Talvez o maior exemplo de desrespeito aos princípios constitucionais venha do próprio Supremo Tribunal Federal, que ao julgar o habeas corpus 126.292 no início do ano de 2016, alterou seu entendimento anterior, admitindo a chamada execução provisória da pena. Tal assunto tem lugar no presente estudo por duas razões: a) deve-se distinguir a figura da execução provisória, da pena das prisões cautelares, que correspondem ao foco desta pesquisa; b) essa decisão do Supremo é uma das mais evidentes formas de arbitrariedade no âmbito judicial. Portanto, apesar de não se tratar de habeas corpus onde se discute o instituto da prisão preventiva, o julgado tem lugar neste trabalho, tendo em vista sua estreita relação com o tema.
A Corte, na ocasião, decidiu ser possível executar a pena imposta logo após, respeitado o duplo grau de jurisdição. Frisa-se, não se trata de prisão de natureza cautelar, como era a única maneira de se permanecer preso, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, até então. Sendo o réu condenado em decisão de segunda instância, a prisão-pena já poderá ser executada.
No caso específico, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao negar provimento ao recurso de apelação, determinou a imediata execução provisória da condenação, com a ordem: “Expeça-se mandado de prisão contra o acusado [...]”. Não se tratando de prisão cautelar, mas de execução provisória da pena, a decisão estava em claro confronto com o entendimento do Supremo Tribunal, segundo o qual, a prisão decorrente de condenação pressupõe o trânsito em julgado da sentença. Essa circunstância autorizou o excepcional conhecimento da impetração, não obstante, a referida Súmula 691, insistentemente comentada aqui.
Pela defesa da tese de que, apenas por meio de emenda à Constituição, seria possível alterar os termos da presunção de inocência e do trânsito em julgado da sentença penal, ou seja, o STF, em vez de exigir do Congresso Nacional a explicitação do texto constitucional, optou por bater de frente com a Magna Carta [como disse o ministro Celso de Mello que, ainda, afirmou que 25% das decisões são reformadas pelo STF]. De guardião da Carta Magna passou a violador explícito dela[1].
Grandes críticas já vinham sendo feitas ao chamado ‘ativismo judicial’, que vem usurpando as competências constitucionais do Poder Legislativo. Lenio Streck[2], por sua vez, vem se debruçando sobre tal questão, especialmente, no que tange à teoria da argumentação jurídica e se pergunta se existe maneira de controlar o subjetivismo e a discricionariedade [para não se falar em arbitrariedade, em suas palavras] das decisões judiciais:
Do mesmo modo que, no cotidiano, o juiz não pode chamar um copo d’agua de ônibus, igualmente não pode dizer que, onde está escrito x, leia-se y (isso independe de critérios; aqui entra a autoridade da tradição). Por isso aposto em uma criteriologia que tenha o condão de fazer certo controle dos e nos “inconscientes”, “dos e nos subjetivismos”, “da fome dos juízes que ainda não almoçaram”, etc. Juiz tem subjetividade, óbvio (mas, atenção: pré-compreensão não é o mesmo que subjetividade, preconceitos, ideologia, vontade); tem inconsciente, evidente; mas não pode dizer o que quer sobre o Direito.
O princípio da excepcionalidade refere-se ao fim, eminentemente, cautelar das prisões provisórias. A exceção jamais pode ser transformada em regra no âmbito processual penal.
Portanto, se o habeas corpus substitutivo não é aceito pelos tribunais, a defesa fica com as ‘mãos atadas’, por assim dizer. Por sorte, como se pode observar ao longo desse estudo, em algumas ocasiões, quando relevante o motivo da demanda, o Supremo Tribunal Federal, mesmo sem conhecer do remédio, concede o pedido de ofício. Outra alternativa para o réu que interpuser recurso especial ou recurso extraordinário, é propor uma medida cautelar pedindo que seja conferido efeito suspensivo ao recurso, nos termos do art. 1.029, parágrafo 5º do CPC de 2015, mas tal medida, também, possui caráter excepcional.
Outro problema relevante apontado pela doutrina é, se existe a possibilidade de execução provisória da pena em ação penal originária, ou seja, quando o réu possui foro privilegiado.
Pouco tempo após a decisão em análise, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou a respeito do tema, afirmando que é possível a execução provisória em tais ocasiões, sob o argumento, de que não há que se falar em duplo grau de jurisdição em ações penais originárias. Trata-se de questão, no mínimo, controvertida, já que o direito ao duplo grau de jurisdição está previsto no Pacto de São José da Costa Rica, que não criou nenhum tipo de exceção.
Mais um efeito obscuro a respeito do tema, reside na possibilidade de executar provisoriamente a pena de réu condenado em segunda instância, tendo em vista, recurso de apelação interposto unicamente pela acusação. Ou seja, sendo um indivíduo absolvido em primeira instância e condenado posteriormente pelo Tribunal, será possível se falar em execução da pena?
Ora, caso tal fato ocorra, defende-se que será afetada a garantia ao duplo grau de jurisdição para indivíduos que não possuem foro privilegiado. Assim, mostra-se uma alternativa absolutamente inviável executar a pena em tais ocasiões.
Imagine o réu, após ser condenado pelo Tribunal, iniciou o cumprimento provisório da pena. O STF, ao julgar o recurso extraordinário, concorda com os argumentos da defesa e absolve o réu. Ele terá direito de ser indenizado pelo período em que ficou preso indevidamente?
Nos termos da jurisprudência atual, a tendência, por incrível que possa parecer, é que não. Vejamos:
Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Responsabilidade civil do Estado. Prisões cautelares determinadas no curso de regular processo criminal. Posterior absolvição do réu pelo júri popular. Dever de indenizar. Reexame de fatos e provas. Impossibilidade. Ato judicial regular. Indenização. Descabimento. Precedentes.
1- O Tribunal de Justiça concluiu, com base nos fatos e nas provas dos autos, que não restaram demonstrados, na origem, os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado, haja vista que o processo criminal e as prisões temporária e preventiva a que foi submetido o ora agravante foram regulares e se justificaram pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, não caracterizando erro judiciário a posterior absolvição do réu pelo júri popular. Incidência da Súmula nº 279/STF.
2- A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que, salvo nas hipóteses de erro judiciário e de prisão além do tempo fixado na sentença - previstas no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal -, bem como nos casos previstos em lei, a regra é a de que o art. 37, § 6º, da Constituição não se aplica aos atos jurisdicionais quando emanados de forma regular e para o fiel cumprimento do ordenamento jurídico. 3. Agravo regimental não provido. STF. 1ª Turma. ARE 770931 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/08/2014.
Chega-se a uma desconfortável constatação, nesses casos, apesar de todo o dano sofrido pelo réu, a nada ele terá direito.
Por fim, a pergunta que mais se destaca: haverá vagas no sistema prisional para todas essas pessoas?
Existe uma grande quantidade de recursos, especial e extraordinário, contra acórdãos condenatórios de 2º grau pendentes de julgamento. Em tese, todos esses condenados já poderão iniciar o cumprimento da pena. Não existe resposta absoluta para tal questionamento, por enquanto, mas certamente não seria positiva. Trata-se de mais uma triste página na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, demonstrando a postura retrógrada que tem ganhado espaço no Brasil nos últimos tempos, e não apenas no âmbito jurídico.
Mais uma triste realidade que reside na fundamentação utilizada por alguns magistrados, é a decretação da prisão preventiva com base na gravidade, em abstrato do delito, algo inconcebível a partir de um processo penal democrático. Infelizmente, a utilização de subjetivismos na decretação de medidas privativas de liberdade é algo comum na prática forense do Poder Judiciário brasileiro, como um todo, algo que tem se tornado regra.
Consta do acórdão elaborado pelo Supremo Tribunal Federal, que o paciente foi denunciado pela prática dos delitos constantes nos artigos 288, caput (associação criminosa) e 171 (estelionato), na forma do art. 70 (concurso formal), combinados com o art. 61, II, g (agravante por abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão), todos do Código Penal.
Verifica-se na narrativa dos impetrantes, que o Ministério Público do Estado do Espírito Santo instaurou procedimento investigativo para apurar a realização, em tese, de atos criminosos por integrantes de uma possível organização criminosa que agia no âmbito da direção de uma igreja evangélica.
Afirmam, ainda, os impetrantes, que a pedido do Ministério Público foi decretada a prisão preventiva do paciente pelo juízo da Vara de Inquéritos Criminais de Vitória, por uma suposta coação de testemunhas, sendo a prisão revogada por ter cessado sua necessidade.
Com o oferecimento da denúncia, o parquet renovou o pedido de prisão preventiva do paciente e de outros denunciados, sendo o pedido acatado pelo juízo da 8ª Vara Criminal de Vitória/ES, possuindo o decreto prisional os seguintes fundamentos:
a) o paciente seria, segundo indícios, 'autor de engenhoso artifício de manifestações processuais contra veículos de impressa, no intuito de obstacular a divulgação de dados contra a igreja Cristã Maranata; b) o paciente estaria 'presente em várias reuniões no sentido de coagir testemunhas'; c) seria 'o braço jurídico da Igreja Cristã Maranata, em atos não condizentes com a profissão do direito' e d) haveria necessidade da prisão 'como garantia da ordem pública', servindo como 'resposta a um delito gravíssimo.
A defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, sendo este indeferido pelo desembargador relator que, segundo a própria defesa, se reportou e reproduziu textualmente os argumentos utilizados pelo juízo de primeiro grau.
Contra tal decisão, assim como nos outros casos, foi impetrado novo writ, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que teve o pedido liminar indeferido pelo ministro presidente.
Assim, foi impetrado o habeas corpus objeto deste estudo, sob o argumento de que o ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça denegou os pedidos da defesa em face da gravidade, em abstrato, do delito, mesmo argumento que fora utilizado pelo juízo de primeiro grau.
No pleno, o ministro relator Ricardo Lewandowski, entendeu pela concessão da ordem, reiterando que a superação da súmula 691 e o conhecimento do writ substitutivo são medidas excepcionais, só podendo ter aplicação em casos de evidente gravidade.
Em seu voto, o relator relembrou que o decreto de prisão preventiva baseado na gravidade em abstrato do delito, tem sido repelida pela jurisprudência da Corte, conforme se decidiu no habeas corpus 80.719 – SP, do qual foi extraído o seguinte trecho:
A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. O CLAMOR PÚBLICO, AINDA QUE SE TRATE DE CRIME HEDIONDO, NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público - precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) - não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se, nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal. (grifo nosso)
Por fim, a Turma, por votação unânime, concedeu a ordem para assegurar ao paciente o direito de permanecer em liberdade até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória.
Ora, não há que se falar em gravidade em abstrato do delito como fundamento capaz de permitir a decretação de uma medida privativa de liberdade, tampouco, qualquer outro argumento de cunho subjetivo, como o clamor popular. Conforme tem sido reiteradamente afirmado pela melhor doutrina, o Poder Judiciário não deve ceder às pressões populares.
Em um modelo de processo penal democrático, o juiz, ao decidir, desempenha relevante papel para que os princípios constitucionais da presunção de inocência, contraditório e ampla defesa tenham eficácia.
Nesse ponto, remete-se o estudo, novamente, ao caso Suárez Rosero vs Ecuador, já analisado. Isso porque, a Corte Interamericana tratou de importante questão a respeito da fundamentação da prisão preventiva, com base na gravidade em abstrato do delito na ocasião.
Os pedidos de liberdade efetuados pelo Senhor Rosero foram denegados pelos Tribunais equatorianos, sob o argumento da gravidade do delito de tráfico de entorpecentes, o que foi considerado uma violação pela Corte Internacional, já que tal questão mostra-se como verdadeira afronta à presunção de inocência, como regra que norteia a excepcionalidade da prisão preventiva. A liberdade não pode ser restringida em razão da natureza ou gravidade do delito, bem como de outros aspectos não processuais.
A Corte Internacional voltou a analisar tal questão no caso já citado, Peirano Basso vs Uruguai, que acabou por gerar os informes números 35/2007 e 86/2009. Os irmãos uruguaios Jorge, José e Dante Peirano Basso foram presos em 8 de agosto de 2002, acusados do cometimento de delitos econômicos. A fundamentação da prisão nesse caso, também se baseou na gravidade dos delitos imputados aos acusados[3].
Toda fundamentação baseada em critérios de ‘direito penal material’ foi afastada pela Corte, o que se coaduna com o que vem sendo defendido no presente capítulo.
Foi ressaltado, por fim, que a gravidade da infração penal e a severidade da pena, ainda que possam ser tomadas como critério para avaliar o risco de fuga do imputado no caso concreto, não poderão constituir argumentos para justificar a privação prolongada da liberdade a título cautelar, uma vez que ofendem a presunção de inocência.
Os princípios que devem reger a aplicação da prisão provisória são, segundo a decisão: excepcionalidade, provisoriedade, proporcionalidade, legalidade, judicialidade e recorribilidade.
A provisoriedade pode ser explicada pela necessidade de frequente reavaliação dos motivos e fundamentos da prisão, de maneira a verificar se subsistem.
O princípio da proporcionalidade também impõe limites à prisão processual. De acordo com tal postulado, consagrado no artigo 5.4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o acusado, que deve ser considerado inocente, não poderá receber tratamento mais gravoso ou igual àquele imposto ao condenado. Tal princípio também se relaciona ao prazo das prisões provisórias.
A legalidade é de evidente observação em casos de prisões provisórias, tendo em vista que, ninguém pode ser privado de sua liberdade sem a restrita previsão em lei.
A judicialidade e a recorribilidade se referem à reserva de jurisdição, no que concerne às prisões provisórias e à possibilidade de se rever tais decisões em uma instância superior.
[1] GOMES, Luis Flávio. Execução Provisória. STF viola corte Interamericana. Emenda Constitucional resolveria tudo. JusBrasil. Disponível em: <http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/307339417/execucao-provisoria-da-pena-stf-viola-corte-interamericana-emenda-constitucional-resolveria-tudo> . Acesso em: 4 jul. 2016.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Existe montinho artilheiro epistêmico na teoria da argumentação jurídica? Conjur, 18 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-18/senso-incomum-existe-montinho-artilheiro-epistemico-teoria-decisao-juridica>. Acesso em: 10 jul. 2017.
[3] CIDH. Informe de Fondo nº 86/09. Caso 12.553, Jorge, José y Dante Peirano Basso. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/fondos.asp>. Acesso em: 6 de jul. 2016.
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