Vale quanto pesa* ou ‘quantum’ escreve

28/11/2015

“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

Paulo Freire

A Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (atual Capes) foi criada em 11 de julho de 1951, pelo Decreto nº 29.741, com o objetivo de “assegurar a existência de pessoal especializado em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país“.[1]

Dentre as “missões” desempenhadas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) se destaca a avaliação da pós-graduação stricto sensu. A Capes também realiza para atender aos seus objetivos uma “classificação da produção intelectual” baseada no sistema Qualis.[2]

Ocorre que, lamentavelmente, o sistema adotado pela Capes é obscuro, enigmático e arbitrário. É evidente que áreas de conhecimento completamente díspares não podem ser avaliadas sob o mesmo critério. De tal modo que as ditas “ciências duras” (naturais) não podem ser avaliadas do mesmo modo que as ciências sociais. Do mesmo modo que um programa de pós-graduação em direito não pode ser avaliado seguindo os mesmos critérios de um programa de pós-graduação em física ou em biologia. Em relação ao direito, por exemplo, há uma cultura e uma tradição de produção em livros, inclusive didáticos, que jamais poderia ser abandonada. Já algumas áreas de conhecimento tem sua produção acadêmica direcionada para artigos, “papers”,  revistas e periódicos.

Ao adotar um critério de avaliação único e universal para áreas de conhecimento completamente distintas e cada qual com sua especificidade a agência controladora e reguladora acaba por prejudicar determinadas áreas. Ressaltando que nem todas as áreas de conhecimento são devidamente representadas na Capes.

Outro aspecto que merece uma reflexão diz respeito à avaliação do corpo docente que não pode se pautar tão somente na produção dos professores do programa de pós-graduação. A história, a biografia e a carreira do professor na academia, bem como sua trajetória profissional devem ser consideradas, não podendo ser desprezada em nome de um sistema “quantum”. A história do professor não pode se resumir às últimas publicações, a “triênios” ou “quadriênios” e, tampouco, às regras e critérios que mudam durante o “jogo” gerando uma completa insegurança no meio acadêmico.

Não se questiona aqui a importância da avaliação, mas o critério – ou ausência dele – na avaliação feita pela Capes. Com bem já destacou Tadeu Alencar Arrais, “qualquer processo de avaliação, para almejar justiça, deve ter regras suficientemente claras, ao ponto de serem reconhecidas como legítimas não apenas pelos avaliadores, mas também pelos avaliados. Não deveriam existir enigmas nesse processo. É isso que nos deixa preocupados, pois, ao que pa­rece, Édipo não derrotou a esfinge e Tebas continua em perigo[3].

Cesare Beccaria, autor de um único livro publicado em 1764 – “Dos Delitos e das Penas” – obra que revolucionou o direito penal e uma das mais lidas e estudadas no mundo até hoje, de acordo com os critérios utilizados pela Capes não receberia nem a pior das classificações. Fosse Beccaria professor de algum programa de direito, o que seria impossível, já que não era “doutor”, seria descredenciado do mesmo.  De igual modo, “O Capital” de Karl Max também não seria bem classificado se adotássemos os critérios da Capes para qualificação de livros.

Os defensores do critério Qualis podem alegar que os tempos são outros; que os exemplos citados são ridículos; que atualmente se faz necessário qualificar obras etc..

Contudo, nada disso é suficiente para justificar um critério que os próprios avaliadores têm dificuldades de explicar e os avaliados de entender. Critérios que mudam ao sabor do vento ou daqueles que estão momentaneamente no comando da agência controladora. Critérios, como já dito, que mudam sem quê nem porquê.

Luiz Felipe Pondé [4], professor de Filosofia, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, escreveu: “Não existiria filosofia se nossos patriarcas, de Platão a Nietzsche (para citar dois grandes), tivessem que preencher o Lattes, fazer relatórios Capes ou serem ‘produtivos’. Todos seriam o que, aos poucos, nos transformamos: burocratas mudos da própria irrelevância. Analfabetos do pensamento”.

Com acerto mordaz Pondé assevera, em seu crítico artigo, que: “Rigor nada tem a ver com o que a academia se tornou com o passar dos anos: um antro de política lobista e de burocracia da produtividade a serviço da morte do pensamento. A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos“.

Infelizmente, no momento, valemos (somos avaliados) não pelo que somos como seres humanos, como pessoas, mas o que produzimos ou o que temos. Numa sociedade guiada pelo mercado e pelo perverso sistema capitalista baseado no consumo e onde o indivíduo vale pelo que tem (ou produz), aqueles que não têm (não produzem) estão “fora do jogo”. Neste sentido Simone Torres Evangelista e Maria de Fátima Costa de Paula[5] para quem “o professor precisa vender o seu produto (conhecimento), se submetendo aos ditames externos e mercadológicos, muitas vezes à custa de sua própria autonomia, para ser visto como “eficiente”, como um “bom” professor/pesquisador. Nesse sentido, podemos dizer que “bom” é sinônimo de assujeitado/submisso, uma vez que “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (FOUCAULT, 1987, p. 26).

Sendo certo que a “cobrança por produtividade intelectual (modelo que jus­tifica as hierarquias acadêmicas) é proporcional à precarização dos sistemas de avaliação” [6], sistema de avaliação que vem transformando os professores dos programas de pós-graduação em máquinas de reprodução de ideias e pensamentos para atender às exigências irracionais e burocráticas da Capes e dos programas que a ela se submetem. Como vendedores de “conhecimento” – como se ciência fosse mercadoria – os professores são obrigados a cumprir metas em nome de uma avaliação inumana, irracional e irreal.

É evidente que as exigências da Capes – agência de controle – estão relacionadas ao poder controlador e a disciplina que no dizer de Foucault [7]é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. Para individualizar a pessoa, utiliza-se do exame, que é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los para utilizá-los ao máximo”. E ainda, “às portas fechadas, entre quatro paredes, aqueles que detêm o poder definem quem é o indivíduo através de julgamentos, classificações, medições a fim de individualizá-lo e assim direcionar sua convicção mental a realizar ações, assumir atitudes e padrões mentais de pensamentos para que seja utilizado ao máximo pela máquina do poder”.

Neste sistema de controle e de monitoramento nefando exercido pelas agências controladoras a autonomia vem dando lugar a heteronomia na produção do conhecimento. Os burocratas da educação olvidam que somente é possível fazer ciência com liberdade, independência e autonomia.

Quando se fala em autonomia acadêmica, não se deve deslembrar da autonomia universitária prevista na Constituição da República que dispõe o seguinte: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (art. 207 da CR). Em nome desta autonomia, prevista na Lei Maior, a universidade (pública ou privada) não pode ficar à mercê dos critérios impostos pela Capes. Destaca-se que a Capes não existe sem as universidades brasileiras, mas as universidades sobrevivem, como já sobreviveram, sem a Capes.

Por fim, é necessário lembrar a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) que, como disse Charles Chaplin, “Não sois máquina! Homens é que sois!”

Belo Horizonte, Primavera de 2015.


Notas e Referências:

* A expressão significa dar valor a algo por meio de seu peso e substância. “Quer dizer que você não está pagando mais do que uma coisa de fato vale, nem um centavo a mais por grama inexistente”, afirma Reinaldo Pimenta, autor de A Casa da Mãe Joana, livro que desvenda a origem de expressões.

Há duas origens para ela. Uma remonta a uma lei medieval de povos do norte da Europa, que determinava que o assassino deveria pagar uma quantia em ouro ou prata à família do morto, calculada sobre o peso do falecido. A outra versão é bem brasileira: na época do comércio de escravos, os homens ganhavam valor proporcional à idade e ao peso, características relacionadas à sua força. Por isso, nos mercados de escravos, havia balanças próprias disponíveis para aferir os quilogramas da “mercadoria”.

[1] http://www.capes.gov.br/historia-e-missao

[2] Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Capes para estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação. Tal processo foi concebido para atender as necessidades específicas do sistema de avaliação e é baseado nas informações fornecidas por meio do aplicativo Coleta de Dados. Como resultado, disponibiliza uma lista com a classificação dos veículos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da sua produção. A estratificação da qualidade dessa produção é realizada de forma indireta. Dessa forma, o Qualis afere a qualidade dos artigos e de outros tipos de produção, a partir da análise da qualidade dos veículos de divulgação, ou seja, periódicos científicos”.

[3]ARRAIS, Tadeu Alencar. Editorial crítico ou enigma do qualis. www.revistas.ufg.br/index.php/bgg

[4] PONDÉ, Luiz Felipe. O filósofo do martelo na academia. Jornal Folha de São Paulo, 5.11.2012.

[5] EVANGELISTA, Simone Torres e PAULA, Maria de Fátima Costa de. Políticas de avaliação da pós-graduação: autonomia acadêmica, produção crítica do conhecimento e intelligentzia universitária. Seminário de Análise de Educação Superior, 2014.

https://www.uniso.br/publicacoes/anais_eletronicos/2014/6_es_avaliacao/16.pdf.

[6] ARRAIS, ob. cit.

[7] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997


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