Violência de gênero e o direito reparação por dano moral sofrido

14/11/2023

A Lei 11.719/2008 alterou o art. 387, IV, do CPP para autorizar a fixação, na sentença condenatória, de valores mínimos à reparação do dano causado pela infração penal. O dispositivo não delimitou a natureza do dano, tampouco impôs restrições à sua fixação, deixando, assim, ao intérprete a análise sobre o seu alcance. O dispositivo ainda não angariou completa aceitação no universo jurídico, pois há controvérsia acerca da natureza do dano – se apenas material ou também moral – e da necessidade de dilação probatória para se aferir as consequências específicas do delito e a quantificação do prejuízo.

Contudo, recentemente (2017), o STJ admitiu que a utilização da expressão “prejuízos” pelo legislador inclui danos materiais e morais. E da Jurisprudência da Corte Superior extrai-se que, uma vez formulado pedido expresso pelo Ministério Público ou pela vítima, não há que se falar em cerceamento de defesa. É o que se extrai, por exemplo, do REsp 1.533.468/DF e do REsp 1.514.125/DF.

Não obstante o posicionamento do STJ, muitos operadores do Direito continuam a apresentar objeções à inclusão do dano moral nas hipóteses de reparação na sentença penal, em especial por vislumbrarem a inviabilidade da dilação probatória para aferição da extensão e da quantificação do prejuízo, de modo que esse instrumento de enorme importância no enfretamento à violência de gênero, dentro ou fora do âmbito domésticofamiliar, acaba invalidado ou subaproveitado.

O dano material, em sede de violência de gênero, é facilmente identificável, já que quase sempre decorre da destruição dos bens móveis da residência, objetos pessoais e aparelhos eletrônicos, veículo ou do próprio imóvel. Demanda, entretanto, instrução para quantificação do valor da indenização. O dano moral na mesma temática, por sua vez, deve decorrer da mera inferência das consequências do delito penal perpetrado.

Com efeito, muitas modalidades de dano moral decorrem diretamente do ato ilícito e são apuradas de forma prática, eis que dispensada a prova de prejuízo concreto, pois, pela dimensão do ato ilícito suportado pela vítima são presumidos o sofrimento, a dor, o desconforto e o constrangimento. São condutas nas quais o padrão moral médio da sociedade considera inegável e, portanto, evidente o abalo psíquico.

Dentre as espécies de dano moral encontram-se reconhecidas na Jurisprudência do STJ: a inscrição indevida em cadastro de devedores inadimplentes (REsp 597.814/SP); o atraso de voo e extravio de bagagem (REsp 612.817/MA); o extravio de talonários de cheques pela instituição financeira (AgIn 1.295.732/SP); a impossibilidade de registro de diploma de curso não reconhecido pelo MEC (REsp 631.204/RS); a multa de trânsito indevidamente cobrada (REsp 608.918/RS); a inclusão indevida de nomes de médicos em guia orientador de plano de saúde (REsp 1.020.936/ES).

O rol supracitado compreende eventos desagradáveis nas relações cotidianas em que, a obrigação de reparar decorre, portanto, da irrefutável afronta à dignidade da vítima.

Nessa esteira de pensamento, é preciso compreender a violência de gênero, doméstica ou não, sob o viés dos direitos humanos. O Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), do sistema internacional da Organização das Nações Unidas, e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), do sistema regional da Organização dos Estados Americanos. Dessa forma, obriga-se ao aprimoramento dos mecanismos nacionais de prevenção e repressão à violência contra as mulheres, compreendida como “violação dos seus direitos e liberdades fundamentais”.

O Direito Penal deve ser interpretado de forma sistêmica e precisa dialogar com esses instrumentos legais humanitários. Deve servir ao propósito da reeducação social, com compreensão da temática como severa ofensa aos direitos humanos das mulheres, de forma que não se pode admitir interpretação que reduza a violência de gênero a bagatela, inferior até mesmo à inclusão de nome em serviço de proteção ao crédito ou ao atraso de voo, demandando-se produção de prova de que o ultraje ao corpo ou à psique da mulher tenha realmente acarretado humilhação, e não mero aborrecimento. É o que revela a interpretação progressista do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (Acórdão 882.660/2015):

“Deixar de se fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração penal, nestes casos, é premiar o agressor doméstico e, em última análise, fomentar a cultura do ideologismo patriarcal, os quais induzem relações violentas entre os sexos, já que calcados em uma hierarquia de poder. Acrescente-se que a configuração do dano moral, em razão da natureza dos direitos da personalidade violados (no caso,  integridade física e psíquica), independe de prova, sendo in re ipsa, bastando, pois, a comprovação da respectiva conduta lesiva”.

É relevante observar que a sentença condenatória sempre foi título suficiente para a reparação material e moral, com liquidação no foro cível. O dispositivo ora examinado somente pretendeu imprimir celeridade processual, permitindo o sentenciamento líquido, em valores mínimos e dígnos, no corpo do decreto condenatório penal. De forma alguma o legislador quis ampliar o repertório de dificuldades ou impor, além da prova de autoria e materialidade, a obrigação de comprovação do abalo psíquico específico suportado pela vítima, condição que, historicamente, nunca foi exigida.

O valor, em compensação, não é aferido aleatoriamente. Ao contrário, pode ser obtido com raciocínio lógico, sopesando-se a gravidade do tipo penal com o quantum comumente fixado para os demais tipos de dano moral presumido. Saliente-se que, no juízo criminal, a reparação moral deve ser arbitrada em valor mínimo, sem óbice da apuração do dano efetivo no juízo cível, na forma do art. 63, parágrafo único, do CPP.

Dessarte, não há necessidade de dilação probatória para determinar montante conforme classe social do agressor ou da vítima, porque – para reparação mínima da dignidade da pessoa humana – não deve haver diferença entre pobres e ricos ou sábios e incultos. A honra, a carne, a alma e a liberdade da mulher mais humilde devem ter o mesmo valor intrínseco que aquelas da mulher mais abastada, intelectual ou poderosa.

Assim sendo, a melhor interpretação do art. 387, IV, do CPP, em sede de violência de gênero, é a da reparação mínima, com fixação líquida de danos morais “in re ipsa”, que se presumem havidos na totalidade dos episódios de violação dos direitos humanos das mulheres.

 

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