Sinto-me diminuído como humano quando patamares civilizacionais edificados no correr da História deixam de ser devidamente cuidados. Esse sujeito Donald Trump ser feito presidente dos Estados Unidos me acanha.
Mas Trump cumpriu as regras que defendo: o processo democrático. Ele apenas não seria, se eu fosse estadunidense, o meu candidato. Trump, contudo, submeteu-se à legitimação política pelo procedimento eleitoral.
Ademais, não o vejo como um tosco; tenho-o como um espertalhão oportunista da “turma do mal”. Outsider no modo de fazer política do establishment dos EUA, organizou um refletido discurso de conveniência.
Trump armou a fala necessária para obter votos fora do campo dos democratas e dos republicanos sensatos. Prelecionou aos rancores, às invejas, aos preconceitos, aos medos, aos “apolíticos”, às mentalidades religiosas.
O candidato arrivista não será o presidente; o presidente não arrostará o “sistema”. O pragmático empresário Trump prevalecerá sobre os signos oportunistas. O empresário é um exemplar bem sucedido do american way of life.
Enfim, o fanfarrão que disse o adequado a homofóbicos, saudosistas, machistas, racistas, autoritários, militaristas, crentes etc, felizmente não cumprirá o discurso que aglutinou, valorizou e pôs em circulação mundial.
Infelizmente, contudo, o dito, ainda que fosse “tarefa de campanha”, destacou-se e venceu. O discurso vitorioso empolga os preconceitos e regride os avanços nos costumes. Sofremos uma marcha à ré moral.
O enunciação democrática sobreviverá, claro, pois é mais abrangente do que os rancores despertados. As muitas tribos rancorosas ouviram a língua do confronto, mas não conversam entre si, antes, nutrem recíprocos rancores.
Democracia pressupõe laicismo, diálogo, república, militância, tolerância, cuidado. Estamos, todavia, em tempos do “politicamente correto”, intimidados diante de assaltos à condição de vida democrática.
Em 2008 Barak Obama preocupava-se com os “amargurados e aferrados às armas e à religião”. Essa mentalidade não dialoga em lugar algum. Qualquer manual de História nos mostrará que tristemente é assim.
Democracia é uma provisória invenção de conviver; é edificada dialogicamente; é retocada com as esperanças da humanidade. Democracia não comporta verdades reveladas ou intransigência de posição.
Então, algumas coisas devem mesmo ser recusadas. O cuidado democrático pede um permanente discurso de franquias e um contradiscurso de enfrentamento ao que seria letífero à vida plural. Penso, então, já, no Brasil.
Nossos parlamentos e nossos meios de comunicação mais importantes estão tomados por seitas voltadas ao sobrenatural; nossos diálogos por redes sociais são pautados por insubsistências, insultos e exibições ressentidas.
Nossa vida republicana é levada sem cidadania: afastamento das agremiações partidárias; nojo de “tudo isso”; ausência das urnas. Saímos da vida pública real para as manifestações virtuais particulares de mídia.
Flagrantemente, há motivos para desacreditar nos políticos “profissionais”. Está claro, os modos tradicionais de relações de poder não se abriram às novas tecnologias, que permitem mais expressão de pensamento.
Ora, se esse estado de coisas deve ser vencido, é com mais democracia, logo mais participação. Se os indignados retiram-se da militância pelo que deve ser preservado e contra o que deve ser afastado, que ocorrerá?
Democracia pede cuidados. Há condições necessárias a serem guardadas sem as quais a vida democrática não prospera e talvez não subsista. Há vacilos por aí, e estamos vacilões cá entre nós. Ou não?
Imagem Ilustrativa do Post: Donald Trump // Foto de: Gage Skidmore // Sem alterações
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