Vazamento das declarações do colaborador gera inadmissibilidade da colaboração premiada

22/12/2016

Por Antonio Eduardo Ramires Santoro - 22/12/2016

Em artigo publicado no Conjur no dia 19 de dezembro último, o professor Guilherme Nucci afirmou que vazamento de delação não gera nulidade.

Para Nucci há uma regra procedimental que determina dever a delação ser colhida sob sigilo, é direito do colaborador ficar incógnito e é crime revelar a identidade do delator.

Nesse sentido, para ele, a quebra do sigilo pode configurar um crime, “mas não macula a prova”[1]. Em seu exemplo, Nucci aponta que se o colaborador for torturado para delatar, sua narrativa nasce contaminada, porém se ele presta a delação e, depois disso, ela vaza, “nada há de ilícito na prova”[2].

Explica o professor paulistano que durante a Lava Jato, desde o início da operação, a imprensa divulgou “praticamente tudo”[3], mas não é possível punir o agente da imprensa em razão da ampla liberdade de informação constitucionalmente garantida acrescida do direito à manutenção do sigilo da fonte, portanto somente caberia a punição de quem passou a informação à imprensa, caso sua identidade fosse descoberta.

Sua conclusão é peremptória: “crimes cometidos após a prova ter sido colhida não podem manchá-la de qualquer modo. Afinal, ela não foi obtida por meio ilícito. Não há lei para sustentar a nulidade da delação se houver vazamento”[4].

Todavia, em que pese o respeito pelo professor Guilherme Nucci, seu raciocínio parte de duas premissas a nosso juízo equivocadas: (1) a ultrapassada distinção entre prova ilícita e prova ilegítima; (2) a compreensão de que a colaboração premiada é um meio de prova.

De fato, em momento algum foi afirmado em seu artigo que sua premissa é a velha distinção entre prova ilícita e prova ilegítima. Todavia, ao afirmar que a tortura que antecede à colaboração nasce contaminada, porém o vazamento que se realiza após a declaração do colaborador não a contamina, aliada à afirmação de que o sigilo é uma regra procedimental – e não processual –, demonstram que essa é a premissa do seu raciocínio.

Com efeito, a ideia de que violações de normas materiais tornam a prova ilícita e, portanto, inadmissível, ao passo que normas processuais (no seu entender procedimentais) tornam a prova ilegítima, conduzem à ideia de que esse vício não deve inviabilizar o juízo de admissibilidade que já teria ocorrido, devendo se trabalhar com a categoria das nulidades.

Mais ainda, sua afirmação de que a prova já foi colhida, dá a entender que sua admissão já se realizou ou que, no caso da colaboração premiada, sua produção antecede a admissão.

Isso conota a introdução do elemento de prova[5], compreendido como informação passível de valoração pelo juízo sentenciante, não apenas antes de sua admissão, mas produzida fora do âmbito judicial. Quiçá esteja sendo considerado – mas isso não fica claro – que o Ministério Público realiza a atividade de admissão da prova, configurando uma espécie de entrega de poderes tipicamente judiciais ao órgão acusador, o que é írrito ao sistema processual penal forjado pela nossa Constituição.

Em outras palavras, ao afirmar que a prova já está colhida antes mesmo do termo de colaboração ser homologado, está-se admitindo que as declarações do colaborador colhidas fora do ambiente judicial, antes do termo inicial do processo e sem qualquer observância do contraditório, são elementos de prova.

Ora, se as declarações do colaborador são a priori elementos de prova, a colaboração premiada mesmo sem homologação é um meio de prova[6], o que, com o devido respeito, é absolutamente inadequado.

A colaboração premiada é um meio de obtenção de prova e como tal se caracteriza como um método oculto[7], sem o estabelecimento do contraditório direto e, portanto, deve ser submetido à análise de admissibilidade judicial.

Em que pese nosso entendimento de que os meios de obtenção de prova que obtenham informação de uma fonte de prova pessoal não podem gerar elementos de prova, vez que não passíveis de serem submetidos ao adequado contraditório[8], ainda que se admita ser possível obter informação valorável, é imprescindível a análise de admissibilidade judicial antes que o elemento ingresse nos autos do processo.

Essa admissibilidade deve ser feita no ato de homologação do termo, cabendo ao juiz analisar todos requisitos de validade do ato, inclusive o sigilo.

Deve se observar que o sigilo não é mero procedimentalismo. Ao contrário, encerra uma opção legislativa de fundamento constitucional. O inciso LX do artigo 5o da Constituição estabelece como regra a publicidade dos atos processuais. De outro lado, o mesmo dispositivo admite a possibilidade de afastar a publicidade estabelecendo o sigilo, mas fixa como parâmetro o atendimento à intimidade e ao interesse social. Todavia, essa tarefa de ponderação não foi atribuída, pelo texto constitucional, ao juiz, mas ao legislador, na medida em que dispôs com clareza que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Assim, é a lei que pode restringir a publicidade e estabelecer a regra do sigilo para determinado ato processual, sendo certo que nos casos em que a lei o fizer, não cabe ao juiz tomar decisão contrária (a menos que expressamente permitido na própria lei), tampouco a qualquer outro agente do Estado.

Deve ser ressaltado que ao passo em que o artigo 5º, V, da Lei nº 12.850/2013 garante o sigilo em proteção à intimidade, o § 2º do artigo 7o da mesma Lei estabelece o sigilo em proteção ao interesse da investigação.

Seja por que motivo for, o sigilo só deve ser afastado após o ato de recebimento da denúncia, na forma do § 3º do artigo 7º da Lei nº 12.850 de tal sorte que a garantia do sigilo é da essência do instrumento colaboração premiada delineado pela citada Lei e tem fundamento constitucional, não se tratando de mero procedimentalismo.

Ao revés, atribuir à violação da regra do sigilo o efeito de punição do responsável se for possível, porque a imprensa não pode ser proibida de veicular notícia, parece um caminho populista, que alia o discurso de liberdade irrestrita à imprensa com a solução punitivista dos problemas que são em essência constitucional-processuais. No fundo essa solução não gera qualquer resultado prático, até mesmo sob o ponto de vista de uma política criminal de matiz punitivista, pois que ao passo em que admite não ser exigível do órgão de imprensa que revele sua fonte, inviabilizando a identificação do responsável, ainda cria um elemento de ponderação em caso já previamente ponderado pelo legislador.

Ora, de fato a garantia constitucional do direito à livre informação jornalística é prevista no §1º do artigo 220 da Constituição, mas não raramente conflita com o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da imagem, constante do artigo 5º, inciso X, da nossa Carta.

Esse conflito, que se configura como um hard case, talvez pudesse ensejar a solução pela ponderação, mesmo porque o constituinte dispôs expressamente que nenhuma lei constituirá embaraço à liberdade de informação jornalística. No entanto foi esse mesmo dispositivo constitucional que determinou dever esse direito ser exercido “observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, ou seja, no limite de respeito à alguns direitos individuais.

Especificamente neste caso da colaboração premiada, o conflito foi resolvido pelo legislador, que deu prevalência à intimidade, à vida privada e à imagem do colaborador, a menos que se obtenha uma autorização do colaborador por escrito, conforme inciso V do artigo 5º da Lei nº 12.850. A ponderação foi feita pelo próprio legislador, afastando o juiz dessa tarefa, sob pena de invadir a atividade legislativa, não sendo factível afirmar que a opção do parlamento constitui um embaraço à liberdade de informação jornalística, já que sopesa os direitos fundamentais em conflito, como determina a própria Constituição.

Dessa forma, o sigilo, muito mais que uma regra procedimental, tem origem constitucional e constitui um requisito de admissibilidade da colaboração premiada enquanto instrumento processual hábil a gerar informação valorável[9]. Nesse sentido, não há que se falar em nulidade – pelo menos antes da admissão –, pois que o caso é mesmo de inadmissibilidade, já que o ato de admissão do meio de obtenção da prova, reservado à atividade judicial, somente será praticado, na imensa maioria dos casos observados na prática, após o ato de vazamento.


Notas e Referências:

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Vazamento de delação premiada gera nulidade da prova? Disponível em <http://www.conjur.com.br/2016-dez-19/vazamento-delacao-nao-gera-nulidade-afirma-guilheme-nucci> Acessado em 20 dez 2016

[2] idem

[3] idem

[4] idem

[5] Segundo GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz e ZANOIDE DE MORAES, Maurício (Org.). Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Editora, 2005, p. 307, elemento de prova são os “...dados objetivos que confirmam ou negam uma asserção a respeito de um fato que interessa à causa

[6] Sobre a discussão a respeito da natureza juridical da colaboração premiada, vide MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada: um braço da justiça penal negociada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. n. 60, v. 10, 2014. 32-66.

[7] para saber mais sobre métodos ocultos, vide PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1a ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[8] Cf. SANTORO, Antonio Eduardo Ramires e RANGEL, Natália. O princípio constitucional do contraditório na interceptação das comunicações telefônicas. In: MENDES, Soraia da Rosa e LONGO, Ana Carolina F. (org.). Segurança Pública. Brasília: IDP, 2015.

[9] A nosso entender a informação gerada pela colaboração é valorável apenas quando do juízo de admissão da peça inaugural acusatória.


antonio-eduardo-ramires-santoro. Antonio Eduardo Ramires Santoro é Professor adjunto de Direito Processual Penal da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ, do PPGD da Universidade Católica de Petrópolis e do IBMEC/RJ. Pós-doutor pela Universidad Nacional de La Matanza – Argentina. Doutor e Mestre pela UFRJ. Mestre pela Universidade de Granada – Espanha. Advogado criminalista..


Imagem Ilustrativa do Post: Le Jour ni l’Heure 5656 : Edgar Degas, 1834-1917, Deux hommes en pied, c. 1862, dét., musée d’Art moderne de Troyes, anc. collection Pierre & Denise Lévy, Aube, Champagne, mercredi 19 juin 2013, 14:55:12 // Foto de: Renaud Camus // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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