Uma vez mais: a decisão do Min. Marco Aurélio no caso do pedido de impeachment do Vice-Presidente Temer (MS 34.087) e a exigência da coerência de princípio como integridade – uma resposta à crítica de Paulo Iotti Vecchiatti – Por Alexandre Gustavo Melo Fr

13/04/2016

Paulo Iotti Vecchiatti apresenta texto elegante, intitulado “STF deve impor coerência ao Presidente da Câmara para impor instauração de impeachment de Temer”, em que analisa a decisão monocrática, em sede de liminar, do Ministro Marco Aurélio, no Mandado de Segurança 34.087, brindando-nos com citação de nosso trabalho anterior sobre a mesma temática[1]. Sinteticamente, nosso caro interlocutor, com quem já publicamos importantes textos[2], apresenta aquilo que, para usar uma expressão do filósofo Giacomo Marramao, se convencionou chamar de uma “concordância discordante” em relação ao nosso artigo anterior[3]. Assim, para Iotti, embora concordemos que tenha faltado coerência à decisão do Presidente da Câmara dos Deputados, discordamos quanto ao sentido da coerência a ser exigida do Presidente da Câmara dos Deputados. O autor, de fato, faz um brilhante trabalho de reconstrução das decisões do Presidente da Câmara e da liminar do Min. Marco Aurélio, apontando argumentos que, segundo ele, justificariam a posição segundo a qual a decisão do Ministro estaria correta em cassar a decisão do Presidente da Câmara. Contudo, apesar dos bons argumentos apresentados, mantemos nossa “concordância discordante”.

A conclusão de Paulo Iotti é de que a decisão do Ministro Marco Aurélio foi acertada do ponto de vista jurídico, já que, segundo argumenta, a análise do Presidente da Câmara dos Deputados, acerca da denúncia por suposto crime de responsabilidade contra o Vice-Presidente Michel Temer, adentrou o mérito, não se circunscrevendo à admissibilidade da justa causa da denúncia, o que somente poderia ser feito pela Comissão Especial e pelo plenário da Câmara dos Deputados. Ademais, a decisão do Min. Marco Aurélio nada mais faria, segundo Iotti, do que exigir coerência decisória por parte do Presidente da Câmara dos Deputados, já que este, tendo recebido denúncia de crime de responsabilidade contra a Presidente Dilma Rousseff por fatos semelhantes, também deveria ter recebido a denúncia apresentada contra o Vice-Presidente Michel Temer[4].

Basicamente, Paulo Iotti acredita que a decisão do Min. Marco Aurélio, em que pese apresentar uma “fundamentação falha” por não tocar expressamente a exigência da coerência, acertou em sua conclusão. De toda a forma, a coerência que, segundo Iotti, se exige é a de igualdade no tratamento, expressa no velho brocardo anglo-saxão do “treat like cases alike”; restando, assim, para o autor, cumprida a exigência de uma coerência de princípio, na medida em que o Direito exige que as conclusões de um caso devem ser respeitadas em casos análogos posteriores.

Oportuno o diálogo com nosso caro interlocutor Paulo Iotti para, ao oferecer nossas discordâncias e as razões pelas quais discordamos, recuperarmos adequadamente a ideia dworkiana de coerência de princípios, como coerência com os princípios, própria da tese do Direito como Integridade. Dois são, pelo menos, os pontos centrais de nossa “concordância discordante”.

O primeiro é a diferença entre justa causa e mérito. A análise de justa causa é a de um requisito material da própria procedibilidade da denúncia de crime de responsabilidade, com base na aplicação subsidiária do art. 395, III do CPP – lembrando que a Lei 1.079/50, art. 38, diz que o CPP seria aplicado de forma subsidiária. Dito de outra forma, a análise de justa causa não é análise de mérito, mas da regularidade do próprio ato processual da denúncia como exigência do devido processo legal ou, no caso, do devido processo legislativo. Para tanto, cabe, sim, ao Presidente da Câmara dos Deputados proceder a uma análise da tipicidade da conduta imputada como crime de responsabilidade, em seus aspectos material e subjetivo, de tal sorte que, não verificando haver elementos que, em tese, configurariam crime de responsabilidade, deve ele negar seguimento ao pedido – como, de resto, tem sido a práxis da Presidência da Câmara, com base na competência prevista a partir do art. 218, § 3.º, do Regimento Interno.

O segundo ponto de divergência diz respeito ao sentido do que seja coerência de princípio. Para Paulo Iotti, a exigência de coerência de princípio estaria atrelada à exigência de se dar respostas semelhantes, ou mesmo iguais, para casos semelhantes ou mesmo análogos. Ou seja, a resposta para uma questão jurídica dependeria somente da coerência com a forma como ela foi decidida no passado, independentemente da correção do seu conteúdo. Embora, como mostramos em artigo anterior[5], a decisão do Min. Marco Aurélio não tenha em momento algum exigido coerência, qualquer que ela seja, por parte do Presidente da Câmara, apenas tendo concedido parcialmente a liminar com base tão somente no argumento da incompetência do Presidente da Câmara para o juízo de mérito quando do recebimento da denúncia de impeachment, Paulo Iotti acaba por assim pretender justificar a correção da decisão do Ministro com base em uma concepção típica do convencionalismo semântico, que exigiria apenas uma coerência de fato, e não de princípio, com decisões tomadas no passado.

Quando, no artigo anterior[6], criticávamos a decisão do Ministro do Marco Aurélio, estávamos exigindo uma coerência de princípio como integridade, como coerência com os princípios, no sentido da tese do Direito como integridade, de Dworkin, que não se deixa reduzir à noção própria de um convencionalismo semântico, segundo a qual se deve “treat like cases alike”. Como, inclusive, já foi esclarecido em outro artigo:

“Com Dworkin, entendemos que, embora o ideal ou virtude política da integridade seja “por vezes descrito pelo clichê de que os casos semelhantes devem ser tratados de forma parecida” ou semelhante (...), a integridade no Direito exige algo mais profundo, ou seja, uma coerência de princípios (não simplesmente de regras), que não pode correr o risco de ser meramente interpretada de forma convencionalista, no horizonte histórico-efetual prevalecente de uma dada tradição interpretativa. A interpretação construtiva envolve uma terceira etapa, crítica, “pós-interpretativa ou reformuladora à qual ele [o intérprete] ajuste sua ideia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele [intérprete] aceita na etapa interpretativa” ou de primeiro ajuste a um conjunto de decisões passadas (...). Nesse sentido, “Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam” (...)[7].

Vale dizer, a coerência de princípio como coerência com princípios ou integridade exige algo além do que uma mera coerência de fato entre decisões tomadas no passado; algo além, portanto, daquilo que, por vezes, como citado a partir de Dworkin, seja só um clichê de que “cabe tratar de forma semelhante casos semelhantes”: a integridade exige uma aplicação consistente dos princípios do Direito e não uma mera reprodução convencionalista de um entendimento adotado anteriormente, só porque foi anteriormente adotado. A integridade, justamente, exige uma coerência, não apenas com regras pré-estabelecidas, mas coerência com os princípios do Direito que devem dar sentido a essas regras[8]. Aliás, como dito acima, essa coerência com os princípios pressupõe a chamada exigência de justificação crítica na fase pós-interpretativa: é o que exige, quando for o caso, descartar, inclusive, o entendimento anterior, adotado na forma de uma regra por uma decisão anterior, quando as próprias exigências de princípio assim o determinarem, aqui e agora, sobre o pano de fundo da compreensão, de longo prazo, da história institucional do Direito como um empreendimento público, intergeracional.

O que Dworkin exige daquele que é colocado na posição de aplicar o Direito – no caso, o Presidente da Câmara –, é que seja coerente com o sistema de princípios que subjaz às decisões passadas[9]: não dar seguimento a pedidos que não configurem, em tese, crime de responsabilidade, por não haver previsão (tipificação) legal.

O Min. Marco Aurélio, assim, errou ao determinar que o Presidente da Câmara desse prosseguimento a um pedido de impeachment contra o Vice-Presidente sem justa causa, pois os atos que supostamente teria cometido quando do exercício da Presidência não configuram crime de responsabilidade. Todavia, o Ministro ainda estaria errando, mesmo que argumentasse apenas pela incoerência decisória ou de fato por parte do Presidente da Câmara, já que a integridade exige algo mais, exige coerência com princípios e não apenas com decisões passadas, sejam quais essas decisões tenham sido. Por sua vez, o erro do Presidente da Câmara em ter dado seguimento ao pedido sem justa causa de impeachment da Presidente da República deve ser anulado, por ausência de crime de responsabilidade, uma vez que contraria, justamente, a coerência com os princípios exigida para o caso[10].


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://emporiododireito.com.br/instauracao-de-impeachment-de-temer/, acesso em 12 de Abril de 2016.

[2] Exemplos dessa interlocução, os recentes artigos, Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade, em coautoria com Alexandre Bahia e Marcelo Cattoni, disponível em http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/, acesso em 12 de abril de 2016; e Afinal, a quem esta OAB representa?, em coautoria com Alexandre Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Cattoni, disponível em http://emporiododireito.com.br/afinal-a-quem-esta-oab-representa/, acesso em 12 de abril de 2016.

[3] BAHIA, Alexandre, FERNANDES, Bernardo Gonçalves, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcel Andrade. O pedido de impeachment contra o vice-presidente Michel Temer e a concessão parcial da liminar no MS 34.087 pelo ministro Marco Aurélio. Disponível em : http://emporiododireito.com.br/o-pedido-de-impeachment/, acesso em 12 de Abril de 2016.

[4] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. STF deve impor coerência ao Presidente da Câmara para impor instauração de impeachment de Temer. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/instauracao-de-impeachment-de-temer/, acesso em 12 de Abril de 2016. Chega, também, à conclusão de que se deve exigir coerência do Presidente da Câmara o caro colega Thomas Bustamante, em excelente parecer jurídico, disponível em: http://emporiododireito.com.br/parecer-juridico-por-thomas-da-rosa-de-bustamante/, acesso em 12 de Abril de 2016, como o qual, em boa parte, concordamos.

[5] BAHIA, Alexandre, FERNANDES, Bernardo Gonçalves, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcel Andrade. O pedido de impeachment contra o vice-presidente Michel Temer e a concessão parcial da liminar no MS 34.087 pelo ministro Marco Aurélio. Disponível em : http://emporiododireito.com.br/o-pedido-de-impeachment/, acesso em 12 de Abril de 2016.

[6] BAHIA, Alexandre, FERNANDES, Bernardo Gonçalves, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcel Andrade. O pedido de impeachment contra o vice-presidente Michel Temer e a concessão parcial da liminar no MS 34.087 pelo ministro Marco Aurélio. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-pedido-de-impeachment/, acesso em 12 de Abril de 2016.

[7] BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcel Andrade. A decisão do STF sobre o impeachment representa uma judicialização da política? Uma resposta a Luís Werneck Vianna. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/a-decisao-do-stf/#_ftnref11. Acesso em 12 de abril de 2016.

[8] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 164 e ss.

[9] E que, ao fim e ao cabo, constitui o que se chama de Direito em uma “comunidade de princípios” (Dworkin).

[10] Cabe considerar que essa é apenas uma das várias irregularidades que já nesta altura padece este atual processo de impeachment contra a Presidente da República, como é o caso do relatório já aprovado pela Comissão Especial da Câmara, em 11 de abril de 2016. Sobre isso, ver VARGAS, Beatriz e MOREIRA, Luiz. Ingredientes para um golpe parlamentar, disponível em http://www.vermelho.org.br/noticia/279062-1, acesso em 12 de abril de 2016. E a entrevista de Marcelo Cattoni, concedida à Rádio UFMG Educativa, em 12 de abril de 2016, disponível em https://www.ufmg.br/online/radio/arquivos/042985.shtml, acesso em 12 de abril de 2016.


 

Imagem Ilustrativa do Post: 27-03-2015 Palestra no Secovi-SP do vice-presidente Michel Temer /2014-12-18 – Vice-Presidente Michel Temer durante cerimônia de diplomação/ Foto de: Michel Temer // Sem alterações

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