Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3
Da metáfora da única resposta correta à resposta constitucionalmente adequada.
Já foi referido nas colunas anteriores, que a principal bandeira da Crítica Hermenêutica do Direito, é a luta contra a discricionariedade judicial, que dentro das premissas desta teoria, consiste naquele espaço a partir do qual o julgador estaria legitimado a criar a solução que entender necessária para o caso, abrindo, assim, possibilidade de múltiplas decisões racionalmente justificáveis, em perfeita sintonia com o argumento positivista da moldura da norma. Para a Crítica Hermenêutica do Direito, a discricionariedade é o que configura o positivismo jurídico, nas suas mais variadas formas, admiti-la é abrir espaço para a arbitrariedade e decisionismos.
Nessa batalha contra a discricionariedade[1], a Crítica Hermenêutica do Direito faz uma releitura da metáfora da única resposta correta de Dworkin, que se lastreia basicamente no compromisso moral do julgador com a sociedade em não poupar esforços para proferir a melhor decisão para cada caso. Esse compromisso assumido pelo julgador o impede de tratar cada caso como apenas mais um dentre muitos, pois não se mostraria razoável ao destinatário da decisão, que aquela proferida em seu caso em especial, pudesse ser considerada como uma das decisões possíveis, admitindo-se a possibilidade de outra decisão completamente diferente, desde que se modificasse o julgador.
Impõe-se, pois, um esforço hermenêutico do julgador de buscar, na história institucional, a reconstrução do que a comunidade política entende correto para aquele caso em especial, tratando o direito como tradição e vinculando o decisor à intersubjetividade ampla, num diálogo com as partes e com a sociedade, possibilitando que o argumento construído por todos seja refutado ou acatado no futuro, em julgamentos de outros casos análogos. Nisso consistiria o dever de consideração e respeito, inerente ao conceito de Dignidade Humana da teoria integrativa, a desaguar na integridade e coerência como limites do sujeito solipsista[2].
Na busca dessa resposta correta, Dworkin se vale de mais uma metáfora, a do romance em cadeia (chain novel), tentando demonstrar que a construção do direito seria similar à construção de um romance, mas que não seria escrito por uma única pessoa, ao contrário, seria um complexo empreendimento, uma narrativa desenvolvida por várias pessoas, projetando-se para o futuro dos personagens, mas sem se descuidar da coerência com o passado. Nessa empreitada, não deve o julgador se ater apenas a substância das decisões proferidas pelas autoridades no passado, tendo primordial importância o modo com que foram prolatadas, as circunstâncias que levaram àquela decisão, como também por quais autoridades elas foram tomadas.[3]
Nessa linha, o juiz, tal qual o escritor da metáfora da romance em cadeia, deve realizar uma avaliação, o mais geral possível, do que já foi dito pelos juízes anteriores, para aí sim poder proferir a sua decisão, que obrigatoriamente deve levar em conta o que se encontra assentado jurisprudencialmente, mas não apenas. É que, como já dito linhas atrás, é perfeitamente possível para o juiz a mudança do rumo da história, desde que, na análise do caso presente, entenda o ônus argumentativo redobrado para a quebra da tradição, pois a coerência deve ser lida juntamente com a integridade, não sendo possível se ater ao dever de mesma consideração e respeito se se perpetuar uma decisão que, diante do novo caso, se mostre equivocada.
Mais! Diante da indeterminação das regras jurídicas, enquanto a teoria integrativa impulsiona que o intérprete busque a solução em direitos ou argumentos principiológicos que se encontram fora da ordem jurídica positiva, que não podem ser identificados pela regra de reconhecimento, a crítica hermenêutica do direito impõe que essa solução seja encontrada dentro da própria Constituição, notadamente em países de modernidade tardia como o Brasil, no qual a Constituição é compromissória e fortemente social, na busca da satisfação das promessas da modernidade ainda não alcançadas.
Não se pode perder de vista, nesse contexto, que há sim diferenças entre os sistemas jurídicos do common law e do civil law, sendo o Brasil filiado a este último, não havendo como, por aqui, se afastar da ideia de que a Constituição já contém em seu texto um conjunto principiológico, a denotar a cooriginalidade entre direito e moral, não havendo qualquer necessidade de se buscar fora do sistema aquilo que já esta contemplado em uma Constituição compromissória e social. A releitura da única resposta correta perpassa essa compreensão, de que as promessas incumpridas da modernidade foram inseridas no próprio texto Constitucional, não havendo qualquer necessidade de se buscar soluções outras fora da ordem jurídica positiva (ordem constitucional).[4]
Compreendidas tais especificidades da hermenêutica jurídica, que deve ser entendida paradigmaticamente – portanto, sem ignorar o significado da Constituição -, a resposta correta será a constitucionalmente adequada; é, pois, o ponto de estofo em que exsurge o sentido do caso concreto (da coisa mesma). Na coisa mesma (Sacheselbst), enfim, nessa síntese hermenêutica, em que o “é” do sentido acontece, está essa resposta hermeneuticamente correta – porque mais adequada à Constituição. A compreensão correta será alcançada a partir da coisa mesma. Essa coisa mesma será manifestada por esse “é”. Compreender significa, primeiro, entender-se na coisa.[5]
E continua:
Na medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele caso. A única resposta acarretaria uma totalidade, em que aquilo que sempre fica de fora de nossa compreensão seria eliminado. O que sobra, o não dito, o “ainda não compreendido”, é o que pode gerar, na próxima resposta a um caso idêntico, uma resposta diferente da anterior. Portanto, não será a única resposta; será sim, “a” resposta.[6]
Na busca da superação da discricionariedade, a pré-compreensão e a diferença ontológica não podem ser lidas de maneira apartada. Esta está alicerçada na diferença entre ser e ente; aquela na impossibilidade de graus zeros de sentido, na superação da “consciência de si”, do assujeitamento do objeto, ou seja, na morte do sujeito solipsista, que é condição de possibilidade da correção. Não há uma cindibilidade entre texto e norma ou entre fundamentação e aplicação, daí a importância do caso concreto, da coisa mesma, para a resposta hermeneuticamente correta, ou seja, a resposta adequada à constituição.
Percebe-se, pois, que a Crítica Hermenêutica do Direito não defende a existência de uma única resposta correta, o que para ela seria impossível hermeneuticamente[7],mas sim da resposta adequada à Constituição, levando em consideração o caso concreto (a coisa mesma), a reconstrução da história institucional (tradição da comunidade política), e a coerência e integridade como impeditivos da discricionariedade judicial, tornando, assim, desnecessária qualquer atitude solipsista, que seria, ao fim e ao cabo, ilegítima diante do déficit democrático pela ausência da necessária intersubjetividade.
O precedente judicial, na linha do que aqui vem se defendendo, é um texto, e como tal deve ser interpretado, mas essa interpretação não pode partir de um grau zero de sentido. Há sempre um caminho vinculativo a ser seguido pelo intérprete, um dever de mesma consideração e respeito, um dever de coerência com as decisões passadas, com a tradição da comunidade política, um compromisso de esforço hermenêutico para se revisitar, de forma abrangente, a história institucional daquele direito, na busca dos princípios jurídicos a serem aplicados no caso sob julgamento. O julgador não deve se contentar com uma entre muitas respostas racionalmente possíveis, tem ele o dever de dar a melhor resposta ao caso concreto (daí a única resposta correta ser uma metáfora). No Brasil, como parece intuitivo, a melhor resposta é a adequada à Constituição.
Do mesmo modo como não podemos dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa no cotidiano – porque isso nos afastaria da “vinculação linguística” que o modo prático de ser no mundo nos traz – também na aplicação do direito não podemos decidir sobre o modo como “nos aprovaremos”. No direito, igualmente não podemos “trocar o nome das coisas”. Aliás, direito é nomos. Lei é Gesetz (deixar assentado). Interpretação é aplicação; é assentar sentidos. Os sentidos não são aleatórios. Não há grau zero. Há uma cadeia interpretativa que nos vincula. Tanto no cotidiano como no direito. Assim, de cada decisão extrai-se um princípio (subjacente a cada decisão) e que é aplicável aos casos seguintes. Ele os norteará. Podemos chamar esse norteamento de “vinculação interpretativa”, que se constrói a partir da coerência e integridade do direito. Desse modo, se é súmula ou lei, tanto faz. Trata-se de um texto que somente existe interpretativamente. Não há textos sem normas, e a norma exsurge da facticidade. Isso se chama de applicatio. Em cada interpretação, sendo súmula ou lei (ou precedente, para contentar os aficionados pela tese da commonlização), deve haver sempre a reconstrução do caso, o que implica reconstruir interpretativamente a história institucional do instituto ou do dispositivo sob comento.[8]
Com efeito, quando o art. 926, do NCPC exige que a jurisprudência seja mantida estável, íntegra e coerente, demonstra a preocupação com a previsibilidade das decisões; mais que isso, demonstra a necessidade da igualdade perante a jurisdição. Mas não se diga que o trabalho do intérprete se encerra com a edição da súmula ou de precedente – tentativa de objetivação -, pois a reconstrução da história institucional do instituto ou do dispositivo é medida que se impõe, analisando-se o precedente pelos fundamentos de sua ratio decidendi, o inserindo numa cadeia argumentativa que leva em consideração o passado, mas que não se fecha para o futuro, sempre no intuito de demonstrar que a decisão daquele caso em especial decorreu de um esforço hermenêutico hercúleo e é a resposta constitucionalmente adequada pra resolver a questão.
É chegada a hora do novo, da diferença, de uma nova visão de mundo, de fusão de horizontes de sentido. Integridade e coerência não podem ser vistas apenas como estabilidade, são mais, muito mais. São pressupostos interpretativos contrafáticos, visam à correção dos equívocos que permeiam o imaginário dos operadores do direito, mas, principalmente, devem ser vistos como limitadores de decisionismos e de arbitrariedades, ao passo em que os juízes serão constrangidos a fundamentar de forma escorreita as suas decisões, a ter o direito como tradição e, principalmente, não mais poderão se limitar a entregar qualquer reposta racionalmente possível, porque a democracia exige que a reposta seja adequada à constituição.
Notas e Referências:
[1] Já foi objeto de análise neste trabalho o conceito de discricionariedade da Crítica Hermenêutica do Direito, mas para o propósito aqui perseguido, é necessário admiti-lo nas premissas mesmas da teoria escolhida.
[2] DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Luis Carlos Borges (revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios; revisão de tradução Silvana Vieira) – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[4] Cf. STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: constituição hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 357/358.
[5] STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: constituição hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 357.
[6] Idem. Ibidem, p. 362.
[7] Idem. Ibidem, p. 362.
[8] STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O Que É Isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 112/113.
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