“Vem ni mim Dodge Ram”: no ritmo do ser, dever - ser e dever - parecer

12/09/2016

Por Roberta Oliveira Lima – 12/09/2016

Sair ileso ao som do sertanejo universitário que ecoa pelas ruas de Balneário Camboriú em feriados prolongados ou férias de verão é atividade impossível caso você tenha um coeficiente auditivo mínimo. A cidade fica repleta de carros que reverberam de forma estrondosa refrões como: “tche tche rê, tche, tche, tche”, “agora eu fiquei doce, doce, doce”, “vem ni mim dodge ram” entre outros mais modernos que acabei não aprendendo, pois passei a caminhar protetivamente com fones de ouvido.

É interessante observar que muitos desses carros que divulgam em altos decibéis suas melodias peculiares são caríssimos, vide a Dodge Ram mencionada no título desse artigo. A força financeira de nossos turistas explica-se, em parte, por sua procedência. Muitos de nossos turistas são originários de regiões incrementadas pelo poderio econômico do agronegócio, onde caminhonetes importadas, som alto e ostentação barulhenta comandam a tônica do ser/ter.

Nada contra tal modus vivendi, suspeito que nada a favor também. Apenas observo que a peculiaridade de um de nossos mais cativos públicos de turismo faz ecoar outras questões pertinentes a determinados segmentos sociais.

Nesta hora, impossível não lembrar um pouco de Zygmunt Bauman[1] e suas conceituações sobre a “modernidade líquida”, uma vez que a volatilidade permeia muitos dos comportamentos sociais de nossa contemporaneidade. Como certa vez afirmou Bauman “nada é feito para durar” e como em uma de suas obras alude são “vidas para o consumo” [2].

Desta feita, vale observar o que se consome musicalmente. Assim como existiram tempos nos quais artistas brasileiros como Caetano, Chico, Gil, Vandré e outros usavam de licença poética e inspiração para denunciar a realidade social da época, ouso acreditar que alguns dos refrões, por vezes onomatopeicos, ostentados em carros e baladas, tem algo a nos denunciar.

Prosseguindo na letra inspiradora do título desse artigo, eis que em um momento o compositor sentencia:

[...] Já não faz muito tempo que eu andava a pé Não pegava nem gripe Muito menos mulher Só pegava poeira Não olhavam pra mim Um dia eu decidi, eu vou sair daqui Quem não tem dinheiro é primo primeiro de um cachorro O trem era tão feio que nem sobrava osso pra mim Agora eu tô mudado O meu bolso tá cheio Mulherada atrás. (...)[3]

Interessante notar que a realidade é mudada pela espetacularização da vida, agora refletida em posses materiais que transformam a sorte do herói sofredor da narrativa pop-sertaneja de forma quase instantânea.

Impossível não lembrar de Guy Debord em seu “A sociedade do Espetáculo” quando o mesmo afirma que:

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.”[4]

Segundo o autor, na fase inicial da economia há um desdobramento de definições sociais onde o ser perde espaço para o ter. Já na contemporaneidade, o ter perde espaço para legitimar o parecer, transformando imagens em realidade social, sendo, portanto, uma “reconstrução material da ilusão religiosa” (p. 19). De fato, o cotidiano das sociedades modernas está pautado em pelo menos dois registros: “os comportamentos” e os “benefícios simbólicos que se espera obter”. Dessa maneira, grande parte das ações, quando feitas em um ambiente coletivo, por mais natural que sejam, são individuais e constituem atos simbólicos. Essas simbologias, a nosso ver, estão ligadas à coletividade, por mais que representem para quem as vive, um ato, ação ou reação, de caráter estritamente individual.[5]

Esquecendo um pouco dos turistas de Balneário Camboriú e de todo o seu glamour e ostentação e voltando o olhar para a seara jurídica e alguns dos mais conhecidos e rudimentares elementos de sua teoria, como o conhecido “dever-ser” kelseniano das primeiras aulas do curso de direito nas faculdades, sem, todavia, adentrar na questão filosófica da “Teoria Pura do Direito” proposta por Kelsen, intui-se que pouco do “ser” resiste aos áureos tempos de espetáculo e coisificação/reificação (Lukács). Hoje em muitos locais de atuação jurídica, o “dever-ser” é facilmente substituído pelo “dever-ter” ou, ainda melhor, pelo “dever-parecer”.

Seja nos bancos de faculdade, nas cadeiras dos fóruns ou no ambiente acadêmico, o que presenciamos é o consumo em larga escala de um direito fast food, de profundidade limitada e gerador de espetáculos à toque de caixa, ou melhor, à toque de palmas, palcos e luzes.

Nessa hora, natural lembrar mais uma vez das aulas iniciais da faculdade e do antigo brocardo que dizia “ubi societas, ibi jus”, ou seja, “onde está o direito, aí está a sociedade” e se hoje ela evolui(?!) para a seara das aparências ao invés da essência, resta-nos escolher um camarote (o qual já tem inclusive seus reis) e assistir a espetacularização, conscientes de que também somos atores (Simmel e Goffman) do espetáculo que a cada dia nos empurra sabe-se lá para onde...


Notas e Referências:

[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 258p.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

[3] NOVAES, Israel. Vem Ni Mim Dodge Ram (part. Gusttavo Lima). Disponível em: https://www.letras.mus.br/israel-novaes/1970121/

[4] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo.  Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


Roberta Lima

. . Roberta Oliveira Lima é Advogada, Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI). Professora Universitária. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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