Por Gunter Axt - 14/01/2017
Damiens foi condenado, em 2 de março de 1757. Foi levado em uma carroça, de pé, de camisola, carregando nas mãos uma tocha de cera acesa, para um patíbulo de fronte a Igreja de Paris. Em seguida, foi atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sendo nas feridas derramada uma mistura de chumbo, cera e enxofre derretidos, óleo fervente e piche em fogo, enquanto era obrigado a segurar com a mão direita – queimada também com fogo de enxofre – a faca com qual teria cometido o parricídio pelo qual fora condenado. Logo depois, seu corpo foi puxado e esquartejado por quatro cavalos. A operação foi longa, sendo necessário cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas, pois os cavalos estavam pouco acostumados à tração. Finalmente, seus membros e corpo foram consumidos pelo fogo e suas cinzas jogadas ao vento.
Esta cena abre o Vigiar e Punir, de Michel Foucault. Naqueles tempos, punia-se dessa forma. Tinha de ser um espetáculo. Até 1831, supliciou-se na França.
No Brasil, o Código Criminal de 1830 sepultou o temido Livro V das Ordenações Filipinas, de 1603, fértil na cominação de penas de morte. O crime de lesa-majestade era punido com morte cruel, dependendo o cortejo de antigas execuções da ferocidade do verdugo e do capricho do juiz. Já o crime de sodomia, era punido com a queima do sentenciado vivo, para que o corpo jamais fosse sepulto e seu túmulo nunca tivesse memória. O parricida, ou o escravo que matasse seu senhor, era torturado, tinha as mãos decepadas, era enforcado e seu corpo deveria apodrecer insepulto sobre o patíbulo. Havia pena de reclusão para os familiares que tentassem sepultá-lo. Tudo estava bem assim, regulado.
O Código de 1830 pretendeu expulsar este espírito medieval, mas preservou a pena de morte. Em 1855, o fazendeiro Motta Coqueiro, de Macaé, foi condenado a morte, depois de julgado em todas as instâncias recursais. Logo depois, contudo, descobriu-se que era inocente. O Imperador Dom Pedro II, muito comovido, passou a conceder sistematicamente o indulto a partir de então. A República aboliu formalmente a pena capital. Mas...
Em livro raro publicado em 1906 em Belém do Pará, o jornalista Carvalho Lima, então aluno da Escola Militar do Ceará, que combateu no Exército brasileiro contra os rebeldes federalistas na Revolução de 1893 no Sul do Brasil, conta-nos que dois colegas de farda, tidos por desertores por terem escapado do acampamento na cidade litorânea de Torres em busca de algo para comer, já que a tropa passava fome há já vários dias, foram espaldeirados – surrados com espadas sem fio – até a exposição de seus ossos e a morte lhes trazer conforto, enquanto a banda marcial tocava marchinhas que abafavam os urros de dor. Seus corpos foram jogados em sepulturas cavadas na areia, pelos próprios supliciados. Tudo foi comandado com esmero pelo General Arthur Oscar de Andrade Guimarães.
Triste ironia. A República brasileira se erigia sobre campas sangrentas. Somente na guerra civil de 1893 pereceu 1% da população do RS. A explosão de violência coletiva ali não tem paralelo em outros conflitos da região.
Em novembro de 1893, após a vitória rebelde do Rio Negro, o capataz da poderosa família Tavares, Adão Latorre, degolou algumas dezenas. Dentre as vítimas, sobretudo civis engajados, os chamados Provisórios, que estiveram ligados ao episódio conhecido como a Traição de Bagé, de junho de 1892, quando as tropas do líder republicano Julio de Castilhos desrespeitaram uma trégua negociada entre o então demissionário Governador Joca Tavares e o Coronel Arthur Oscar e invadiram aquela cidade, saqueando, torturando e assassinando. Não bastasse isto, em novembro de 1892, a polícia de Castilhos prendera Facundo Tavares, o irmão mais novo de Joca: às cinco horas da manhã, assaltara a residência a tiros, matando dois de seus filhos.
Vingança. Por isto a degola no Rio Negro. Em uma sociedade machista, a degola era forma de humilhar o inimigo, de deixar um recado macabro para os vivos. Como demonstrou Maria Sylvia de Carvalho Franco, em Homens livres na ordem escravocrata, em comunidades tradicionais, orais e patrimoniais, princípios de honra e dominação pessoal fundem-se para criar um código cultural, fazendo da violência linguagem costumeira. A faca, por sua vez, era instrumento cotidiano que não apenas fazia parte da indumentária, como era um símbolo de virilidade e valentia.
A resposta ao Rio Negro não tardou. Em abril de 1894, o Coronel Firmino de Paula, destroçou no Capão do Boi Preto um grupo de revolucionários. A vitória foi aureolada com a degola de 370 prisioneiros, por lotes, ao longo de uma marcha em direção à localidade de Santa Bárbara, sendo os cadáveres deixados insepultos, entregues aos corvos e cães selvagens. As casas e campos dos parentes que tentavam sepultar seus mortos eram incendiados.
Os revolucionários Rodolpho Costa e Rafael Cabeda, em um livro denúncia publicado em 1902 – Os Crimes da Ditadura –, relatam o hábito de punir os acusados de estupro com a degola e a exposição do cadáver em encruzilhada movimentada, tendo as genitálias cortadas e enfiadas na boca. Outro mimo da época era cortar e salgar as orelhas de um inimigo, carregando-as como souvenir, atadas à cintura, no pescoço ou nos estribos.
Parece um conto do Santiago Nazarian? De nada adianta enjoar, pois esta também é a tua cara, Brasil – como diria o saudoso Cazuza.
Mark Dery, em conferência no Brasil, propôs-se a analisar a subjetividade contemporânea a partir das manifestações de pornografia extrema na Internet. Entre fetiches esquisitíssimos com espartilhos e mulheres gigantes engolindo homenzinhos; mulheres de peitos siliconados, com patas de bode e orelhas de jumento; pirocas hercúleas projetando gozadas diluvianas, com impossíveis e hiperbólicas trajetórias photoshopiadas, sobre rostos plastificados de modelos perfeitas, Dery mostrou no telão uma foto que soldados americanos postaram em um fotolog: em torno de um cadáver carbonizado, belos e sorridentes rapazes fardados. A legenda? Churrasquinho de iraquiano. Com razão, Dery considerou a imagem uma manifestação de pornografia extrema.
Qualquer relação com o caso do índio incinerado em Brasília por rapazes em explosão hormonal não é mera coincidência.
Em outubro, em Porto Alegre, onde proferiu conferência, o jornalista Jon Lee Anderson, recém-chegado de Bagdá, contou a história de Ali, a quem entrevistara a menos de uma semana, um xiita que jurara matar dez sunitas para cada dedo das mãos de seu filho morto pela polícia iraquiana. Ali já havia consumado o assassinato de dezenas, dos quais cortava pedaços, como orelhas ou mãos, e os enviava em caixas para suas mães. Muitas das vítimas eram vizinhos ou conhecidos seus. Ali, que se convertera em um serial killer, trabalhava como informante para as tropas de ocupação, indicando-lhes suspeitos de insurgência. Os soldados americanos, todavia, não suspeitavam do projeto profilático de Ali.
A estultice antropológica dessa turma foi sintetizada em uma passagem de 101 Dias em Bagdá, da jornalista Äsne Seierstad. No dia em que chegaram a Bagdá, uma senhora iraquiana jogou-se nos braços de um suboficial americano, agradecendo pela libertação, mas ele afastou-a de si, afirmando não se envolver, pois ali estava apenas para remover Saddam Houssein do poder.
Entre os gaúchos da Federalista, os caboclos de Maria Sylvia, o Iraque e a França do século XXI, o que pode haver em comum? Código social de violência, virilidade, juventude e periferia são ingredientes magistralmente trabalhados no filme La Haine, de 1995, dirigido por Mathieu Kassovitz. Os acalorados debates que o filme produziu na França não evitaram que em dezembro de 2004 Sarkozy chamasse um punhado de rebeldes de racaille, detonando então um dos maiores tumultos da história recente daquele país.
É nesse encadeamento de flashes que penso quando vejo o sucesso que o filme Tropa de Elite está fazendo no Rio de Janeiro. Antes mesmo de ser lançado nos cinemas, uma multidão o havia assistido em cópias piratas, o que, aliás, popularizou o acesso.
A violência policial não é tema novo no Brasil. Da Revolta da Vacina, de 1904, ao assassinato de Wladimir Herzog, em 1975, há esta presença do arbítrio, do elitismo, da meganha, da tortura entre nós. O cinema brasileiro mostrou isto algumas vezes, desde o Caso dos Irmãos Naves, de 1967, até Carandiru, de 2002, passando por Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, de 1977, por Pixote, a Lei do Mais Fraco, de 1981, Notícias de uma Guerra Particular, de 1999, e Cidade de Deus, de 2002.
Agora o fenômeno chega às telas na perspectiva dos próprios policiais. O diretor, José Padilha, foi hábil na cerzidura de uma – desconfortável – cumplicidade entre espectadores e personagens. Já no aclamado Ônibus 174, Padilha documentara a dimensão espetacular que a violência assume entre nós. Em Tropa, foi além. Ao flertar deliberadamente com a apologia do estado policial, transforma seus espectadores co-participes da narrativa, como se pudéssemos ser aqueles franceses vibrando com o suplício de Damiens no patíbulo de fronte à Igreja de Paris em 1757. Como se fôssemos todos Luciano Hucks clamando pelo Capitão Nascimento. “Pede pra sair”, já virou bordão em campo de futebol carioca!
Em matéria de agosto de 2007, O Globo registra a impressionante cifra de 10.464 desaparecidos nas favelas do Rio de Janeiro, entre 1993 e junho deste ano. Deste total, 70% dos casos estariam relacionados à ação do tráfico ou das milícias. Para que se tenha uma idéia, estima-se que durante os mais de 20 anos de regime militar no Brasil contabilizaram-se cerca de 400 desaparecidos!
Das melhores coisas que li sobre o Levante do Dia das Mães, de maio de 2006, em São Paulo foi a coluna de Mônica Bergamo, do dia 17: “O high society paulistano viveu seu dia de periferia na segunda-feira, 15. Toques de recolher espontâneos, bandidos por perto, pânico nas ruas.” Um certo Attílio Baschera, disse ter tido um “ataque de fúria”: "’São Paulo vai virar o quê, uma Bagdá?’. Indignado, Attílio passou e-mail a 50 amigos conclamando todos para um protesto”. Pretendia juntar 2 milhões de pessoas na Paulista, mas não obteve muito sucesso. Uma locadora de veículos de Moema dobrou a locação de carros blindados. E “a rotina de festas nos bairros nobres se alterou de forma radical. Às 16h da segunda, com 40 rebeliões em curso em presídios e dezenas de pessoas morrendo nas ruas, o consultor de etiqueta Fábio Arruda concluiu que o melhor a fazer era adiar a festa de seu aniversário, que seria comemorada em um restaurante dos Jardins. E lá se foram para o lixo os 40 arranjos de orquídeas”.
A cena final de Tropa de Elite nos remete para esta... dissociação interativa, ...quando um fuzil é apontado para a cara da platéia. Impossível não lembrar de outro filme brasileiro: O Homem do Ano, de 2003. Ou de lembrar de Lúcio Flávio, dizendo serem bandidos e policiais faces de uma mesma moeda. Não pode haver pior destino do que aquele em os grupos de extermínio e as milícias assumem o controle, em que a polícia age impunemente.
Esta tribalização da vingança, a espetacularização da violência, nos levarão a um mundo sem garantias civis. Nas favelas do Rio de Janeiro, 1,5 milhão de pessoas vivem sob uma ditadura e ninguém fora delas parece se importar muito com isto. A não ser quando São Paulo vira uma Bagdá e 40 arranjos de orquídeas precisam ser jogados fora! Até quando isto acontecerá só por alguns dias?
Ninguém pretende que bandidos armados e desumanizados sejam tratados com plumas. Pelo contrário: estamos numa guerra. A questão é, queremos que esta guerra acabe ou se prolongue indefinidamente? A brutalidade fascista de uma polícia sem freios só vai jogar mais lenha na fogueira. Há um componente cultural que explica a violência. Ele não pertence apenas a um grupo ou a uma classe, mas a toda uma sociedade. Em torno desta cultura da violência estabelece-se uma cumplicidade inconsciente, diante da qual todos temos alguma parcela de responsabilidade.
Sim, existem iniciativas transformadoras. Nas favelas, o trabalho social e cultural de ONGs e de associações de moradores; no Haiti, a eficaz política de negociação com as comunidades estabelecida pela Exército brasileiro; no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, uma Justiça Militar célere e que condena soldados e oficiais corruptos ou atrabiliários...
O ponto de partida para um novo modelo pode ser buscado no drama vivido pelo Capitão Nascimento, que deseja sair do BOPE. O estado não pode se render às sobrevivências atávicas dos tempos medievais. O Capítulo V das Ordenações Filipinas deveria ter sido sepultado em 1830.
Artigo originalmente publicado na Revista Cult, de São Paulo, em novembro de 2007.
. . Gunter Axt é Doutor em História Social/USP, pós-doutor FGV/RJ, pós-doutorando em Direito UFSC. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Operações Policiais // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações
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