Uma reconstrução constitucional - democrática das paternidades

07/08/2016

Por Stanley Souza Marques - 07/08/2016

Neste texto [1], interessa-nos, num primeiro momento, sondar, ainda que frágil e fragmentariamente, as raízes históricas de dois mitos poderosos relativamente recentes, o primeiro deles, a maternidade devotada e o segundo, a paternidade capturada pelo encargo do provimento financeiro, tradução mais apurada do homem responsável nos estreitos limites de versões hegemônicas da masculinidade. Num segundo momento, pretende-se capturar que imagens da paternidade são projetadas por proposições legislativas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que ampliam a licença-paternidade. Por fim, reconhecidos, a um só tempo, os potenciais emancipatórios e os limites inerentes à identidade do sujeito constitucional, aposta-se numa política de alianças entre homens e mulheres orientados pela ampliação da licença-paternidade enquanto uma estratégia de reconstrução constitucional e democrática da ordem de gênero.

O pacto firmado, não sem controvérsias, no desdobrar dos séculos XIX e XX entre agentes médicos e agentes estatais parece dar pistas consistentes de movimentos reconstrutivos das concepções e experiências da maternidade, da paternidade e da infância. Médicos-higienistas, administradores, reformadores sociais, entre outros, surgem comprometidos com a fabricação de duas figuras correlatas, a “do reizinho da família” e a da “rainha do lar”, parte integrante de um projeto mais ambicioso e mais amplo de instauração da ordem burguesa, de modernização e higienização do país [2].

Lenta e cuidadosamente sacralizada a díade mãe-filho/a, se fez crer que a ela, mãe, caberiam, por extensão, os cuidados materiais diretos com a prole, carente de atenção e desvelo, não de qualquer um, mas de sua mãe biológica. Resumidamente, movimentos sócio-históricos que, não sem tensão e resistência, ativaram uma associação estreita entre feminilidade, maternidade, devotamento, cuidado e domesticidade.

Associação que se arrasta na modernidade e explica em parte o fato de que, embora haja aqui e ali maior envolvimento de homens pais no cuidado diário dos/as filhos/as, para além do sustento material da família, em lugar algum eles se dedicam à prole, sobretudo aos afazeres domésticos, tanto quanto as mães[3].

Na tentativa de incrementar esse diagnóstico, a gramática das masculinidades, internamente hierárquica, tensa, contraditória, fonte de prazeres, de mal-estar e de “dividendos patriarcais”, parece fornecer outras pistas, igualmente consistentes. Com a reconstrução de Raewyn Connell e James W. Messerschmidt do conceito de “masculinidades hegemônicas”[4] se reconhece a força de padrões de gênero na concretude cotidiana de homens e mulheres. Mas, diferentemente do “discurso vitimário”, vai além disso ao enfatizar a possibilidade de interrupção senão desconstrução de mandatos de gênero.

Se, por um lado, versões hegemônicas da masculinidade ainda pesam sobre a construção de práticas paternas mais democráticas, por outro lado, um certo nível de ambiguidade, desajuste, tensão e disputa, imanente às dinâmicas de gênero, possibilita a emergência de outras paternidades. Daí a mesclagem de práticas paternas cotidianas ora mais convencionais, ora mais subversivas.

Recuperada a historicidade da maternidade, focalizadas as masculinidades e as paternidades como práticas de gênero contraditórias, produtos da história e produtoras de história, e tomadas, ambas, na sua historicidade, como herança sociocultural de uma comunidade constitucional imaginada, um passo a mais pode ser dado se as arrastarmos para o terreno da identidade do sujeito constitucional, melhor capturada, seguindo Michel Rosenfeld, [5] pela imagem de uma coletânea frágil e fugidia de interpretações constitucionais reconstruídas por aqueles que assumiram, assumem e assumirão a posição de sujeito do discurso constitucional.

As tentativas de regulamentação do direito fundamental à licença-paternidade dão conta, em algum nível, de uma identidade constitucional evasiva, aberta, fluida, tensa e dinâmica. É dizer, a constitucionalização da licença-paternidade implica um corte na paternidade tradicional. Corte que se desdobra num vazio seguido de um retorno seletivo, porque agora sujeito à ordem constitucional e ao constitucionalismo, àquela versão da paternidade capturada pelo provimento material, num primeiro momento recalcada. Reinventadas as paternidades já no curso do processo constituinte de 1987-1988, são elas lançadas entre os desafios com os quais o sujeito e a identidade constitucionais terão de enfrentar, embora jamais definitivamente. Daí porque focalizar as proposições legislativas que ampliam a licença-paternidade e o debate por elas suscitado. Com isso é possível, entre outros aspectos, captar que paternidades são estrategicamente promovidas, admitidas e eclipsadas.

Observa-se que, mesmo para as posturas favoráveis à ampliação da licença-paternidade, construídas, sobretudo, pela via metafórica, em níveis relativamente altos de abstração, a paternidade surge relegada à sombra do protagonismo materno. Prevalece uma identificação mais ou menos explícita da paternidade com um arranjo familiar específico, o modelo familiar nuclear heterossexual. Como se a igualdade de gênero se contentasse com a ajuda ou o apoio paterno. Como se as paternidades, ainda que mais elásticas, se circunscrevessem aos pais heterossexuais. Movimentos que limitam os potenciais emancipatórios das paternidades ao também produzir hierarquias de gênero.

Por fim, reconhecidos não só os potenciais emancipatórios, mas também os limites da identidade do sujeito constitucional, aposta-se, numa política de alianças orientada pela ampliação do direito fundamental à licença-paternidade. Aposta-se na promoção do engajamento de homens e mulheres, tomados como categorias abertas, fluidas, polissêmicas e surpreendentemente tensas, com atuação multifacetada em diferentes arenas. E isso porque, enquanto estratégia de recomposição dos elementos de gênero de um projeto de justiça social mais amplo nas relações de gênero, não reduzido e não redutível ao estatal, pode favorecer outras paternidades, outras maternidades, enfim, democraticamente reconciliadas.


Notas e Referências:

[1] O texto é uma adaptação da apresentação inicial da defesa da dissertação de mestrado intitulada “A identidade do sujeito constitucional e o direito fundamental à licença-paternidade: da paternidade tradicional às paternidades constitucionais”, ocorrida no último dia 29, na Faculdade de Direito da UFMG. Compuseram a banca examinadora, além do orientador, Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, a Professora Doutora Maria Fernanda Salcedo Repolês e o Professor Doutor Marco Aurélio Maximo Prado, todos da UFMG.

[2] MARQUES, Stanley Souza. A Identidade do Sujeito Constitucional e o Direito Fundamental à Licença-paternidade: da paternidade tradicional às paternidades constitucionais, 2016. Dissertação de Mestrado em Direito, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004; RAGO. Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista. Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

[3] BARKER, Gary; AGUAYO, Francisco (Coord.) Masculinidades y políticas de equidad de género: reflexiones a partir de la encuesta IMAGES: una revisión de políticas en Brasil, Chile y México. Rio de Janeiro: Promundo, 2011. Disponível em: <http://www.eme.cl/masculinidades-y-politicas-de-equidad-de-genero-reflexiones-a-partir-de-la-encuesta-images-y-una-revision-de-politicas-en-brasil-chile-y-mexico/>. Acesso em: 04 de julho de 2016; LEVTOV R et al. A situação da paternidade no mundo: resumo e recomendações. Washington, DC: Promundo, Rutgers, Save the Children, Sonke Gender Justice, and the MenEngage Alliance, 2015b. Disponível em: <http://sowf.men-care.org/wp-content/uploads/sites/4/2015/07/State-of-the-Worlds-Fathers_Executive-Summary_Portuguese_web-1.pdf>. Acesso em: 04 de julho de 2016; ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi. Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

[4] CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W.. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev. Estudos Feministas,  Florianópolis,  v. 21, n. 1,  Abril.  2013.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2013000100014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 de agosto de 2014; CONNELL, R. W. Masculinities. Berkeley: University of California Press, 2005.

[5] ROSENFELD, Michel. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London and New York: Routledge, 2010.


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Stanley Souza Marques é Bacharel em Direito pela UFU e Mestre em Direito pela UFMG. Professor Voluntário de Direito Constitucional I e Teoria do Estado II na Faculdade de Direito da UFMG.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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