UMA SUCINTA REFLEXÃO ACERCA DA NEGAÇÃO DE LIBERDADES NO ÂMBITO DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

20/12/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Capaz de facultar a experimentação de projetos parentais a um número cada vez maior de pessoas, a reprodução humana assistida, entremeio as suas muitas técnicas, tem sido por vezes enaltecida como louvável avanço tecnológico na seara médica.

Imerso nesse contexto e para além das muitas possibilidades de sua instrumentalização em quadros patológicos de maior ou menor complexidade, o fim condutor deste singelo opúsculo busca estimular a reflexão acerca da possibilidade de recorrer à reprodução humana assistida sem que exista qualquer quadro que se aproxime da ideia de infertilidade e, mais pontualmente, meditar sobre a viabilidade de recurso à gestação por substituição – popularmente conhecida como “barriga de aluguel” ou, ainda, como “cessão de útero” – em tais cenários.

É oportuno antecipar que a referida prática, entre nós brasileiros, à míngua de legislação parlamentar específica, encontra orientação normativa na Resolução nº 2.168/2017 exarada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), texto que, dentre outros aspectos que podem ser descritos – no mínimo – como questionáveis, restringe o rol de seres humanos que poderá buscar a experimentação do projeto parental por meio daquelas mesmas técnicas gestacionais que se propõe a regular.

Em tal contexto, após versar acerca dos limites cronológicos que servem para seccionar os eventuais doadores de espermatozoides ou de óvulos e, ainda, a mulheres consideradas aptas a gestarem oócitos produzidos com seu próprio material genético (ou não), elencando, portanto, no nível abstrato, as pessoas que poderão recorrer à ciência médica para realizar projeto parental próprio ou alheio, a Resolução ora esquadrinhada explicita que

[as] clínicas, centros ou serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética, em união homoafetiva ou pessoa solteira[1].

Como adiantado, a restrição normativa imposta pelo Conselho Federal de Medicina apresenta teor – no mínimo – inquietante, e isso, tanto no que toca a sua constitucionalidade como no que pertine as suas justificativas técnicas.

Inicialmente, cumpre salientar que o pano de fundo da temática pode ser recortado junto ao cenário constitucional brasileiro. O exercício de direitos sexuais e reprodutivos consiste em uma importante dimensão do direito à liberdade, aqui pensada em sua dimensão positiva. Daí a imperiosidade de rememorar a redação do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

E, como visto, lei sobre o tema não há!

Ao menos a priori, parece inexistir qualquer espécie de lesão atada ao exercício da liberdade reprodutiva nos termos anteriormente propostos, ou seja, sem que exista recomendação médica ante a identificação de um quadro de infertilidade. Que sentido há na limitação do acesso à gestação por substituição por parte de mulheres que não demonstrem possuir qualquer patologia afeta à capacidade de gestação da própria prole, quando se tem em mente que a gestatrix não sofrerá qualquer dano que não possa manifestar-se, igualmente, nas hipóteses expressamente autorizadas pela Resolução nº 2.168/2017?

Aliás, a normatividade que pulsa de outro princípio constitucional – tem-se em mente o princípio da isonomia em sua vertente substancial – é posta em xeque quando se identifica que Resolução ora esquadrinhada legitima o recurso à gestação compartilhada a casais de mulheres tão férteis como Afrodite ou Vênus ao autorizar a implantação, no útero da outra, do embrião obtido a partir da fecundação do óvulo da parceira. Em tal quadro, no limite, a responsável pela renda familiar terá óvulo seu fertilizado para ser implantado na parceira que se propôs a gestá-lo – pouco importando as razões que fundam essa escolha – situação que se revela ao mundo enquanto imagem especular perfeita da hipótese suscitada nas primeiras linhas deste texto, exceto pela opção sexual da futura mãe de uma criança gestada em ventre alheio.

De outra banda, cogitando a mui verossímil situação na qual um sem número de mulheres poderá ter seu projeto parental obstaculizado pela impossibilidade de ausentarem-se do trabalho durante os meses necessários a uma gestação saudável – por aspectos afetos, por exemplo, ao Império do Patriarcado – desvela-se, em muitos contextos imagináveis em concreto, que a gestação por substituição milita em favor do melhor interesse da futura prole, uma vez que propicia que sua genitora permaneça labutando, empregada e com renda, e sem que isso a impeça de acompanhar o processo gestacional. Em tal contexto, a conhecida dissociação entre maternidade e gestação poderá facultar a ampliação de vantagens – incluídos, aqui, benefícios com natureza econômica – que poderão vir a ser revertidas em favor da futura prole.

E ao vislumbrar-se que a referida prática médica está intimamente atada ao universo do consumo – embora, nem sempre, este campo do direito terá incidência sobre a fenomenologia social – outro argumento emerge em prol da viabilidade normativa de acesso à técnica da gestação por substituição a qualquer mulher que queira dela lançar mão, pois, com efeito, nos termos do artigo 39, inciso IX, da codificação consumerista, tem-se que a recusa à prestação de serviços a quem se disponha a contratá-los caracteriza prática abusiva, exceto diante de legislação específica que, como visto, não existe na hipótese.

Daí que constatada a inexistência de ato legislativo que dê conta das técnicas de gestação por substituição no Brasil, parece imperioso reconhecer a ilicitude da recusa à realização da surrogacy independentemente do quadro clínico vivido pela mãe intencional, uma vez que a mencionada Resolução não tem o condão de exonerar os profissionais das obrigações que lhe são legalmente impostas.

Aliás, é preciso dizer que – tal como a liberdade (artigo 5º, caput e inciso II, CF/88) – a proteção ao consumidor também se encontra insculpida no rol de direitos e garantias fundamentais da Carta Magna (artigo 5º, inciso XXXII, CF/88).

Há que se reconhecer, ainda, a partir da leitura da exposição de motivos que antecede o texto em comento, a existência de princípios e objetivos específicos afetos às técnicas de reprodução assistida que igualmente não se coadunam as restrições descritas anteriormente. Com efeito, lá subsistem referências à “necessidade de harmonizar o uso [das técnicas de reprodução assistida] com os princípios da ética médica”, o que nos leva a revisitar o Código Médico Deontológico, o qual, em seu primeiro capítulo, dando conta dos princípios fundamentais que informam o agir profissional, registra que “a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza”.

Como visto, vale conferir especial destaque à vedação a qualquer tipo de discriminação, disposição que revela que a diferenciação ora sustentada entre mulheres capazes e incapazes de gestar seus filhos não é congruente com a principiologia das atividades médicas.

Em semelhante trilhar, tem-se que o item II do referido texto normativo estabelece que “o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

E cabe rememorar que “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”, sendo assim considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)[2].

Destarte e para além do raciocínio binário que convida à certeza de que “saúde” é tão somente o oposto do substantivo “doença”, a concepção holística do assunto aqui tratado permite que a ideia de bem-estar físico e mental assuma o protagonismo a ela reservado pelo Direito pátrio no debate ora proposto e, nessa linha, o direito ao uso das técnicas de gestação por substituição, facultado a qualquer mulher, sobrevém iluminado como um requisito indispensável para a garantia do bem-estar do ser humano.

E claro, tudo isso em cenários nos quais reine a gratuidade.

A bioética parece não permitir a exploração do homem pelo homem.

 

Notas e Referências

[1] Conselho Federal de Medicina. Resolução nº. 2.168/2017, Seção VII, caput. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2168

[2] Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) – 1946. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html

 

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