Uma reflexão sobre o julgamento penal do caso Charlie Hebdo    

12/02/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

O dia fatídico é 07/01/2015. Paris é marcada por um atentado terrorista, de caráter jihadista, contra o jornal satírico Charlie Hebdo. Entre as vítimas, contam-se doze mortos e cinco feridos[1]. Naquela data, dois homens vestidos com trajes pretos e armados com fuzis dispararam em ato de violência contra a sede do semanário, manifestando uma reação intolerante em face de uma edição jornalística também intolerante por parte do veículo de imprensa vitimado. A questão embrionária, neste ponto, abarca uma complexidade desintegrativa das barreiras de civilidade geradas no cerne do choque de culturas inerentes à “globalização negativa”[2]. São problemas políticos, sociológicos e históricos muito sérios e que demandam extensa análise. Entretanto, a questão central neste presente texto está em provocar uma outra reflexão, que, embora derivada, está centrada e delimitada na reação jurídica contraterrorismo. Portanto, a questão é a seguinte: há espaço para o Direito Penal na resolução de tais imbróglios complexos e sócio-históricos? Nossa resposta hipotética é negativa.

Neste ponto da provocação, nós queremos levantar a problemática acerca de como o sistema jurídico se inclina à aspiração de tendências políticas globais que contaminam o Direito, desmantelando os princípios democrático-penais. Afinal, percebemos que as respostas punitivas ao terrorismo são simbólicas por estarem direcionadas à amenização de problemas que seguem ocultos, enquanto frutos do próprio modelo de política da civilização que emite a ordem punitiva. Isso quer dizer que o fenômeno compreendido como método de violência[3] é inerente a globalização negativa, uma vez que as regras do jogo são vorazes e surgem da vivência social de um cenário global aberto e igualmente voraz[4].       

Desde um olhar jurídico-penal, identificamos um paradoxo que nos chama a atenção no caso Charlie Hebdo. O aumento de comunicação midiática produz conflitos ao colidir culturas diferentes pela aproximação. Disso resulta um ataque terrorista em resposta a essa comunicação, que, no caso Charlie Hebdo, dá-se em forma de satíra religiosa. O Estado, por sua vez, fomenta o aumento de comunicação e conflitualidade por uma questão de defesa principiológica à aparente liberdade constitucional, e as respostas aos problemas deste choque cultural, gerados pelo próprio Estado, ocorre por meio do Direito Penal, que pune condutas periféricas ao ato principal de terrorismo, enquanto manifestação simbólica e narcísica de contenção do fenômeno por meio da aplicação jurídico-punitiva. 

Um ponto óbvio: trata-se de um problema difícil. Com isso, claro que a questão originária não pode ser resumida a este paradoxo-hipotético observado, uma vez que é possível apontar as ações terrorista, de caráter jihadista, na Europa, como decorrentes da ruptura democrático-liberal[5], ao estilo welfare-state, bem como à colisão de estranhamento e ressentimento ao complexo significado da cultura ocidental subjacente às caricaturas religiosas manifestadas na mídia[6]. Entretanto, o contraterrorismo, neste sentido, é o que nos interessa.

No mês que encerrou o primeiro ano pandêmico de covid-19, o cenário global assistiu o desfecho do julgamento deste importante case criminal francês. Parece que foi ontem, mas já se passaram cinco anos desde aquele trágico fato violento. Agora, o que nós podemos perceber é que a França transmite ao mundo a mensagem de que o terrorismo deve ser punido com rigor, reforçando uma narrativa cultural em face do inimigo jihadista perseguido- o que culturalmente é temeroso à distorção e expansão penal que acompanha a aceleração de uma sociedade global dominada pelo medo. Sem mencionar que o vocábulo ‘terrorismo’ pode ser oportunamente utilizado para fins politicos[7].

Vamos explicar isso, pois nos inquieta muito o olhar sobre o raciocínio estabelecido como resposta ao atentado. O julgamento deste caso da Charlie Hebdo resultou na punição de pessoas aparentemente próximas ao ato principal de terror(ismo), desconsiderando-se as questões relacionadas diretamente à execução do crime. Além disso, descartaram-se o devido olhar sobre o potencial lesivo das condutas periféricas e também o  pensamento geral sobre a tragédia enquanto um real e complexo problema político. Este é um ponto de tensão que estamos trazendo à luz do holofote, com o devido cuidado de deixar claro que se trata de uma provocação reflexiva. Por isso, nos colocamos na perigosa tarefa de abrir a fenda do pensamento sobre este tipo de caso criminal, que está alicerçado em uma imensa sensibilidade valorativa. Assim, ainda que a trama se desenrole no palco sob o manto da complexidade, é preciso desde já sinalizar que a presente provocação não está justificando o ataque terrorista, mas procurando dialogar com a leitora e com o leitor o raciocínio penal contraterrorismo que por vezes aparenta ser meramente simbólico.  

Pois bem. A característica histórica do julgamento foi fornecida pelos atores judiciais e deu-se porque os atributos e implicações do processo marcaram o seu tamanho e os efeitos do caso, em si, sobre a população francesa. O Tribunal Especial, responsável por julgar o caso, contou com cinco juízes que analisaram 171 tomos de procedimento contra 14 acusados. Ademais, foram ouvidas 144 testemunhas e houve a convocação- pelos dois promotores de justiça responsáveis pela acusação- de 14 especialistas no tema[8]. Estes dados são muito interessantes para pontuar a dimensão do cenário de julgamento que se desenvolveu. Além disso, a importância conferida ao caso pode ser destacada pelo registro na íntegra da solenidade judicial, através da captação em vídeo para fins de acervo histórico da França e do mundo[9].

Ao relembrar alguns aspectos básicos do caso, precisamos pontuar que os irmãos Said e Chérif Kouachi, autores materiais do atentado, foram mortos pela polícia em uma gráfica no dia 09/01/2015. Entretanto, há 13 homens e 1 mulher que são categorizadas como “segundas facas” e figuraram no banco dos réus por fornecerem apoio logístico aos terroristas jihadistas. A acusação aponta que eles participaram da organização terrorista por meio de diversos graus de cumplicidade, que passam por apoio financeiro e diretamente suporte material, como a venda de armas e outros utensílios. Segundo a acusação, a punição é devida porque são estas pessoas que permitiram a realização material do crime. Portanto, não estariam segundo a acusação, configurando o papel de réus em substituição[10]. Diante disso, os promotores chegaram a afirmar que sem esses réus, os terroristas não seriam nada e por isso seria necessária a punição por atos preparatórios pelo suporte material e pelo apoio na fuga[11].

O interessante para pensar algumas questões simbólicas deste caso está na construção narrativa e na proporcionalidade das condenações. Por isso, vamos expor a reflexão que despertamos a partir da leitura do conteúdo de mídia sobre o case. Um dos réus, chamado Mohamed Belhoucine, foi julgado à revelia e a promotoria antiterrorismo atribuiu-lhe a fuga para a Síria, junto à organização terrorista oriental. Portanto, uma observação importante deve ser feita: o réu não foi escutado e as afirmações de fugas para o Oriente Médio são suspeitas[12]. Por outro lado, Ali Riza Polat, melhor amigo de um dos terroristas executores, foi considerado a obra prima da preparação delituosa e sofreu a sanção de 30 anos de privação de liberdade. Entretanto, o réu nega perante o tribunal qualquer conhecimento dos planos do atentado pelo seu amigo e disse que seu único crime praticado até então foi o tráfico de drogas. Nas palavras do réu, ele diz: “Não fiz todas as coisas que dizem que eu fiz” Sobre este ponto, a defesa de Ali Polat sustenta que as provas são insuficientes, que não são convincentes e que há uma intenção do Estado em transformar os acusados em exemplo para atenuar a ausência dos autores materiais dos ataques[13]. A afirmação dos advogados, desde uma perspectiva narrativa, nos parece fazer sentido.

Esse estilo de julgamento desperta a nossa  atenção porque há uma espetacularização nas condenações que impulsionam um raciocínio contraterrorismo, responsável por perseguir inimigos a todo e qualquer custo. Até mesmo de modo ‘terceirizado’ ao ato nuclear. Parece uma sustentação leviana da nossa parte, no entanto, a discursividade de inimizade deve ser exposta uma vez que é observável a construção narrativa do horror dos acontecimentos para fins de despejo da punição sob os sujeitos periféricos ao atentado. Ademais, segundo os relatos de mídia, há uma incerteza na acusação, pois está baseada na premissa de que o amigo sabia da intenção terrorista e nada fez para evitar. Com isso, pune-se o sujeito a 30 anos de cárcere em razão da proximidade com o executor terrorista e por uma suspeita de conhecimento dos fatos pelo réu. Ora, caro leitor e leitora, evidentemente não acessamos os autos do processo, mas nós compreendemos o quanto é complexa as circunstâncias que se desenvolvem as vidas e o quanto é difícil reconstruir um fato, uma vez que na via processual isso sempre se dá de modo artificial[14]. Ainda mais um caso tão complexo como este.

A atribuição de sentidos de culpabilidade, a partir de uma realidade de risco terrorista, que poderia ser evitável, parece-nos temeroso à incidência penal. Entretanto, o que observamos é que as tendências antiterrorismo pós-11/09 produzem exatamente este efeito. Expandem o âmbito de punição pela ânsia narcísica de conter o fenômeno de ordem sócio-política ou procuram vingar aos olhos do mundo uma tragédia através da perseguição periférica ao ato nuclear. Com isso, queremos deixar às leitoras e leitores a reflexão acerca de que não é possível abandonar a consideração de que o terrorismo é um problema real, mas que ao colocar o Direito Penal como uma retribuição à dor social, que o próprio Estado fomenta, se desenha uma mera oportunidade política de cunho simbólico e narcísico. Esta é a nossa principal suspeita e crítica. Olhar este julgamento desde o Brasil é importante porque o risco ao terrorismo, fomentado por este estilo de julgamento, é ‘vendido’ ao mundo como solução necessária ao delito transnacional. O terrorismo, assim como outros que integram a categoria de “novas cognições penais globais”[15], permite alterações nas lógicas punitivas e ampliação de medidas próprias ao Estado de exceção.

A França, evidentemente, possui seu problema político com o terrorismo jihadista. Contudo, nós mantemos, de acordo com Eugênio Raul Zaffaroni[16], a posição de que não cabe ao Direito Penal cuidar do terrorismo. Pois, quando se constrói uma discursividade do fenômeno, acaba-se se levantando a construção demoníaca de pessoas transpostas à categoria de inimigo. Consequentemente, assim, se justificam as ampliações punitivas para condutas de risco e não se desloca à atividade de pensar, no cerne do âmbito estatal, as questões sócio-políticas que permitem a eclosão de ataques terroristas. O uso simbólico da punição parece observável no caso Charlie Hebdo e isso nos preocupa porque a tendência de importação de categorias cognitivas do âmbito penal à América Latina não está registrada como uma imaginação à deriva, mas como construções discursivas que se fazem materialmente desta forma. Por fim, é preciso pontuar novamente que este texto não é uma análise do caso, mas que procurou estabelecer a interlocução de uma provocação reflexiva e crítica de atenção às respostas conferidas pelo Direito aos problemas políticos complexos. O reducionismo discursivo baseado no medo desloca às lógicas de exceção a construção de imagética de sujeitos perigosos que atacam os valores ocidentais. Estar atento a tais reações, ainda que desde o Brasil, é algo importante. Eis a nossa contribuição provocativa.         

         

Notas e Referências

[1] RT. Ataque armado contra a sede de uma revista satírica deja al menos 12 muertos en París. Disponível em: https://actualidad.rt.com/actualidad/162560-tiroteo-paris-victimas-francia-sede-revista-satirica. Acesso em: 21 de dez. de 2020.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 13-14.

[3] COSTA, Renata Almeida da. Direito e complexidade: a produção e o controle do terror(ismo). 2010. 269f. Tese (Doutorado em Direito). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2010, p. 149.

[4] CAPELLER, W. M. de Lemos. Tecnificação do campo penal e killer robots: um atentado ao direito internacional humanitário. UNIO EU LAW JOURNAL, v. II, 2017, p. 91-108.

[5] CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’ávila Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[6] Ver: ZIZEK, S. Violência.: seis reflexões laterais. Tradução: Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo editorial, 2014, p. 58-59.

[7] O terrorismo, o medo e a política formam um sistema tríplice. O terrorismo produz medo e onde há medo surge a política do medo. Isso é o que possibilita a ampliação de sistemas de vigilância e punição. Ademais, é assim que se instaura o Estado de exceção e a militarização do espaço urbano. Ver: CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’ávila Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 29-30.

[8] EL PAÍS. ‘Charlie Hebdo’, as chaves de um julgamento histórico. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-02/charlie-hebdo-as-chaves-de-um-julgamento-historico.html. Acesso em: 21 de dez. de 2020.

[9] “Após dois meses de processo, cerca de 150 testemunhas e peritos se sucederam no tribunal. O julgamento está sendo filmado pelos arquivos da Justiça, um fato inédito em termos de terrorismo, e corre sob forte proteção policial”. UOL. Julgamento do Charlie Hebdo é adiado novamente em Paris. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/11/16/julgamento-em-paris-por-atentado-ao-charlie-hebdo-sofre-novo-adiamento.htm. Acesso em:  21 de dez. de 2020.

[10] EL PAÍS. ‘Charlie Hebdo’, as chaves de um julgamento histórico. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-09-02/charlie-hebdo-as-chaves-de-um-julgamento-historico.html. Acesso em: 21 de dez. de 2020.

[11] LE JORNAL DE MONTREAL. France: verdict dans le procès des attentats contre Charlie Hebdo et Hyper Cacher. Disponível em: https://www.journaldemontreal.com/2020/12/15/france-verdict-dans-le-proces-des-attentats-contre-charlie-hebdo-et-hyper-cacher. Acesso em: 21 de dez. de 2020.

[12] Sobre esta questão é interessante a leitura do livro “Jihad John: como nasce um terrorista”. Deixamos a referência:VERKAIK, Robert. Jihadi John: como nasce um terrorista. Tradução: Stephanie Borges. Rio de Janeiro: Hasper Collins, 2017. 

[13] CORREIO DO POVO. Julgamento por atentado contra Charlie Hebdo termina com detenções e prisões perpétuas. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADcia/julgamento-por-atentado-contra-charlie-hebdo-termina-com-deten%C3%A7%C3%B5es-e-pris%C3%A3o-perp%C3%A9tua-1.538809. Acesso em 21 de dez. de 2020.

[14] BARATTA, Alessandro. La vida y el laboratório del derecho: a propósito de la imputación de responsabilidad en el proceso penal. Doxa (05), Alicante, 1998, p. 275-295.

[15] CAPELLER, W. M. de Lemos. A emergência do campo penal global: desconstrução do direito penal moderno. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: v. 12, n.2. 2020, p. 180-196.

[16] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

 

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