Coluna Por Supuesto
O panorama eleitoral brasileiro não deixa de ser tormentoso e angustiante pelos níveis de insalubridade política e as ameaças e desinformações que formam o plano superficial de uma crise bem mais profunda e que se espalha em várias camadas da sociedade
Uma questão que chama a atenção é a escuta frequente da expressão “onda autoritária”, como tentativa de caracterizar um período da história marcada pela sistemática agressividade contra a democracia como regime jurídico político pautado pela igualdade substancial entre os seres humanos, e não pelas fórmulas ocas do igualitarismo para poucos, em detrimento dos direitos dos outros; contra a razoável interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, especialmente no caso da liberdade de manifestação do pensamento. Tem-se visto que para um segmento de supostos entendidos, é possível expor qualquer tipo de opinião, mesmo que esta seja irresponsável e atentatória contra valores tão prezados como a própria dignidade, que sejam inverídicas ou façam apologia a exclusões e violações a direitos humanos.
Extremamente preocupante que nesta campanha eleitoral o vale tudo foi decantado e tocou fundo, entrando no terreno da subjetividade, das formas de coexistência e dos instrumentos para realizar fins constitucionais comuns. Estar atentos às subjetividades é fundamental para compreender as mudanças drásticas, como diz D. Harvey, no modo de pensar e entender as instituições e ideologias dominantes, nos processos, alianças e posicionamentos sobre o Estado e a política, em particular sobre o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, as Forças Armadas, os meios de comunicação, o Ministério Público. As concepções de mundo estão no centro do estado de coisas em que se desenvolve a campanha.
A primeira impressão neste campo é a forma como se dissemina a percepção em setores da população brasileira de que a Constituição é inútil; de que as competências presidenciais não são limitáveis, senão extraordinárias e acima de orientações ou valorações jurídicas tanto da Constituição quanto da lei; de que as armas podem superar as razões; de que ameaças são necessárias para manter o ambiente de hostilidades e vencer pelo medo; de que toda fala é desculpável e de que é possível mascarar a ignorância e a quebra ética através da satanização de contrários e do uso indiscriminado e oportunista de palavras como pátria, liberdade, deus, família, propriedade. Alguém diz que os seres humanos se identificam com aquele que lhes diz o que desejam que lhes seja dito. O retrocesso subjaz em que, precisamente, os instintos primitivos parecem repousar dentro do ser quando percebemos que seu querer é estar acima de tudo e de todos e ao mesmo tempo pretender ser aliviado do peso de ter que pensar e viver com a responsabilidade da própria consciência. O mais fácil é delegar essa responsabilidade ao “mito”, arquiteto da criação e da destruição.
Chamamos a atenção sobre este tema porque esmagar direitos sociais, como tem sido feito e acentuado pelo governo, faz parte da natureza mais visível do pior do capitalismo, isto é, sua face notória, na qual procura descarregar o peso da crise estrutural sistémica retirando direitos dos trabalhadores. Só que na atual etapa eleitoral e a uma semana do segundo turno para a escolha do presidente, duas questões se verificam com tristeza: a primeira é a forma como o Estado passou a ser instrumentalizado temporária e explicitamente para ficar a serviço do governante aspirante à reeleição, com a fórmula perversa de solucionar o imediato, o urgente, a sobrevivência, a comida na mesa, pela via da transferência de recursos a uma população empobrecida pelo abandono do próprio governo. Trata-se da invenção bem antiga e funcional à conservação do poder apelando para o sentido instintivo do ser humano humilde, desprotegido. Não há projeto social em curso que se conheça e que tenha como lastro a efetividade das cláusulas constitucionais nem previsões orçamentárias predefinidas para tal fim por parte do atual governo. Mas sim um revestimento de “respeito pelo social” plasmado na orientação para que a entidade financeira governamental libere recursos e antecipe benefícios, para incluir rapidamente novas famílias no programa criado a contragosto, mas, ao final, útil e necessário para vencer a resistência dos mais pobres e, finalmente, divulgar um programa de renegociação de débitos de famílias endividadas. A prática é orientada quando o arcabouço jurídico intenciona restringir o oportunismo político, o que diz muito do talante dos membros do governo.
Porém, paralelamente há outra questão preocupante, que sinaliza um maior deterioro das condições de desenvolvimento das práticas sociais civilizatórias. Estamos a falar de atentados concretos contra a vida, a integridade física e do avanço da violência como mecanismo de solução dos conflitos. Veja-se que se no começo deste estrago social o sintoma era a verbalização constante de intolerâncias e ameaças a quem manifestasse oposição, ainda que timidamente, ao projeto em cujo vértice está, de forma declarada ou sutil, a violência em franca contraposição ao Direito, hoje a questão se traduz numa agenda concreta de candidatos, uma proposta governamental concebida para a negação da vida. O desprezo pela inteligência acaba por se transformar em projetos de lei e de emendas constitucionais ou de decretos presidenciais.
Isto é contrário ao Direito, reafirmamos, porque o Direito, como ordem fundada na valoração da vida em suas mais variadas dimensões busca uma reflexão científica, para sua aplicação contextual, na intimidade das contradições sociais, sob pena de se projetar já não como Direito, senão como mero poder coercitivo que usa a força de forma ilegítima, desligada de seu papel de princípio organizativo no qual a proibição principal é o atentado contra a existência e o mandamento principal é impedir o uso privado da força, a vingança privada e o risco permanente de um poder sem limites por cima do ser humano. E com projetos de lei e de emendas à Constituição porque se trata de questões como reduzir a maioridade penal ou de retirar as medidas que tem diminuído os abusos da força pública e reduzido sua letalidade.
A questão também nos reporta a decretos. Isso porque, como sabemos, o porte e a posse de arma fogo em território brasileiro são atualmente regidos pelo Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) que, em síntese, dispõe acerca do registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição; do Sistema Nacional de Armas (Sinarm); e, define tipos penais de porte ilegal. A lei, no entanto, necessita de decreto regulamentar para sua execução, ato normativo que, conforme disposto no art. 84, IV da Constituição Federal, cabe ao Presidente.
Mas, antes de avançar nos decretos, é importante compreender que o Estatuto do Desarmamento trata o porte da arma de fogo a partir de uma regra de proibição, estabelecendo em seu art. 6° que “é proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: (...)”. Logo elenca como exceções à regra os profissionais cuja atividade necessita o porte da arma de fogo, como integrantes de órgão policiais, forças armadas, empresas de segurança privada e de transporte de valores, por exemplo. Depois, o Estatuto também excepciona a possibilidade de concessão de autorização para porte de arma de fogo para aquelas pessoas não listadas pelo art. 6°, desde que comprovem “efetiva necessidade” e atendam a outros requisitos listados, conforme previsto pelo seu art. 4°[1].
Cabe à Polícia Federal e ao Sinarm a autorização para porte de arma por civis por motivos de defesa pessoal, nos termos do art. 10 da lei; já ao Comando do Exército cabe a autorização do porte por parte dos caçadores, atiradores profissionais e colecionadores, conhecidos como CAC’s, nos termos do art. 9° da lei.
Algo, portanto, é claro: a lei que versa acerca da matéria atinente ao armamento estabelece uma regra de proibição com relação ao porte de armas, prevendo exceções que devem ser concedidas somente em casos de comprovada efetiva necessidade. Ou seja, houve por parte do Poder Legislativo uma escolha pelo desarmamento.
Pois bem, o presidente em exercício – hoje candidato - expediu diversos decretos regulamentares que flexibilizam a posse e o porte de armas de fogo. As ADINs 6139, 6466 e 6119 questionam a constitucionalidade na regulamentação.[2] O fulcro da questão é que os decretos, sucessivos no tempo, o nº 9.785, o 9844 e o 9846, todos de 2019, de alguma extrapolam os desideratos da Lei. O primeiro deles, por exemplo, já determinava, nos seus artigos 11, 19 e 20, que:
“Art. 11. Para fins de aquisição de arma de fogo de uso restrito, o interessado deverá solicitar autorização prévia ao Comando do Exército. (...) § 3º A autorização será sempre concedida, desde que comprovado o cumprimento dos requisitos legais: (...) II - aos colecionadores, aos atiradores e aos caçadores; (...) Art. 19. (...) § 1º O proprietário de arma de fogo poderá adquirir até mil munições anuais para cada arma de fogo de uso restrito e cinco mil munições para as de uso permitido registradas em seu nome e comunicará a aquisição ao Comando do Exército ou à Polícia Federal, conforme o caso, no prazo de setenta e duas horas, contado da data de efetivação da compra, observado o disposto no inciso II do § 3º do art. 5º. § 2º Não estão sujeitos ao limite de que trata o § 1º: (...) II - os colecionadores, os atiradores e os caçadores, quando a munição adquirida for destinada à arma de fogo destinada à sua atividade. (...) Art. 20. (...) § 3º Considera-se cumprido o requisito previsto no inciso I do § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003, quando o requerente for: I - instrutor de tiro ou armeiro credenciado pela Polícia Federal; II - colecionador ou caçador com Certificado de Registro de Arma de Fogo expedido pelo Comando do Exército; III - agente público, inclusive inativo: (...) e) que exerça atividade com poder de polícia administrativa ou de correição (...)”.
Veja-se que quando se fala em desarmamento estamos diante da base para uma autêntica política de segurança pública. Na decisão da ADIN 6139, o Min. Fachin fez questão de destacar elementos de um voto proferido pelo Min. Lewandowsky na ADIN 3112 em julgamento no ano 2007, no qual expõe:
“O dever estatal concernente à segurança pública não é exercido de forma aleatória, mas através de instituições permanentes e, idealmente, segundo uma política criminal, com objetivos de curto, médio e longo prazo, suficientemente flexível para responder às circunstâncias cambiantes de cada momento histórico. Nesse sentido, observo que a edição do Estatuto do Desarmamento, que resultou da conjugação da vontade política do Executivo com a do Legislativo, representou uma resposta do Estado e da sociedade civil à situação de extrema gravidade pela qual passava – e ainda passa - o País, no tocante ao assustador aumento da violência e da criminalidade, notadamente em relação ao dramático incremento do número de mortes por armas de fogo entre os jovens. A preocupação com tema tão importante encontra repercussão também no âmbito da comunidade internacional, cumprindo destacar que a Organização das Nações Unidas, após conferência realizada em Nova Iorque, entre 9 e 20 de julho de 2001, lançou o Programa de Ação para Prevenir, Combater e Erradicar o Comércio Ilícito de Armas de Pequeno Porte e Armamentos Leves em todos os seus Aspectos (UN Document A/CONF, 192/15). O Brasil vem colaborando com os esforços da ONU nesse campo, lembrando-se que o Congresso Nacional, aprovou, em data recente, por meio do Decreto Legislativo 36, de 2006, o texto do Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças e componentes e munições, complementando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotado pela Assembléia-Geral, em 31 de maio de 2001, e assinado pelo Brasil em 11 de julho de 2001”.
Parece-nos que, sendo assim, a emissão de decretos regulamentares que visem banalizar a regra de proibição e tornar as exceções como o padrão comum, incorre em vício de inconstitucionalidade por não respeitar os limites e a função dos decretos estabelecidos pela CF. E o que ocorreu com os decretos expedidos pelo Governo Bolsonaro, que flexibilizaram a concessão de porte de armas de fogo.
Na medida em que o art. 6° do estatuto prevê expressamente a lista de pessoas aptas ao porte de arma de fogo, e que exceções somente poderiam ser disposta em lei, o decreto regulamentar do Poder Executivo não tem poderes para abranger essa lista sem ser decorrente de lei[3]. Se a regra geral estabelecida pelo Estatuto do Desarmamento é a de proibição do porte de arma, não pode o Poder Executivo se utilizar de decretos regulamentares para burlá-la, ignorando os parâmetros previstos na lei para exceções.
Em suma, é nítido que os decretos regulamentares expedido pelo Governo Bolsonaro no que tange à matéria de porte de armas de fogo padecem de inconstitucionalidade, não seguindo sua função constitucional de regulamentar a fiel execução da lei e caracterizando-se pela tentativa de afastar a excepcionalidade da autorização de porte de arma de fogo estabelecida pela legislação.
Temos que estar atentos, por supuesto.
Notas e Referências
[1] “Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos: (...)”
[2] As ADI’s de n° 6139, 6466 e 6119 ajuizadas pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que questionam dispositivos dos decretos expedidos por Jair Bolsonaro, ainda pendem de julgamento perante o STF.
[3] Conforme aduzido pelo Min. Edson Fachin na concessão de liminar da ADI 6.139: “Em outras palavras, a regulação administrativa do Poder Executivo não dispõe de poderes para introduzir exceções diversas daquelas estabelecidas pela legislação, ou introduzir presunções de efetiva necessidade quando for silente a lei.”
Imagem Ilustrativa do Post: Ilustração arma / Autor: Rodrigo // Foto de: Núcleo Editorial // Sem alterações
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