Violência policial na favela do Jacarezinho: uma crítica da ação do Estado Penal

11/05/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

“A polícia brasileira mata, em massa” (PESCHANSKI E MORAES, 2015, p. 61). Esta é a primeira frase escrita pelos autores no ensaio intitulado “As lógicas do extermínio” que eles escreveram para o livro “Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, uma coletânea de textos que versam sobre violência policial e segurança pública.

Desde o dia 05 de junho de 2020, estão suspensas as “operações policiais” em comunidades vulnerabilizadas no estado do Rio de Janeiro. Foi determinada pelo ministro Edson Fachin e confirmada pelo Superior Tribunal Federal (STF), no dia 05 de agosto de 2020, a decisão liminar que restringiu as operações realizadas a casos “absolutamente excepecionais”, enquanto durasse a pandemia do coronavírus.

Entretanto, na data de 06 de maio de 2021, enquanto morrem cerca de 2.000 pessoas por dia no Brasil, em decorrência da COVID-19, uma “operação policial” entrou na favela do Jacarezinho e vitimou fatalmente 28 pessoas, dentre elas, um policial civil. Destas, somente três constavam na lista de procurados pela polícia. Segundo os autores acima, não há uniformidade em termos de território nas ações policiais do Rio de Janeiro, elas obedecem a um perfil característico que se repete: são homens, pobres, pretos, jovens e moradores de favelas (PESCHANSKI & MORAES, 2015). Vale ressaltar que este também é o perfil da população carcerária hoje no Brasil, ou seja, ou se extermina ou se encarcera esta população.

28 óbitos não é número que justifique qualquer operação de Estado. 28 vidas não podem ser ceifadas pelos agentes de segurança do Estado Democrático de Direito. Foram 28 execuções sustentadas pela falácia do combate às drogas, um mito que reverbera em um massacre à população pobre e periférica, tendo em vista que as execuções e o cárcere atingem a quem está na ponta do tráfico, e não aos grandes e poderosos nomes deste poderoso “empreendimento”. Perguntamos o quanto o modelo de uma "operação policial", nos moldes como se deu a do Jacarezinho, vai contribuir para a redução do tráfico de drogas. Indagamos ainda que legado esta operação deixa para sociedade.

Nos regimes democráticos que se situam dentro dos limites do Estado de Direito, o poder público “reivindica o monopólio da violência legítima, mas não a disposição ilimitada sobre a vida, como nos regimes autoritários”[1]. Contudo, necessitamos acentuar nosso olhar crítico diante de uma violência perpetrada contra a população subalternizada da sociedade brasileira. Precisamos problematizar sobre o modelo de “estado de exceção” que só funciona dentro das comunidades. É necessário ainda adensar as discussões sobre que modelo de democracia temos no Brasil e quem cabe nele, no que diz respeito a garantia de direitos fundamentais, como o direito à própria vida.

É o Modo de Produção Capitalista (MCP) quem dita as regras de quem deve viver e quem pode morrer na sociedade atual. A própria pandemia do coronavírus escancarou as limitações deste sistema econômico, que deixou mais que evidente que, em que pese tenham sido vistas milhares de ações de solidariedade, o sistema de produção de lucro se sobressaiu de forma demasiada, deixando que vidas se perdessem em detrimento da escolha entre “salvar a economia” X “salvar as vidas das pessoas”.

A necropolítica e o fenômeno do biopoder dos quais fala Achiles Mbembe (2019), autor que tece compreensões críticas sobre como a morte estrutura a ideia de soberania, política e sujeito, nos fazem refletir sobre o papel institucional do Estado (aparelhado de armas, balas e tanques de guerra) diante da população que não tem instrumento algum de defesa, mas que, ao contrário disso, luta para sobreviver numa sociedade que aguça os critérios meritocráticos de valorização e reconhecimento, sem proporcionar condições concretas de oportunidades.

Para esta compreensão, recorremos às discussões impostas por Loic Wacquant (2011) sobre as ações do Estado diante das classes populares, ou seja, aquelas diretamente enfraquecidas pelo MPC. O autor afirma que a intensificação da violência, provocada pelo fortalecimento das ações neoliberais, fragiliza as relações de trabalho na sociedade e, consequentemente, as condições de vida da população. Ele afirma ainda que o próprio Estado acaba num invólucro, se percebendo na sua incapacidade de conter a fragmentação do acesso ao trabalho assalariado provocada por ele mesmo, fator que manteria a população sob controle.

Diante desta situação, este aparelho ideológico precisa destinar ações de coerção e repressão para conter a população que ele mesmo vulnerabiliza. Ou seja, na falta de ações de cunho social que dêem amparo a esta população, as instituições estatais (no nosso caso, o aparelho ideológico repressor policial) passam a contê-la com ações de cunho repressivo e coercitivo (ALTHUSSER, 1970). É a caracterização mais concreta do estabelecimento do Estado Penal em detrimento do Estado Social. Mais do que isso, como aconteceu na favela do Jacarezinho, as ações são truculentas e terminam em execuções, deixando, na história da comunidade, uma mancha de sangue que nunca será esquecida.

Dessa forma, o Estado gera desesperança e violência, que passam a se intensificar cada vez mais e se acumular especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos (WACQUANT, 2003).

Sobre a realidade de países como Brasil, o autor acrescenta:

A penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século (Wacquant, 2003, p. 09).

Não esquecemos que, com a ampla organização político-ideológica, na qual se ancora a sociedade atual, se engendram forças que aniquilam as camadas mais baixas da pirâmide social. Temos, com isso, a consolidação da questão social, que significa o conjunto dos problemas políticos, sociais e econômicos pautados pela emergência da classe trabalhadora neste processo de constituição da sociedade capitalista. Yamamoto (2007, p. 31) define a questão social como “a manifestação no cotidiano da vida social da contradição capital-trabalho”.

É diante deste estado de coisas que uma ação policial, que se afirma a partir da falácia do combate ao tráfico de drogas, legitima seu discurso de que foi uma “operação de sucesso”. Sucesso para quem? Qual o setor da sociedade ganhou com uma chacina que executou 28 pessoas?

Foi com esta indignidade que foi tratada a comunidade do Jacarezinho, pois no campo da segurança pública, a polícia foi, historicamente, a referência institucional regular do Estado a entrar nas favelas. E essa ação sempre teve como foco “o ataque a grupos criminosos ou o controle do território, nunca a perspectiva de respeito aos direitos dos moradores, principalmente no campo da segurança pública. Assim, as ações policiais sempre foram caracterizadas pela truculência, violência e pelo sentimento de impunidade” (WILLADINO, NASCIMENTO E SILVA, 2018, p. 14).

Agindo assim, a polícia não entra na categoria “justiça”, muito menos como parte do aparelho do Estado que visa garantir direitos. Ela consiste num ente material e representativo das forças ideológica e repressiva estatais. Fernanda Mena (2015) afirma que o embrutecimento do aparelho policial é o mesmo da sociedade brasileira, uma nação “em que se banalizaram o assassinato, o racismo, o desrespeito às leis e à corrupção” (p. 21). A autora aprofunda esta discussão na defesa de um processo que se inscreve a partir da prerrogativa da desmilitarização da polícia militar, além da unificação desta com a polícia civil, onde afirma que “ter duas polícias [uma com poder ostensivo e outra com poder investigativo] é um acidente histórico” (p. 23).

Luiz Eduardo Soares (2015) reforça este posicionamento incorporando a ele que a saída para o trauma da violência não é a vingança, mas o necessário restabelecimento da confiança da população com o laço social, com ações de engajamento das pessoas em suas comunidades de origem, através de uma corresponsabilização da população pela esfera pública. Contudo, a ações estatais só reforçam as iniquidades na esfera de uma relação desigual entre comunidade e aparelho policial, na qual a comunidade perde seus filhos e a instituição polícia perde sua credibilidade. Ou seja, só vemos perdas em ambos os lados deste massacre político.

Diante disso, a proposição sobre as ações de segurança pública defendida por Franco (2014) vai na direção de que estas

não se restringem ao policiamento, armamentos, crime e/ou castigo, mas repousam, sobretudo, em análises e perspectivas que envolvem todas as áreas da sociedade, desde os investimentos públicos, considerando a Lei de Responsabilidade Fiscal, até a mudança de paradigmas para o conjunto da sociedade. Entende-se que a Segurança Pública deve ser considerada como o resultado da articulação de diversas políticas sociais, visando a defesa de direitos, garantia e promoção da liberdade (p. 23).

Presumimos, portanto, que esta se refere a uma concepção ampla situada dentro do macrossistema que dita as regras de convivência da sociedade e os modos de produção de vida que nela se estabelecem. Esta concepção de segurança pública implica ações que devem ser garantidas pelo Estado para que as cidadãs e os cidadãos possam viver em harmonia, numa condição de respeito mútuo e na tentativa de evitar alterações ou rupturas da ordem social. Mas, assim havendo, que o Estado intervenha em favor da manutenção deste ordenamento, sem onerar vidas.

O que aconteceu no Jacarezinho não foi um erro crasso de atuação de um aparelho policial despreparado. O que ocorreu é da ordem do inconcebível, do inaceitável. É razão para uma nação levantar e exercer seu direito pleno a contestação e reivindicação pela garantia de direitos. Na desigual relação que se estabelece entre os dois lados da moeda, ambas perdem, mas perde mais o lado conde as vidas estão sendo fortemente ceifadas, aquele do qual são negados direitos a dignidade. Jovens pobres e moradores da periferia não são inimigos da sociedade, são parte dela, merecem todo investimento em ações sociais que garantam seu direito à vida, primeiramente, depois à assistência social, educação, cultura, lazer... igualmente são merecedores os jovens das classes mais abastadas da sociedade brasileira.

E ao aparelho policial, muitas vezes tão execrado nos textos acadêmicos, necessitamos rever seu papel, sua função diante da população, precisamos desconstruir esta noção de segurança pública que coloca a própria população sob a mira dos seus calibres. Precisamos formar esta máquina a partir de conceitos críticos em defesa de direitos humanos de forma integralizada e contextualiaza, uma formação que a faça refletir sobre a sociedade do capital e sobre a sua plena capacidade em atenuar os efeitos funestos da questão social dos quais eles mesmos também são vitimados.

 

Notas e Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial presença, 1970.

FRANCO, M. UPP: A Redução da favela a três letras: uma análise da política de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro. (Mestrado em Administração Pública) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, p. 136. 2014.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

MENA, F. Um modelo violento e ineficaz de polícia. In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 19-26). São Paulo: Boitempo, 2015.

SOARES, L. E. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias? In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 27-32). São Paulo: Boitempo, 2015.

PESCHANSKI, J. A.; MORAES, R. As lógicas do extermínio. In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 61-68). São Paulo: Boitempo, 2015.

WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

­­­­­WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

WILLADINO, R.; NASCIMENTO, R. C. DO; SILVA, J. DE S. E. Novas configurações das redes criminosas após a implantação das UPPS. Rio de Janeiro: Observatório de favelas, 2018.

YAMAMOTO, O. H. Políticas sociais, "terceiro setor" e "compromisso social": perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Revista Psicologia Sociedade, n. 19, (2007).

 

[1] Relatório de pesquisa: Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: os impactos da ADPF 635 na defesa da vida. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense. http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio- audiencia_balanco_final_22_03_2021-1.pdf.

 

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