Uma breve reflexão sobre a sedução publicitária, o direcionamento de seus encantos ao público infantil e o Direito brasileiro – Por Yasmine Pitol

03/03/2017

Em seu livro “Vida para o consumo” (2008), o saudoso Zygmunt Bauman analisou aquela que talvez seja chave para que a sociedade de consumo se mantenha em curso: o fortalecimento da convicção de que consumo é felicidade e de que a felicidade inexiste fora do consumo.

Neste cenário de domínio do consumismo, deparamo-nos, todos os dias, com a publicidade comercial. Poderosa ferramenta disponibilizada aos fornecedores de produtos e serviços, a publicidade utiliza toda a sua criatividade a serviço dos interesses destes, servindo para perpetuar e expandir indefinidamente a lógica consumista. É, talvez, a grande aliada e principal responsável para a manutenção da sociedade de consumo.

Dia após dia, o consumidor é atingido pela publicidade que, onipresente, expande-se, reinventa-se, movendo-se por meio de um discurso persuasivo, no mais das vezes emotivo e sedutor[1]. Mediante esse discurso, a publicidade busca, basicamente, atingir um objetivo:  convencer o consumidor, seduzi-lo de forma fulminante, de modo que emerja, nesta sociedade, como necessidade[2] básica - e mais ferrenha - a própria necessidade de consumir.

Consumir é felicidade: este é o imperativo a ser disseminado, a ser aceito, conforme detectou Bauman. Reside aí, provavelmente, um dos principais papeis (senão o principal papel) da publicidade: disseminar, como verdadeiro apóstolo do consumismo, esta máxima. Cada vez mais atenta às distinções e peculiaridades encontradas pontualmente no interior da massa consumidora – homogênea apenas à primeira vista[3] - a atividade publicitária cria, assim, imaginários lúdicos a partir dos quais se propugna a ideia de que para ser feliz é preciso consumir.

Consome-se, assim, a própria felicidade. “Vem ser feliz”, diz o outdoor, “abra a felicidade”, diz o anúncio! E, faça um favor a si mesmo – é o que também propugnam -, não demore muito: consuma agora! Encante-se, deslumbre-se e adquira os produtos antes de se convencer de que precisa deles (ou, o que seria mais comum, antes de perceber que não precisa deles).

Nesse contexto - no qual se vislumbra a importância do imaginário lúdico para que a mensagem publicitária tenha sucesso -, parece evidente: quem se importa com as funcionalidades objetivas daquilo que é anunciado quando se pode comercializar emoções? Por que refletir demoradamente, se a felicidade está logo ali (basta comprá-la)?

Maleável, criativa, permanentemente atenta e insaciavelmente sedenta por atingir o público para o qual direciona os seus encantos, a publicidade delira[4] particularmente quando se depara com o público infantil. Pudera: eis um alvo fácil, profícuo para a atividade atingir com seu poder de sedução.

Se o lúdico e a sedução mostram-se elementos altamente eficientes quando utilizados pela mensagem publicitária destinada aos adultos, supõe-se que esse “poder” seja potencializado quando direcionado ao público infantil. Um público o qual, segundo o Conselho Federal de Psicologia “não tem a mesma compreensão do mundo que o adulto” (2008, p.18) e sobre o qual “a publicidade tem maior possibilidade de induzir ao erro e à ilusão” (2008, p.20).

É razoável presumir, portanto, que resida justamente na fragilidade infantil o grande trunfo da mensagem publicitária direcionada às crianças, na medida em que, por serem frágeis, são mais suscetíveis de encantamento. Dito de outra forma, é mais fácil convencê-las das maravilhas prometidas pela mensagem publicitária, sendo, portanto, (bem) menos trabalhosa a tentativa de seduzi-las.

Contudo, essa mesma fragilidade fundamenta a proteção integral a elas conferida pela Constituição Federal (art.227) e, a partir disso, tem-se, evidentemente, um conflito, já que o motivo pelo qual as crianças formam um público tão atraente para a publicidade é, justamente, o motivo pelo qual devem ser especialmente protegidas.

Floresce, neste cenário, intenso e extenso debate (a respeito do qual não nos aprofundaremos nesse breve texto) acerca da necessidade de que se proíba totalmente a publicidade infantil. Debate que sobrevive, ainda que o Direito brasileiro tenha se interessado pelo tema; afinal, o Código de Defesa do Consumidor, no art. 37, §2º, estabelece como abusiva a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança, além de, no art. 39, inciso IV, definir como prática abusiva “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”. Ainda, mais recentemente, foi publicada, em 2014, a Resolução n.163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que se dispôs a estabelecer critérios mais concretos para aferição destas abusividades, como, por exemplo, a presença de bonecos e personagens infantis nas mais diversas formas de comunicação comercial (o art. 2º, inciso V e VII).

Entretanto, mostra-se no mínimo questionável a afirmação de que a proteção normativa – aparentemente reforçada e revigorada pela Resolução n. 163/2014 do CONANDA - seria suficiente, já que basta que se direcione uma breve mirada às prateleiras dos supermercados, às lojas de shoppings ou às lancherias espalhadas pelo país para que se chegue à constatação de que é recorrente (para não dizer permanente) a presença dos elementos infantis expressamente vedados pela Resolução n.163. Elementos que - desnecessário dizer - atraem as crianças, atuando como um constante convite ao consumo direcionado àquelas que com eles se deparam. Assim, em meio à extensa e complexa discussão acerca da publicidade infantil, mostra-se importante fazer aquilo que seria o básico: aferir se, no dia a dia, os comandos normativos existentes têm sido minimamente efetivos, sem descurar da maior suscetibilidade das crianças aos encantos emanados pela sedução publicitária.


Notas e Referências:

[1] Conforme Lipovetsky (2009).

[2] Ou pseudonecessidade, conforme Guy Debord (1997).

[3] A hipersegmentação da publicidade foi bem explicada por Lipovetsky (2007).

[4] A expressão foi usada por Lipovetsly (2009).

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Contribuição da Psicologia para o fim da publicidade dirigida à criança. Brasília, out. 2008. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/10/cartilha_publicidade_infantil.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2016.

LIPOVETISKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LIPOVETSKY, Gilles. O Império de Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.


 

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