionais do regime militar inaugurado em 1964 (...)”.[7]
Por tudo, necessário dar um basta, definitivamente, na violência perpetrada pelos agentes do Estado que, embora seja vedada pela Constituição da República, aplicam a pena de morte – sem processo, sem contraditório, sem ampla defesa e sem julgamento. Os condenados à pena de morte no Brasil não têm direito a “última ceia”, também, não são acompanhados por um ministro religioso e, muito menos, se despedem da família. Enquanto essa política abominável de extermínio permanecer, especialmente contra os mais vulneráveis, a dignidade da pessoa humana (fundamento da República Federativa do Brasil) não passará de mera ficção.
P.S.: Enquanto escrevia este artigo dezenas de mulheres e meninas foram vítimas de estupros. O Brasil registrou um estupro a cada 6 minutos em 2023, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Notas e referências:
[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.or.br/handle/123456789/253 . Acesso em: 19/7/2024
[2] De acordo com Orlando Zaccone “o auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa”. (ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.)
[3] https://www.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2024/07/o-destino-dos-negros.shtml
[4] ZACCONE, Orlando. op. cit.
[5] VERANI, Sérgio. A globalização do extermínio, in Discursos sediciosos: crime, direito, sociedade. Instituto Carioca de Criminologia. Ano I, n. 1 (jan./jun. 1996). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
[6] MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Violência e ordem social. Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.
[7] BUENO, Samira. Letalidade na ação policial, in Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.
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