Verdades inventadas

02/03/2021

Coluna Justa Medida

Este ensaio é um excerto de artigo escrito para a Coleção FemiJuris, que em seu quinto e-book, tratou o Direito Antidiscriminatório. A obra, publicada em 2020, merece atenção; o debate permanece necessário.

A violência simbólica, sintetizada por Bordieu, é ferramenta estratégica na manutenção de uma padronização social excludente; sua atuação é imprescindível para a arquitetura dos espaços de poder, e depende do uso da simbologia em níveis pessoais, profissionais, econômicos e institucionais.

No âmbito da semiologia, o estudo da simbologia nos leva a investigar a formação de convenções sociais arbitrárias. Neste aspecto, a ciência jurídica empresta conceito da ciência médica, eis que a semiologia é área da saúde que estuda maneiras de revelar sintomas para um diagnóstico.

Ao entendermos as estruturas discriminatórias como doenças sociais endêmicas, é possível, de forma multidisciplinar, avaliar sintomas e possibilidades de tratamento, cura e/ou imunização. São diversos símbolos sociais, como locais, pessoas, produtos e outros, associados a luxo, segurança,  beleza, poder, ao alto padrão em geral; da mesma forma, existem locais, pessoas, produtos e outros associados a perigo, impotência, escassez, ao baixo padrão em geral.

Nessa dinâmica de positividade e negatividade, a simbologia associada à positividade é associada a noções de privilégio, que trazem questões étnico-raciais e de gênero imbricadas. Isto porque a simbologia ligada ao grupo privilegiado é determinante para a cidadania das pessoas. Pensando na organização urbana, verificamos a teoria em prática: as simbologias determinam a cidadania das pessoas, impondo restrições à acessibilidade e exercício de garantias fundamentais.

A importância das convenções sociais arbitrárias na construção desta estrutura social não pode ser ignorada. O conceito remonta à principiologia de Saussure em alfabetização e letramento, e se manifesta na sistematização de significantes e significados. Considerando as estruturas de letramento racial, de gênero e de sexualidade presentes na sociedade brasileira, podemos afirmar que a estrutura dos espaços, e as racialidades, feminilidades, masculinidades e sexualidades, estabelecem  convenções arbitrárias, indicando quais corpos têm acesso e aceitação, imprimindo simbologias agressivas, embora sutis em suas violências.

A simbologia exerce este poder ao transferir signos determinantes. Associando uma ideia a um marcador genético, estético ou financeiro, é possível determinar a forma como o indivíduo vai acessar os espaços; esses marcadores serão analisados e confrontados com os símbolos aceitáveis em determinado espaço, e caso a identificação não seja encontrada, acesso e/ou permanência serão dificultadas, impedidas ou violentamente repelidas.

Por isso, tratamos a Violência Simbólica como ferramenta essencial na manutenção do sistema de segregação da sociedade. A ausência de pessoas negras nos lugares implica a sistematização de violências no espaço, e determina à população negra que esse não é o seu lugar. Quando se vê um homem negro ser espancado até a morte em um mercado, temos a sinalização e simbolização do impedimento para pessoas negras de frequentarem aquele espaço.

Os exemplos de violências simbólicas são presença constante em nossa sociedade. Podemos, neste aspecto, enumerar a objetificação, a estereotipação e a invisibilidade como violências mais comuns. Estes mecanismos de violência alimentam outros, para completa exclusão de pessoas não inseridas no padrão universal de normalidade - geralmente branco, musculino, jovem, atlético e heterossexual.

É preocupante a constatação de que a sociedade brasileira vive uma ilusão de igualdade de direitos entre raças, gêneros e classes sociais, marcada pelo uso frequente de violências simbólicas para reforçar o mito da democracia racial. A violência impingida nas ditas minorias - LGBTQIA+, mulheres, negros, indígenas e periféricos - se reveste de um manto de defesa da moral e dos bons costumes, da segurança pública e da ascensão meritória, provocando falha deliberada na proteção desses grupos, considerados vulnerabilizados.

A situação fica particularmente desesperadora em cenário de pandemia, onde não há acesso a mecanismos básicos de prevenção da doença, e autoridades dizem que a população vulnerável não se protege porque “não quer”. As autoridades de proteção às normas trabalhistas fragilizam ainda mais a população, com programas que levam famílias inteiras à condição de miséria e forçam o comportamento de risco - elas são compelidas a deixar a segurança de suas casas e aglomerar, para obter renda e se alimentar, bem como prover para seus dependentes.

O atendimento hospitalar destinado às populações vulneráveis contaminadas é deplorável, fazendo com que elas acumulem muito mais óbitos; a vacinação, em primeiro momento, exclui indígenas e quilombolas, resolvendo a situação após pressão popular. E ainda assim, a população negra é a menos vacinada até o momento: apenas 19% dos quase 5 milhões de vacinados no Brasil registrados pelo Ministério da Saúde até 19/02/2021 eram pretos ou pardos.

Existe uma força invisível que estabiliza as estruturas de segregação, domínio e prevalência enfrentadas todos os dias. E é assim que corpos negros caem brutalmente linchados no supermercado, e nossas vidas seguem, acreditando piamente que a culpa é das pessoas inseridas nesse sistema e que o reproduzem em reality shows, sem dar atenção à figuras de autoridade estimulando práticas criminosas nas redes sociais contra estes grupos vulneráveis.

O reconhecimento dos meios pelos quais as desigualdades sociais se propagam permitem encontrar as respostas necessárias para compreender e superar o quadro histórico de desigualdades no qual o Brasil está imerso. E precisamos fazer isso urgentemente, considerando o cenário caótico que se apresenta para todos nós - e que agravamos, sistematicamente, para aqueles que violamos todos os dias.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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