Vestir a Globeleza deixa nu o Mito da Democracia Racial

21/03/2017

 Por Dina Alves – 21/03/2017

Quando os carros alegóricos entraram na avenida os confetes, sprays, brilhos e ritmos das marchinhas do carnaval harmonizaram-se   na boca do “povo”, os passos da “mulata” global sambavam ao som da marchinha que a homenageia: "Na tela da TV, no meio desse povo, a gente vai se ver na Globo".

A vinheta da “Mulata Globeleza” foi criada na década de 1990, por Hans Donner, designer alemão e funcionário da emissora. A modelo, dançarina e cantora, Valeria Valenssa foi símbolo carnavalesco até 2004, seguida pelas outras dançarinas e passistas Giane Carvalho, Aline Prado, Nayara Justino e a atual Erika Moura.

Diferente das vinhetas anteriores, a organização Globo, modificou a vinheta e a personagem símbolo do carnaval, neste 2017. A justificativa para a mudança foi a de que “o Brasil é um país rico em muitas culturas e, portanto, a vinheta vai representar todas as culturas e essa riqueza” (Jornal Meio&mensagem, 2017). A modelo não aparece nua, com pinturas ou paetês coloridas, como era de tradição nos últimos 20 anos de exibição da vinheta do carnaval. Desta vez, aparece vestida de várias caracterizações, representando vários tipos de culturas carnavalescas: fantasia tradicional, frevo, baiana, maracatu, boi bumbá, porta-bandeira...

A “bondosa” decisão de “vestir” a Globeleza com a roupa da diversidade cultural só reforça e faz a manutenção do mito da democracia racial, constantemente enfatizado pela emissora e muito combatido pelo Movimento Negro. Se é verdade que o carnaval no Brasil é veiculado como a maior festa da diversidade cultural do mundo, a permanência de uma mulher negra como figura a simbólica desse mito carnavalesco, desmistifica esta falácia.

O nascimento do conceito “mulata”, na era colonial, surgiu do próprio racismo e do machismo incrustados nas relações sociais da época. Dada a pouca presença de mulheres brancas no país e a existência de negras escravizadas com atributos fisícos que não agradavam aos brancos europeus. As mulatas surgiram como um novo elemento, que não se comprometeria com as categorias “negativas” associadas à figura das escravizadas. Criou-se assim, uma mulher aparentemente livre da discriminação racial, que trazia consigo apenas características sexuais, ganhando um novo papel social em relação às negras de pele mais escura.

Ao longo da história a sua figura, como uma representação mítica aparentemente construída com o propósito de negar o racismo no país, passou a ser o símbolo nacional do mito da democracia racial brasileira. Intelectuais como Gilberto Freyre, autor da obra “Casa Grande e Senzala” de 1933, demonstrou obsessão na busca por uma identidade nacional “ideal” para o país, que se distanciasse da herança física africana e indígena. A obra retrata a convivência supostamente harmoniosa entre os diferentes grupos étnicos e a ideia de que a configuração de nossa identidade territorial estaria marcada pela mestiçagem entre negros, indígenas e brancos. Esta corrente ideológica deu suporte teórico e legitimidade científica à miscigenação, transformando o mito da democracia racial em uma das formas de se manter a ideologia dominante nas relações de dominação econômica e racial.

O conceito de “mulata” vem dessa ideologia de branqueamento da sociedade e do uso da figura da mulher negra, como objeto sexual de entretenimento do homem branco português. Essa é reduzida à reprodução sexual, ao uso da sua sexualidade enquanto característica exótica e objeto de estupro. O histórico ditado popular extraído da obra Freyreana “Branca para casar, mulata para furnicar e a negra para trabalhar”, retrata bem o lugar das mulheres na sociedade racista-patriarcal-colonial. A figura da mulata, dotada de atributos físicos determinantes:  seios fartos das amas de leite, o que garantiria potência para a amamentação; lábios grossos, boca carnuda, cintura fina, quadril avantajado, desenhado como aquela que serve, sexualmente, ao senhor português em todas as instâncias da vida privada e pública. Estes estereótipos físicos foram cristalizados sócio-historicamente e partes desse corpo feminino negro foram discursivizados na matriz escravocrata que sustentou/sustenta o olhar hegemônico oficial e que continua inalterado em muitos dos seus traços até os dias atuais.

Se na sociedade racista colonial, as categorias de raça, gênero e classe social estruturaram a ideologia de dominação, a imagem da figura da 'mulata globeleza”, reatualiza, cotidianamente, essa ordem colonial com a hiperssexualização e permissividade do seu corpo. É por isso que vestir a mulata globeleza com a roupa da suposta “diversidade” cultural, nos orienta para a velha ideia do país tropical, ausente de racismo, que celebra todas as raças, todas as culturas e onde todos e todas dialogam harmoniosamente, ou seja, realimenta o mito da democracia racial e, consequentemente, a denotação de uma ideologia de branqueamento no país composto por 54% da população brasileira (IBGE, 2014).

O lugar ocupado pela “mulata globeleza” e pelas demais mulheres mulheres negras da classe trabalhadora no carnaval, reflete essa marca da matriz escravocrata de dominação de raça, gênero e classe, inscrita nos corpos negros femininos, seja sambando na TV, seja limpando o lixo da avenida. Insisto que, com roupa ou sem roupa, negação do racismo e dominação racial caminham de mãos dadas no país do carnaval.

A figura da mulata vestida, só serve para reatualizar o mito da democracia racial, que é desvendado quando se percebe quem tem acesso na maior festa “popular” do mundo: às alegorias, às fantasias luxuosas, ao privilégio de ser homenageado, de ser madrinha de bateria, de ser passista de destaque. Quando se desnuda os bastidores da festa se revela os corpos que costuram, cortam, desenham, pintam, lavam e guardam as fantasias, os adereços e os ornamentos carnavalescos.

Enquanto a vinheta global, tenta, descaradamente, chamar a atenção para propagar o mito do país da diversidade cultural, perpetua as desigualdades sociais histórcas nas relações raciais no Brasil. Não é de hoje que a emissora trabalha, cotidianamente, para a desumanização, objetificação, hiperssexualização e criminalização dos corpos das mulheres negras. É só lembrar algumas personagens que fizeram sucesso no imaginário popular: Adelaide, do programa Zorra Total; a “divertida” empregada Zezé, de Avenida Brasil; a empregada cuidadora Zilda, da novela Laços de Família; a empregada Cida, da novela Viver a Vida; a Tia Nastácia, cozinheira do programa Sítio do Pica Pau Amarelo; a personagem, Preta de Souza, que remete ao nome da novela “Da cor do pecado” e a Bombom, do programa Planeta Xuxa. Estes são apenas alguns exemplos dos lugares ocupados pelas mulheres negras no espaço midiático e o desserviço e desinformação que a emissora presta à população brasileira, com construção de narrativas sobre a condição feminina negra, retratando-as em situações de inferioridade social, intelectual e cultural. Derradeiro exemplo foi o lamentável episódio em que a atriz Sharon Menezes exibiu corpos de mulheres negras no concurso público, no programa do Fantástico, para a escolha da Globeleza, no ano de 2013.

A persistente existência da representação “mulata Globeleza” e a aparente positividade da diversidade cultural que ela traz, mascara o racismo que estrutura e organiza as relações sociais e reafirma que este racismo contemporâneo brasileiro é produto não só de relações coloniais cuja estrutura de privilegiados/subalternos ainda não foi rompida por completo, mas faz parte de um sistema complexo de relações que é reatualizado cotidianamente pelo mito da democracia racial.

As mulheres negras são testemunhas vivas da exclusão, da subordinação e da tentativa sistemática de desumanização dos seus corpos. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas no sistema capitalista patriarcal-racial. O feminismo negro brasileiro não pode e nem deve ser refém do discurso hegemônico midiático, da ordem capitalista racial, das formas de controle da circulação das imagens da festa carnavalesca que reconstrói a figura das mulheres negras de acordo com seus interesses políticos, capitalistas e ultraconservadores. O feminismo negro coerente consigo mesmo tem papel crucial na luta popular emancipatória das mulheres e dos homens negros brasileiro, ante o genocídio secular em curso.


Dina AlvesDina Alves é Advogada. Candidata ao PhD e Mestra em Ciências Sociais, na área de Antropologia pela PUC/SP; membra efetiva do Coletivo Feminista ADELINAS. Atua com pesquisa sobre Gênero-Raça-Prisão. Desde 2009 atua como Advogada Ativista e trabalha junto a organizações populares do movimento negro na defesa dos direitos humanos da população negra, especialmente as mulheres negras vítimas de violência institucional. Também se baseia em sua formação profissional em teatro popular com intervenções públicas para a emancipação social negra; Entre os anos de 2007 a 2009, como estagiária do Ministério Público do Estado de São Paulo, acompanhou casos de violações de Direitos Humanos de crianças e adolescentes privados da liberdade na fundação CASA na cidade de Guarujá. É membra efetiva do Grupo de Estudos “Interseccionalidades” entre Brasil e Colômbia com foco em pesquisas sobre violências raciais nas Américas. 


Imagem Ilustrativa do Post: Globeleza 2017; veja a vinheta // Foto de: Globo // Sem alterações

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gRgrMzZqAEY

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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