Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco
Requer-se o esclarecimento de que a perspectiva aqui elucidada se baseia essencialmente nos estudos apontados por Michel Foucault, em sua obra Microfísica do Poder, escrita no ano de 1979, em que o referido autor estuda “O Nascimento da Medicina Social” e “O Nascimento do Hospital”.
É necessário compreender que a construção do que veio a ser o chamado direito a saúde, conceituado como se vislumbra hoje, começou a ser delineado no Renascimento, em meio ao desenvolvimento do Estado Moderno (DALLARI, 2002) e foi sendo traçado no decorrer dos tempos. O cenário de destaque para a elucidação que é feita neste estudo, se atentam aos fatos ocorridos na França, Inglaterra e Alemanha, pois as medidas tomadas nesses países influenciaram no conhecimento e na estrutura que foi se desenvolvendo no Brasil, essencialmente conforme as explicações realizadas a frente sobre a chegada da Família Real no Brasil por volta de 1808 e as mudanças que foram ocorrendo no Rio de Janeiro e no Brasil.
A Alemanha veio a ter a primeira manifestação da ciência do Estado. Tal fato, na opinião de alguns, é sem grandes justificativas. Contudo, existem apontamentos de que a “razão desse desenvolvimento da ciência do Estado é o não desenvolvimento econômico ou a estagnação do desenvolvimento econômico da Alemanha, no século XVII” (FOUCAULT, 2011, p. 81).
Enquanto na Áustria, França e Inglaterra eram feitos cálculos para saber a quantidade de pessoas ativas que havia em sua população, sem nenhuma preocupação além dos números das taxas de natalidade e mortalidade, na Alemanha ocorre “uma prática médica efetivamente centrada na melhoria do nível de saúde da população” (FOUCAULT, 2011, p. 83).
O que veio a vigorar entre os alemães, ao final do século XVIII e início do século XIX, foi uma observação de morbidade sobre epidemias e endemias, atenção especial com as escolas e o ensino da medicina, gerando uma normalização tanto da prática quanto dos conhecimentos. Em decorrência disto foi criado um princípio do que viria a ser uma organização administrativa para atuarem sobre os médicos, e por fim, como elucida Foucault:
[...] um projeto adotado pela Prússia, no começo do século XIX, implica uma pirâmide de médicos, desde médicos de distrito que têm a responsabilidade de uma população entre seis e dez mil habitantes até oficiais médicos, responsáveis por uma região muito maior e uma população entre trinta e cinco e cinquenta mil habitantes. Aparece, nesse momento o médico como administrador da saúde (FOUCAULT, 2011, p. 84).
Na França, por sua vez, o surgimento da medicina social, como é chamada por Michel Foucault (2011), se dá juntamente com o processo de urbanização na segunda metade do século XVIII. Valores e razões tanto econômicos quanto políticos estão em foco nas discussões, desse modo é deixada de lado a situação social vivida diariamente, que era de cidades com grande população, construção desenfreada de casas e fábricas, epidemias constantes, situação delicada de esgoto e dos cemitérios.
Na Idade Média, quando pessoas eram cometidas por peste ou lepra eram excluídas do convívio social, consistindo na chamada medicina de exclusão. O que passou a acontecer era um pouco diferente. Quando certa cidade sofria com determinada epidemia ou endemia, aplicava-se o chamado plano de urgência, que fazia com que as pessoas ficassem reclusas em suas casas e uma determinada autoridade com seus subordinados vigiavam as ruas e a casas, ocorrendo ai, o que se assemelhava a reclusão em quarentena e não mais a exclusão da área da cidade.
Já na segunda metade do século XVIII, surge uma evolução do modelo de quarentena, consistindo na chamada “medicina urbana”, em que houve a preocupação com os cemitérios, fazendo com que fosse adotado o uso de caixões individuais, sepulturas familiares e não mais coletivas como outrora. Além disso, os cemitérios deixaram de ser no centro das cidades e foram construídos na periferia (FOUCAULT, 2011). Outro foco do modelo era preocupação com a circulação da água e do ar, fazendo com que avenidas surgissem nas cidades. E por último, a atenção com o modo como estariam distribuídos no cenário urbano determinados ambientes, pois surgiu a preocupação com a extração de água e o destino dos esgotos, por exemplo.
Por todo o exposto, percebe-se que a evolução da medicina e dos preceitos ligados à saúde se deram primeiro na Alemanha vinculados ao Estado, posteriormente na França com a urbanização e mudanças no contexto das cidades e por fim, na Inglaterra, onde a atenção recai aos pobres. Porém, esse cuidado se deu somente no segundo terço do século XIX, quando os pobres formando grandes massas e se tornaram possíveis questionadores dos fatos, devendo assim ser dada atenção para evitar que revoltas acontecessem.
A atenção sobre a participação dos pobres em revoltas, segundo a visão dominante, se dá pelo fato de se tratar de uma classe economicamente desfavorecida e por prestarem serviços únicos como de correspondência e entrega por serem bons conhecedores das ruas, não podiam simplesmente ser deixados de lado. Somente com a cólera em 1932 é que percebeu-se uma complicada divisão entre pobres e ricos no mesmo espaço urbano.
Segundo Foucault (2011), somente com a Lei dos Pobres é que a medicina inglesa passou a ser social, tendo em vista que:
[...] um cordão sanitário autoritário é estendido no interior das cidades entre ricos e pobres: os pobres encontrando a possibilidade de se tratarem gratuitamente ou sem grande despesa e os ricos garantindo não serem vítimas de fenômenos epidêmicos originários da classe pobre (p. 95).
John Simon foi um dos fundadores da medicina social inglesa, e por volta de 1770, fez complementações na Lei dos Pobres com a organização do chamado health service[1], um serviço que realizava apenas o controle médico da população.
Por fim, Foucault (2011) elucida que o sistema com mais perspectivas foi o inglês, por levar assistência médica às pessoas de baixa renda. Um sistema administrativo formado e que se encarregava de verificar problemas vinculados à vacinação e crises epidêmicas, assim como disponibilizou uma medicina de ordem privada que atendia as pessoas as quais podiam pagar pelo serviço.
Não pode ser deixada de lado a consideração feita por Sueli Gandolfi Dallari (2002) de que “é apenas a partir da segunda metade do século XIX que a higiene se torna um saber social, que envolve toda a sociedade e faz da saúde pública uma prioridade política”. Desse modo, começam a surgir associações de caráter social e político e também comitês de vacinação.
No século XX, a proteção sanitária se tornou uma política de ordem governamental baseada em prevenção, agindo sobre o ambiente; vacinação, buscando controle da saúde e, por último, a pretensão de limitar incapacidades crônicas ou reincidentes. A concepção de Estado de Bem-Estar Social, juntamente com as premissas econômicas vinculadas a saúde e trabalho fizeram com que na segunda metade do século XX o Estado tomasse providências para implementar a prevenção sanitária. Em suma, o que ocorre é que o foco não recai mais no zelo sobre os pacientes e sim no que gera estes problemas (DALLARI, 2002).
No que tange ao direito à saúde, alguns fatos no âmbito internacional ocorridos nos séculos XIX e XX, considerando até o presente momento, propiciaram mudanças e alterações no modo com a saúde passou a ser vislumbrada no Brasil e no mundo.
Notas e Referências
DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito sanitário. In: Revista Direito e Democracia, Canoas, v. Vol 3, nº. 1, p. 07-41, 2002.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011.
[1] Trata-se dos sistemas de health service, de health officers que começaram na Inglaterra em 1875 e eram, mais ou menos, mil no final do século XIX. Tinham por função: 1º) Controle de vacinação, obrigando os diferentes elementos da população a se vacinarem. 2º) Organização do registro das epidemias e doenças capazes de se tornarem epidêmicas, obrigando as pessoas à declaração de doenças perigosas. 3º) localização de lugares insalubres e eventual destruição desses focos de insalubridade. O health service é o segundo elemento que prolonga a Lei dos Pobres. Enquanto a Lei dos Pobres comportava um serviço médico destinado ao pobre enquanto tal, o health service tem como características não só atingir igualmente toda a população, como também, ser constituído por médicos que dispensam cuidados médicos que não são individuais, mas têm por objeto a população em geral, as medidas preventivas a serem tomadas e, como na medicina urbana francesa, as coisas, os locais, o espaço social, etc. (FOUCAULT, 2011, p. 96)
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