Violência e natureza humana (Parte 6) - Por Atahualpa Fernandez

08/12/2017

Leia também: Parte 1, Parte 2Parte 3Parte 4, Parte 5

“—Yo no quiero estar entre locos —comentó la niña.
—Pero eso no puedes evitarlo —le dijo el gato—: Aquí estamos todos locos. Yo estoy loco. Tú también.” Lewis Carroll

Dúvidas metodológicas e dúvidas morais

A sociologia fenomenológica, pelas mãos dos professores alemães que seguiram para os Estados Unidos fugindo da barbárie nazista, propôs uma interpretação de nossa tendência humana para racionalizar as coisas como último recurso ante uma alternativa pior: a de que o mundo careça de sentido, que seja puro caos onde tudo, absolutamente tudo, seja permitido. Depois dos incessantes golpes que, dia após dia, a sociedade sofre por conta de uma violência desenfreada e descontrolada, começa a aparecer uma iniciativa similar: pretender entender e explicar o que ocorre no cérebro de um indivíduo agressivo (criminoso), quer dizer, compreender porque agem de tal maneira, em completo desprezo pelo sofrimento de seus congêneres.

Recordemos que foi Patricia Churchland quem apontou uma possível interpretação ligada ao gene que regula a enzima monoamina oxidase, MAO-A. Na verdade, os laços genéticos da enzima MAO-A são estudados desde princípios dos anos 80 do século passado. Como dito antes, suas possíveis anomalias se relacionaram não somente com a conduta antissocial, senão também com o alcoolismo e inclusive com a esquizofrenia. Mas os estudos a respeito, já vimos, ainda não são concludentes. Enquanto alguns investigadores encontram correlações entre variantes genéticas da codificação da MAO-A e estas patologias, outros as descartam. Em 2004, por exemplo, S. Jaffee e colaboradores, da mesma equipe que levantou a pólvora da associação entre a genética e a conduta agressiva, concluíram que para que se dêem alguns dos traços de personalidade que denominamos patológicos tanto influem o herdar anomalias como o fato de haver sido maltratado quando criança. O sentido comum seguramente poderia haver deduzido isso por si só.

Nada obstante, parece que algo já se avançou desde os tempos em que Lombroso e Franz Josef Gall sugeriam somente medir ou examinar as protuberâncias do crânio. Mas nos encontramos ainda em uma parecida incapacidade para entender o que é a culpa, quais são suas razões e o que medeia entre os impulsos para a agressão, a violência e a vontade. O que implica que diante da atual situação cabe duvidar acerca da eficácia de um modelo causal preciso. O pouco que se sabe ao respeito não vai muito mais além do que poderiam estabelecer as intuições de sentido comum.

Por isso os estudos de Adrian Raine propõem que o risco de conduta antissocial e violenta conta com fatores tanto sociais como genéticos que interagem mutuamente, embora ainda não se saiba exatamente como[1]. Por dizê-lo de alguma maneira: o ponto crucial é que a relação entre conduta, genes e estruturas do cérebro não reflete remotamente um modelo simples de “gene para”[2]; os genes são parte de redes, e há interações entre elementos da rede e seu ambiente.[3]

As pessoas que reúnem tanto um historial de maltrato em sua infância como alterações genéticas nos alelos MAO-A mostram uma clara tendência a levar a cabo condutas mais agressivas do que aquelas que somente contam com um desses dois fatores por separado. Certamente uma conclusão decepcionante para os que querem ver nas alterações  genéticas uma “causa” suficiente para a conduta antissocial, mas o bastante indicativa como para ter que abandonar os modelos roussonianos do “bom selvagem” [4]. Um tanto significativo à hora de reclamar estudos mais cuidadosos é que Y. Y. Huang e colaboradores relacionassem essa confluência de alterações genéticas, maltrato na infância e conduta antissocial agressiva nos varões, mas não nas mulheres.

A partir daí será necessário muito trabalho de investigação para precisar o alcance de umas interações que, com toda probabilidade, levarão a modelos complexos de confluência genética ao estilo dos QTL (quantitative trait loci) que estão dando conta de quase qualquer anomalia patológica das comuns. A das condutas violentas e antissociais entra nesse terreno do mais corrente. Também entra, por desgraça, no rol das alterações de conduta que causam grandes transtornos na convivência.

Este o motivo porque a vertente puramente ética (a da pergunta kantiana, “o que fazer?”) levante quase tantas dúvidas como as que chegam da mão das dificuldades existentes à hora de obter modelos científicos da conduta violenta. Como já apontaram autores do estilo de D. Wasserman, nem sequer resulta claro para que serviriam essas explicações científicas, se dispuséramos de modelos fiáveis acerca das “causas” da conduta antissocial. Talvez o detectar a priori a tendência “hacia determinados comportamientos pudiera llevar - como sustenta Wasserman - a un remedio peor que la propia enfermedad”. 

 

[1] Patricia Churchland é particularmente crítica ao que Raine postula como “una firma de los genes y del cerebro de la mente criminal”, isto é: i) que existe um enlace entre níveis baixos de atividade nas regiões pré-frontais do cérebro e a psicopatia; ii) que a estrutura do cérebro, “pretendidamente el amaño del striatum”, é maior nos criminais, como média; e iii) que a genética começou a identificar que genes específicos promovem o comportamento criminal. “¿Encontraremos una marca del cerebro criminal con estos métodos? Lo dudo mucho. Porque los modos de ser criminal son demasiado diversos. Abarcan desde aquellos que roban pan para mantener viva a su familia hasta falsificadores, extorsionadores, cuatreros, plagiarios y evasores de impuestos, los que se rebelan contra un dictador salvaje, ejecutan un esquema Ponzi, difunden pornografía o cometen adulterio en un estado muy estricto con las leyes. Más aún, lo que cuenta como violación de la ley varía en función de las leyes” (em palavras suas).  De mais a mais, não há que olvidar que: (i) a revolução provocada pela neuroplasticidade tem implicações no que se refere aos “mapas” cerebrais, isto é, de que estes não são imutáveis dentro de um só cérebro e nem tampouco universais, senão que, sendo o cérebro um sistema dinâmico, plástico e não-linear, os “mapas” podem variar constantemente dependendo do que fazemos ao largo de nossas vidas: não somente nada no cérebro está localizado em um lugar concreto, senão que o “mapa” de um dia pode deixar de ser válido ao seguinte (G. Boring); (ii) o cérebro é parte do que quer ou de como quer a pessoa: “siempre hay una persona situada, contextualizada, culturalizada entre el cerebro y el desejo”. (T. Essig)

[2] Conclusão que está em linha com a chamada “cuarta ley de la genética conductual”: “Un rasgo de conducta humano típico está asociado con muchas variantes genéticas, cada una de las cuales da cuenta de un pequeño porcentaje de la variabilidad conductual”. Segundo esta visão não há genes específicos para um rasgo de personalidade: “Más bien, los genes codifican proteínas que ejecutan una serie de mecanismos que influyen en los estados emocionales y cognitivos, lo que influye en las percepciones, las conductas, la personalidad, los rasgos y las actitudes en reacción a estímulos del entorno”. (C. F. Chabris et al.)

[3] Não cabe identificar os fatores ambientais com a “educação” ou a “cultura”, como se faz com certa frequência, posto que muitos destes fatores são desconhecidos, ou bem são simplesmente produtos do azar. Uma meta-análise recente, publicada em Nature (T. J. C. Polderman et al.), baseada em 2.748 estudos e mais de 17.000 traços humanos, basicamente corrobora o comentário: os genes explicam a metade da variação, enquanto que as influências do “ambiente compartido” é escassa. Por outro lado, a variação genética aditiva é a mais significativa – quer dizer, geralmente há muitos genes implicados em cada conduta. Em suma: Nenhum traço humano de conduta está determinado ao 100% pelos genes e nenhum tem um 0% de influência genética. Por isso que as afirmações sobre o domínio dos genes que anulam a explicação da conduta violenta por agentes externos ou sociais, justificando-a unicamente pela genética, quiçá resultem demasiado simplistas. Quer dizer, os estudos sobre hereditariedade seriam apenas o “primeiro passo” em uma larga e tortuosa marcha à compreensão da conduta violenta (por exemplo, influências genéticas, seguido por influências ambientais únicas - no compartidas - e em muita menor medida por influências comuns), e de fato complementariam mais solidamente os estudos assentados nas evidências procedentes da epigenética e da interação genes-ambiente.

[4] É um erro frequente perguntar se o ser humano é bom ou mau por natureza (agressivo ou pacífico, ou, por exemplo, se nossa sexualidade é monógama ou polígama). Os seres humanos não são essencialmente nem bons nem maus (agressivos nem pacíficos, nem monógamos nem polígamos). Os humanos respondem com bondade ou maldade (agressivamente ou cooperativamente, de forma monógama ou polígama) dependendo de histórias vitais específicas e dos ambientes em que se encontrem (e isto não é coisa dos seres humanos exclusivamente, ainda que tenhamos mais variedade, senão também de outros animais). Somente cérebros que sejam o suficientemente plásticos, versáteis e capazes de dar diferentes respostas podem ter êxito em ambientes que são muito cambiantes.

 

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