Uma análise hermenêutica do precedente no Novo Código de Processo Civil (Parte 2) – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

28/03/2016

Leia também: Parte 1Parte 3, Parte 4

A análise normativa na busca de uma conceituação do precedente judicial

Na coluna anterior foram firmadas as distinções necessárias acerca dos conceitos de precedente judicial, jurisprudência e súmulas. Importa, agora, a análise do texto normativo do NCPC, pois diferentemente dos países do common law, a doutrina do stare decisis, por aqui, vem sendo construída por diversos diplomas legais, emendas constitucionais e, por último, a edição do Novo Código de Processo Civil, que buscou estruturar a cultura dos precedentes, emprestando-lhes força vinculante, sem se afastar do Princípio da Legalidade, não havendo o que se falar em incompatibilidade dos precedentes obrigatórios com o sistema do civil law[1], discussão que fugiria aos limites desta pequena análise.

Com o intuito de facilitar a compreensão do intérprete, o novo código, no seu art. 927, busca indicar quais decisões judiciais seriam por ele tomadas como precedentes judiciais, de força vinculante e aplicação obrigatória pelos órgãos do Poder Judiciário. Transcreve-se aludido dispositivo:

Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

[...]

Percebe-se, da leitura mesma do dispositivo suso, que o NCPC não se limitou a emprestar força vinculante às decisões provenientes das Cortes Supremas, não elegendo estas cortes como as únicas legitimadas a editar os precedentes judiciais obrigatórios. Ao contrário, emprestou obrigatoriedade de aplicação às decisões provenientes do incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, institutos criados para os tribunais inferiores, que não se confundem, ao menos não até agora, com cortes de precedentes vinculativos.

E não se diga, a bem da verdade, que o novo codex confundiu os conceitos de precedente, jurisprudência e súmulas por tê-los tratado num mesmo dispositivo, porque essa confusão, se existente, não decorre do referido texto normativo. Isso se percebe facilmente da leitura dos parágrafos do art. 927, mais precisamente, do seu § 4º, que assim preceitua:

Art. 927. [...]

§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

Num volver de olhos ao dispositivo, percebe-se que o NCPC teve o cuidado de diferenciar, mesmo que sem explicar as razões, súmula, jurisprudência dominante e tese jurídica em julgamento de casos repetitivos (ratio decidendi, ao que parece), ou seja, embora tenha tratado referidos institutos num mesmo dispositivo, sua conceituação não foi pretendida pela lei, deixando esse trabalho para o intérprete e para a ciência do direito, no que parece ter agido bem, pois a lei não deve se preocupar com conceituações.

Não parece que o novo código tenha descuidado da diferença (ontológica) entre precedente, jurisprudência e súmula, apenas lhes emprestou, indistintamente, mesma eficácia vinculante, tampouco parece que o NCPC tenha deixado de lado a necessária preocupação hermenêutica no uso desses institutos jurídicos, exigindo para a aplicação de todos eles a intersubjetividade inerente ao contraditório participativo (NCPC art. 10), bem como ao ônus argumentativo das decisões judiciais (NCPC art.489, § 1º), como mesmo é exigido no § 1º, do art. 927, do Novo Código de Processo Civil.

Sobre esse ônus argumentativo, que em nada contraria os postulados da hermenêutica filosófica, tem-se, ainda, a preocupação do legislador na fuga das objetivações e das subsunções quando da aplicação dos precedentes e das súmulas, tratando-os como textos, carentes de interpretação, daí exigir que se explicitem os seus fundamentos determinantes, bem como a demonstração de que o caso em julgamento se ajusta a tais fundamentos (NCPC art. 489, § 1º, V).

Nesse espectro, a dúvida que ainda grassa em parte da doutrina que comenta o Novo Código de Processo Civil, acerca do alcance do conceito de precedente para o novo diploma, parece estar analisando o problema de forma errônea. A discussão não deveria ser acerca do conceito de precedente, mas da sua eficácia vinculante, ou seja, não se tem dúvida sobre o conceito de precedente para o novo codex, até porque não houve a intenção de conceituá-lo, mas de analisar quais precedentes tem aplicação obrigatória, vinculando a fundamentação e demandando ônus argumentativo redobrado.

Em momento algum parece que o novo diploma processual tenha se preocupado em conceituar o que seria precedente judicial, deixando de fora desse conceito os denominados “precedentes persuasivos”[2], ao contrário. O novo código deixou a cargo da ciência do direito as conceituações, mas atribuiu força vinculante a alguns precedentes emanados de certos tribunais e proferidos em obediência a determinados procedimentos, não negando a existência de outros, que não ostentem força obrigatória, mas apenas persuasiva, como de resto, hodiernamente eles são utilizados no dia a dia da praxe jurídica.

Isso não significa que o novo código não tenha, aqui e ali, confundido os institutos que se buscou apresentar. Em diversos dispositivos há uma manifesta confusão de conceitos, onde todos os institutos (precedentes, súmulas e jurisprudência), são tratados dentro de uma unidade inexistente, levando a crer que seriam idênticos, ou que o novo diploma os tenha tomado como iguais. É o caso do próprio art. 926, do NCPC, que exige que os tribunais mantenham sua jurisprudência estável, íntegra e coerente, sendo certo que a polissemia da palavra “jurisprudência”, nesse caso, engloba a súmula e, principalmente, o precedente judicial, do qual aquela é sempre dependente.

A preocupação do Novo Código de Processo Civil não está no conceito de precedente, mas na necessária interpretação a que ele tem que ser submetido, não se contentando com objetivações, nem mesmo quando em análise as súmulas (vinculantes ou não), tampouco com aplicações sob o método subsuntivo/dedutivo. O novo código trata os precedentes como textos, que demandam interpretação, ainda que aparentemente se esteja diante de um caso fácil, mesmo porque o caso só se mostrará fácil a partir da uma pré-compreensão, de algo que se antecipa, por meio da reconstrução da história institucional e da extração do princípio jurídico a ser aplicado ao caso concreto, ou seja, num ato de responsabilidade política e não de escolha.

Na próxima coluna, o precedente será analisado hermeneuticamente, levando com consideração a integridade e a coerência como pressupostos interpretativos contrafáticos, dentro da premissa da metáfora do Juiz Hércules, na busca da resposta correta em direito: nem a única e nem a melhor, mas a resposta constitucionalmente legítima. Os postulados da crítica hermenêutica do direito serão trazidos ao debate, na busca de se afastar o senso comum do uso das ementas de jurisprudência, e das súmulas, como capas de sentido. Até lá!


Notas e Referências:

[1] Cf. ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro R. de. Precedentes Vinculantes e Irretroatividade do Direito no Sistema Processual Brasileiro: os precedentes dos tribunais superiores e sua eficácia temporal. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 44/59.

[2] Cf. MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010, pp. 111/118.


 

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