Usuários, segurança pública e as denominadas “delegacias especializadas” em crimes virtuais

09/02/2019

“Nem todos os vilões são pretos, nem todos os heróis são brancos, há cinzentos em toda a parte”

Alfred Hitchcock

Vivemos no século XXI, momento em que praticamente toda a sociedade utiliza a     tecnologia para trabalhar, estudar, paquerar, pesquisar e se comunicar nas mais amplas formas. Bebês já nascem apertando botões e fazendo toques criativos com a tecnologia e as diversas telas (de computador, tabletsmobiles, etc) que norteiam as nossas vidas. 
A denominada terceira idade busca se atualizar para lidar com as questões e dificuldades tecnológicas do “viver conectado”. São mudanças e adaptações inegáveis. Sob esse aspecto é normal que o usuário deva, à medida em que utiliza da tecnologia (seja por lazer ou trabalho, por necessidade ou hobby), buscar alguma atualização nesse sentido para evitar problemas e vulnerabilidades do uso. Exemplos básicos: se comprou um serviço de de pacote de internet e dados, mais TV, é de bom tom providenciar uma senha segura para o roteador e questionar o técnico sobre segurança básica na hora da instalação presencial ou por telefone, abriu um perfil no Facebook? Ótimo, vale configurar a sua privacidade para não ficar 100% pública. 

Esses são alguns cuidados muito básicos para evitar constrangimentos comuns e que podem facilmente ser providenciados pelo próprio usuário. O conhecimento do usuário é diretamente proporcional à vulnerabilidade em que ele pode estar ou se colocar, pois muitos delitos são cometidos com base no desconhecimento do usuário e não necessariamente num conhecimento técnico de alto nível (competência de crackers e hackers). Nesse sentido, JESUS e MILAGRE discorrem que: "hoje, grande parte dos crimes digitais se deve à ignorância dos usuários, despreparo das autoridades investigativas e, principalmente, à banalização e difusão das técnicas e ferramentas para a aplicação de golpes. Pode-se dizer também que os criminosos digitais, em sua maioria, não praticam crimes do mundo real, porém interessam-se pela prática delituosa virtual, amparados pela falsa sensação de anonimato e conhecedores do despreparo das autoridades que investigarem delitos dessa natureza".

Já, em contexto que envolve vulnerabilidade com um bom nível técnico, Augusto Bequai (apud HERRERO, 1992) provoca: “criminosos digitais exploram lacunas jurídicas de modo a escapar das investigações”…

 

Segurança pública e o papel da polícia

O modelo brasileiro de polícia é originário da França, que dividiu as polícias em polícia administrativa e polícia judiciária, sendo a primeira encarregada de prevenir delitos, e a segunda, na investigação e coleta de provas, oferecendo subsídios para o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público e o magistrado na formação de seu convencimento. A Polícia Federal e a Polícia Civil possuem a mesma natureza: a de polícia judiciária. 

A nossa Carta Magna de 88, em seu capítulo III, DA SEGURANÇA PÚBLICA, artigo 144 demonstra uma preocupação do legislador em estruturar um conjunto de órgãos visando a segurança pública do Estado Democrático de Direito: “A polícia administrativa é inerente e se difunde por toda a administração pública, enquanto que as demais são privativas de determinados órgãos (Policias Civis) ou corporações (Polícias Militares)”(1)
Hely Lopes Meirelles define que “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a administração pública para conter abusos individuais, garantindo os interesses da coletividade”.

JESUS e MILAGRE, apoiados na Lei 12.737/12 discorrem: “há a possibilidade da polícia judiciária estruturar órgãos especializados no combate à ação delituosa em redes de computadores, dispositivos de comunicação ou sistemas informatizados. Nada fala em relação à cooperação da iniciativa privada, muito utilizada, por exemplo, nos Estados Unidos”. (2) 

A Polícia Federal possui a melhor e mais completa infraestrutura (tanto de equipamentos quanto de pessoal) e atende a União em crimes que afetam o país  como um todo, tais como contrabando, tráfico de drogas, tráficos de armas, “crimes do colarinho branco”, crimes contra o sistema financeiro, entre outros. Já a Polícia Civil atende crimes dentro de cada Estado da Federação. 

Há também a Polícia Científica, que possui peritos sendo representada pelo Instituto de Criminalística (IC). Objetiva auxiliar a Justiça com provas técnicas. O site do Instituto descreve os núcleos de atuação dos peritos, in verbis: 

O Instituto de Criminalística conta com núcleos que realizam as seguintes perícias especializadas: acidentes de trânsito, crimes contábeis, crimes contra o patrimônio, crimes contra a pessoa, documentos, engenharia, perícias especiais, identificação criminal e perícias de informática. Conta, ainda, com núcleos responsáveis por exames, análises e pesquisas, como: análise instrumental, balística, biologia e bioquímica, física, química e exames de entorpecentes. Todos os núcleos de perícias especializadas estão sediados na Capital, junto à sede do IC. (3)

O escopo da polícia judiciária é o de combate à violência, a garantia da paz pública e da ordem jurídica. No entanto, na prática, quando uma pessoa (vítima) procura uma delegacia para fazer um Boletim de Ocorrência (BO), o relato será apurado e poderá virar um inquérito, que será conduzido por um delegado na delegacia, um promotor de justiça (representante do Ministério Público), um juiz (do DIPO) para iniciar um processo criminal e punir o autor do fato. Em linhas gerais, basicamente segue-se o mesmo procedimento para demandas relacionados a delitos informáticos.

Num processo judicial, a demanda poderá ter uma melhor condução caso a caso, provavelmente com a constituição de um advogado preparado, mas é importante questionar que há uma estrutura Estatal que não possui uma eficiência dentro do que se propõe, mas que possui um custo fixo para o cidadão que é obrigado a pagar impostos para receber um baixo índice de resolução do Estado e da polícia caso precise efetivamente dela em algum momento.

“O Governo de São Paulo anunciou em 2001 a criação de uma divisão da polícia para atender a crimes informáticos, na época, ainda sem legislação específica. Era criada a divisão de delitos praticados por meios eletrônicos da DIG (Delegacia de Investigações Gerais), a princípio para se especializar no combate aos crimes praticados por crackers. Hoje, esta delegacia é a DIG/DEIC, 4º Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos de São Paulo”. (4)  

Como não é incomum as delegacias não atenderem a vítima ou simplesmente não darem conta da demanda sempre com argumentos de ausência de pessoal, infraestrutura e problemas sistêmicos, etc, além de toda a estrutura estatal acima descrita (e idealizado para um Estado democrático de Direito), o cidadão/vítima, também pode registrar algum conteúdo probatório via esfera cível como o registro de ata notorial no Tabelião de Títulos e Documentos, que possui fé pública. É uma forma se de preservar a prova e dar publicidade aos fatos. Mas tudo depende de cada caso, de modo individualizado. 

Terminologia e logística das denominadas “delegacias especializadas”

Conforme já mencionado, os crimes ou contravenções cometidos em ambientes virtuais, exceto os que envolverem competência da Polícia Federal, são investigados pela Polícia Civil de cada Estado da Federação. Ocorre que, através do Google e sua tecnologia page rank (5), assim como outros sites de busca, é fácil encontrar um levantamento das chamadas “delegacias especializadas em delitos virtuais” para cada Estado do Brasil. Segue o link do siteSafernet, disponível no endereço eletrônico: http://www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias como exemplo desse tipo de compilação on-line para o cidadão. 

             Aqui em São Paulo, são acusadas duas delegacias denominadas “especializadas”: 

a) SÃO PAULO – 4ª Delegacia de Delitos Cometidos por Meios Eletrônicos (DIG/DEIC). Endereço: Avenida Zack Narchi, 152, Carandiru, São Paulo/SP Telefone: (11) 2221-7030. OBS: Atende apenas demandas relacionadas a fraudes financeiras por meios eletrônicos. Em casos de outros crimes por meios digitais, o cidadão deve se dirigir a uma delegacia comum.

b) SÃO PAULO - Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa – DHPP (crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis). R. Brigadeiro Tobias, nº 527 - 5º Andar, CEP – 01.032-001, CENTRO, São Paulo/SP - Crimes de pedofilia ou outros de cunho sexual que envolvam crianças ou adolescente ou extorsão onde houve utilização da internet para a prática do delito. (6)

No DEIC, há a Divisão de Tecnologia da Informação do Depto. de Inteligência, que recebe peritos para ajudar e orientar os profissionais nas investigações. Não há investimento público suficiente para manter os peritos lá em tempo integral. Um outro dado relevante do DEIC (7), é que a principal demanda lá recebida diz respeito a fraudes patrimoniais, estelionato por meio de sites fraudulentos e saques de contas bancárias, além de problemas diários com ausência de investimento do Estado para uma melhor performance do trabalho em equipe. 

A denominação “delegacia especializada”, do ponto de vista de um usuário/cidadão comum que busca esse tipo de informação quando se depara com uma infração ou se torna vítima, é levado a crer que uma delegacia especializada é uma delegacia com estrutura (tanto de equipamentos como profissionais) preparada para atender qualquer demanda proveniente de uso inadequado da tecnologia. Mas a realidade não é essa. 

Por esse e outros motivos, soa errônea a denominação “delegacia especializada”, pois induz o cidadão comum a um pensamento de que há algum tipo de atendimento multidisciplinar para o caso dele, atuando de modo direcionado para ilícitos digitais nas delegacias. Mas ainda estamos muito longe disso.

A principal diferença entre uma delegacia comum (de bairro) e uma “delegacia especializada”  seria o conhecimento técnico dos profissionais que lá trabalham. Os profissionais precisam ter bons conhecimentos e capacitação para atender esse tipo de demanda, atém de proatividade (carência geral em órgãos públicos e burocráticos). 

É fato, contudo, que as delegacias (todas) possuem um enorme problema de infraestrutura para a investigação de qualquer tipo de atividade ilícita (virtual ou não), por isso, infelizmente, na maioria dos casos, é eminente a necessidade da vítima ter que recorrer a advogados particulares para fazer investigações com ordens judiciais na esfera privada e levar tudo compilado para uma equipe. 

Na realidade, o que prevalece é uma distância significativa entre teoria e prática, pois mesmo com a mencionada estrutura, o Estado não consegue zelar pelo cidadão. O que é oferecido pelos órgãos policiais, na prática, é: temos gratuitamente, mas não disponibilizamos até a vítima se ver obrigada a arcar com custas onerosas de advogados particulares para dar andamentos (simples, muitas vezes). Logo, a “eficiência” Estatal brasileira, oferece, mas não disponibiliza, o que não é nenhuma novidade. 

Para advogados, tal realidade não deixa de ser uma boa notícia financeira, mas como tarefa pública, é um ponto de conflito que dá ensejo a outro debate sobre mais uma das inúmeras ineficiências que o próprio (e soberano) Estado brasileiro se dá ao luxo de praticar completamente despido de seus deveres e obrigações. Como bem evidencia Roberto Darós Malaquias:

Na área de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), em que é possível se observar as reais deficiências nesse campo específico do direito, tendo em vista que a admissão e a aquisição das provas nos crimes cibernéticos têm sido executadas de forma deficitária, negligente ou incompleta, o que sempre representa uma grande incógnita aos operadores do direito e um vasto campo para a defesa dos delinquentes cibernéticos. Qual a forma correta para se efetuar a coleta da prova e manter a sua integridade nos crimes cibernéticos? A autoridade policial está preparada para administrar as diligências necessárias no contexto desse tipo de delito? O magistrado, o membro do Ministério Público e da Defensoria Pública estão aptos a manusearem a escassa legislação sobre o assunto, dando-lhes a eficácia necessária diante dessa nova onda de criminalidade virtual? Qual o novo perfil e parâmetro probatório no ordenamento jurídico que servirá de subsídio para o convencimento do magistrado  na formação de seu juízo de valor? (8) 

Uma importante informação está no fato de que para um perito trabalhar já há um significativo detalhe no custo dos equipamentos, cujos valores variam cada um em torno de R$ 50.000,00 a R$ 135.000,00. Os instrumentos de trabalho de um perito são razoavelmente caros. Não é necessário dizer que investir em equipamentos de perícia e treinamento não está no escopo do investimento dos governos do Estaduais para as delegacias. 

Em doses homeopáticas, orienta-se para que a vítima de um ilícito praticado pela internet ou por computador, procure a delegacia de seu próprio bairro e tente resolver. Rony Vainsof, advogado e sócio do Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados, escritório especializado em Direito Digital, relata que, cada vez mais, as autoridades policiais estão se instrumentalizando com o intuito de trabalhar com essa nova demanda, devido ao fato de que a grande maioria dos crimes estão migrando para o mundo digital. “Cada vez mais, as autoridades policiais têm conhecimento de práticas investigativas. A Academia de Polícia, já possui aulas práticas a respeito do procedimento de investigação de crimes cibernéticos. O Ministério Público Estadual acabou de criar um núcleo de combate à prática de ilícitos cibernéticos, justamente para evitar a necessidade de criar uma unidade especializada para algo que está se generalizando, ou seja, todo mundo precisa saber desse assunto”. complementa. (9) 

VAINSOF também destaca que hoje em dia, cada vez mais, redes sociais como o Facebook, o Instagram, o Twitter, entre outras, estão investindo no combate à prática de ilícitos mais graves na disseminação de conteúdo de ódio.“Então, para o cidadão comum eu diria o seguinte: preserve a prova, cientifique seu provedor e procure a delegacia do bairro para verificar se ela consegue investigar” (10)

A importância da especialização de delegados e investigadores nas delegacias como um todo é necessária para conduzir determinada investigação com certa eficiência. Um computador apreendido é remetido para o instituto de criminalística e os peritos fazem a coleta de informações. Na Polícia Federal, por exemplo, onde a estrutura e o preparo dos profissionais são melhores, existe um caminho mais rápido de apreensão e remessa para o Instituto de Criminalística. 

 

Notas e Referências:

(1) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo, 2012, p. 115. 
(2) 
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.74. 
(3) 
Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/fale/institucional/answers.aspx?t=2. 
(4) JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.181. 
(5) O sistema PageRank é usado pelo motor de busca Google para ajudar a determinar a relevância ou importância de uma página. Foi desenvolvida pelos fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin enquanto cursavam a Universidade de Stanford em 1998. Disponível em:https://pt.wikipedia.org/wiki/PageRank
(6) Disponível em: http://www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias#sp2. Última consulta realizada em abril de 2017. 
(7) 
A entrevista de campo realizada no DEIC em julho de 2016 foi colhida antes da última atualização do site Crimes pela Internet (que saiu do ar e também realizava essas compilações) e do site do DEIC, que antes informava: DIG-DEIC – 4ª Delegacia – Delitos praticados por Meios Eletrônicos. Presta atendimento presencial, por telefone e via Web. Endereço: Av. Zack Narchi, 152, Carandiru – São Paulo (SP) Fone: (11) 2224-0721 ou 2221 – 7030. Para denunciar qualquer espécie de delito virtual anonimamente, utilize o e-mail:4dp.dig.deic@policiacivil.sp.gov.br. O Site Crimes Pela Internet com o objetivo de informar o seu público esclarece que a 4ª Delegacia – Delitos praticados por Meios Eletrônicos investiga apenas fraudes patrimoniais praticadas por meio eletrônico no âmbito da Capital do Estado de São Paulo tais como: estelionato; furto mediante fraude; desvio de dinheiro de contas bancárias; pagamento de títulos por meio de fraudes, empresas falsas de empréstimos; compras de mercadorias em sites falsos (e-comerce). Assim, caso a denúncia trate de crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), ou ameaças praticados por meio de redes sociais, blogse-mails, falsidade ideológica (fakes, perfis falsos, documentos, sites falsos, etc), ofensas ao direito do autor, invasão de dispositivo informático, “furto” de senhas ou de dados, devem ser registradas em qualquer outra delegacia. Dê preferência a delegacia mais perto de sua residência. 
(8) MALAQUIAS, Roberto Antônio Darós. Crime cibernético e prova. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 44. 
(9) Palestra AASP - Aspectos Criminais do Compliance Digital. Julho de 2016. Rony Vainzof, advogado do escritório Opice Blum. 
(10) Palestra AASP - Aspectos Criminais do Compliance Digital. Julho de 2016. Rony Vainzof, advogado do escritório Opice Blum. 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Malheiros, São Paulo, 2012, p. 115. 
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.74. 
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José António. Manual de Crimes Informáticos. Editora Saraiva. 2016, p.181.
 
MALAQUIAS, Roberto Antônio Darós. Crime cibernético e prova. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 44. 

 

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