A execução de centenas de pessoas é uma das terríveis consequências da intervenção federal/militar no estado do Rio de Janeiro. Sendo certo que, muito antes da desastrosa intervenção, a “pena de morte” já vinha sendo aplicada no Rio de Janeiro, como em vários estados da federação, contra os “inimigos”, indesejáveis e os mais vulneráveis da sociedade.
De fevereiro a julho de 2018 (seis meses de intervenção federal) 736 pessoas foram mortas pelas polícias (militar e civil), segundo dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Apenas a título de comparação, o relatório anual da Anistia Internacional (AI) registrou 993 execuções em todo o mundo no ano de 2017.
Pior do que muitos dos países que tem a pena de morte, no Brasil a pena capital é executada sem processo, sem contraditório, sem defesa e sem julgamento. Os condenados à pena de morte no Brasil não têm direito a “última ceia”, também, não são acompanhados por um ministro religioso e, muito menos, se despedem da família.
Necessário destacar, como faz com toda propriedade Orlando Zaccone, que “a polícia mata, mas não mata sozinha”[1]. Na verdade, quem mata é o sistema penal. O sistema mata os pobres, os negros, os favelados, analfabetos, enfim, os vulneráveis. Quando não mata, encarcera. Conforme salientou o desembargador Sérgio Verani, na obra “o aparelho repressivo-policial e o aparelho ideológico-jurídico integram-se harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz”[2].
Como já foi dito alhures, estamos diante de uma guerra. Não uma guerra entre Estados, mas “a guerra do Estado contra seus próprios cidadãos”. O inimigo não é mais outro Estado, mas membros da própria sociedade. Contudo, nessa guerra, como bem observou a socióloga e criminóloga Vera Malaguti Batista,[3] a Convenção de Genebra[4] é ignorada, a Cruz Vermelha não se faz presente, inocentes morrem, casas são invadidas, a população é aterrorizada etc.
Não há como negar que a repressão violenta ao crime, ou melhor, ao criminalizado sempre foi uma “delegação tácita conferida à polícia por parte dos grupos dominantes”[5]. É inegável, também, que o direito penal tem por alvo, preferencialmente, o crime comum (furto, roubo, “tráfico” e uso de drogas) – “crime de rua” – praticado por aqueles que são criminalizados, ou seja, os pobres, negros e excluídos da sociedade.
Necessário dizer, também, que policiais são assassinados. Segundo levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo no ano de 2012 um policial foi vítima de homicídio a cada 32 horas, no total de 229 policiais. Em 2014, 114 policiais foram mortos no Rio de Janeiro. Em 2017, 134 policiais militares foram assassinados no estado do Rio de Janeiro.[6] Este ano (janeiro a junho) 55 policiais militares foram mortos no Rio de Janeiro.[7]
Os policiais, de algum modo, acabam se tornando vítimas – vítimas de uma classe dominante - de um sistema inumano e cruel, de um mundo igualmente perverso. Neste mundo “mocinhos” e “bandidos” se confundem.
A opção do Estado pela intervenção militar colocando o Exército nas ruas do Rio de Janeiro para “golpear o crime organizado” foi, como já dito, um atestado de incompetência do poder público e uma demonstração inequívoca da prevalência do estado penal sobre o estado social. Desgraçadamente, quando o Estado faz a opção pelo uso da força, os vulneráveis, pobres, negros, favelados e os indesejáveis – os mesmos que integram a grande maioria da população carcerária – são os principais alvos da repressão para atender os desejos, conscientes e inconscientes, dos endinheirados e da classe média conservadora e preconceituosa.
Notas e Referências
[1] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
[2] VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei. Rio de Janeiro: Aldebarã, 1996. Apud ZACCONE, ob. cit.
[3] Em palestra no 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais do IBCCRIM (agosto de 2018).
[4] Convenção de Genebra é o nome que se dá a vários tratados internacionais assinados entre 1864 e 1949 para reduzir os efeitos das guerras sobre a população civil, além de oferecer uma proteção para militares capturados ou feridos. A história desses tratados está associada ao suíço Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha. Dunant tomou a iniciativa de organizar esse tipo de acordo em uma convenção na cidade de Genebra, na Suíça, em 1864, que contou com a presença das principais potências europeias. Após o primeiro encontro, várias outras convenções foram realizadas para ampliar e detalhar uma espécie de regulamento para a participação em uma guerra. A cidade de Haia, na Holanda, foi sede de dois dos encontros seguintes (em 1899 e 1907) e na Suíça mesmo foram assinadas outras três convenções (em 1906, 1929 e 1949).
[5] MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Violência e ordem social. Crime, polícia e justiça no Brasil. Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. São Paulo: Contexto, 2014.
[6] Disponível em:< http://especiais.g1.globo.com/rio-de-janeiro/2017/pms-mortos-no-rj/ Acesso em: 31/8/2018.
[7] Disponível em:< http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-06/rio-tem-55-policiais-mortos-de-janeiro-ao-inicio-de-junho Acesso em: 31/8/2018.
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