Por Márcio Soares Berclaz - 28/03/2016
O sistema de justiça institucionalizado, tal como hoje está hegemonicamente desenhado e concebido, é insuficiente para dar conta tanto do que prometem as Constituições que ousam pretender transformar a realidade social como das conhecidas necessidades do povo. O sistema de justiça é determinado, no mais das vezes, como vassalo e escravo dos interesses do nem sempre encoberto e, aliás, por vezes muito visível, capital. Esse modelo insistentemente vendido como racional e como o fim da história que, no mais das vezes, prejudica 99% para prevalecer os interesses de 1%, revela uma totalidade vigente estruturalmente injusta; esse mesmo modelo que parte de uma concepção de poder absolutamente estatal e que pensa que a democracia se esgota numa representação autista cada vez mais em crise. Talvez por isso, especialmente na comunidade de comunicação real (Apel) do sul periférico do mundo, sobram injustiça em tantas questões (concentração e má distribuição de terra, "guerra às drogas”, insuficientes "justiças de transição”, falta de moradia, falta de saneamento básico, predação ambiental etc). Tem-se, assim, um diagnóstico que, pois não, deve (ria) causar angústia e desconforto antes de ser naturalizado.
Precisa-se, urgentemente, de uma justiça de libertação, para muito além do já posto, com insurgência teórico-prática que, por apostar no bloco social dos oprimidos como novo sujeito histórico[1], mostre-se capaz abalar e perturbar a relação perniciosa do fenômeno jurídico com o capitalismo e o seu principal produto: injustiça. Antes de abstrações, é sobre este objeto real que se deve refletir. Se o paradigma filosófico próprio do ambiente descolonial não é o ser, nem a consciência nem a linguagem, mas a vida concreta[2] como mediação de uma exterioridade[3] sensível dos sujeitos oprimidos, como bem afirma Celso Luiz Ludwig, há de se ter preocupação em fechar espaços, portas e janelas, cada vez mais, para as muitas matrizes que oportunizam injustiças. É preciso uma epistemologia da justiça alternativa compatível com a realidade, com o contexto cultural, econômico e político do Sul geográfico. De onde partir? Esta é a pergunta.
Até hoje a impressão que se tem é que as divisões doutrinárias que teorizaram sobre justiça nada mais são do que variantes capitalistas norte-americanas ou europeias[4] (a divisão liberais e comunitaristas pode ser o exemplo) abrigadas na perspectiva de um juspositivismo ético (a expressão e o entendimento são de Alysson Mascaro do Nascimento) insuficiente para dar conta dos nossos problemas, em especial, acrescenta-se, da América Latina como subcontinente.
Há de se buscar premissas fundantes, próprias e autênticas, para que o sistema de justiça seja pensado de outra forma. É preciso, mais do que uma filosofia do direito crítica, de uma perspectiva do direito que se mostre descolonial e, em certo sentido, transmoderna; urge o desenvolvimento de uma teoria de justiça que, antes de ser arrogante e imperialista, como ensina Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses[5], levando em conta a arqueologia das “sociedades metropolitanas” na dicotomia regulação-emancipação, com os resquícios maiores ou menores de sua combinação de apropriação-violência dos "territórios coloniais”; são dois diferentes “lados da linha”.
Provisoriamente, na busca de um modelo de justiça que represente alguma alternativa ao capitalismo, na busca de uma nova ecologia de saberes que, como proposto por Boaventura de Sousa Santos[6], seja composta de perguntas constantes e respostas incompletas, arrisca-se três hipóteses de trabalho: pluralismo jurídico, mais democracia no sistema de justiça e marxismo jurídico.
A primeira delas aposta no pluralismo jurídico e parte da compreensão de que a justiça também precisa ser feita a partir de experiências populares estranhas aos quadros institucionais do Estado, ainda que sob determinadas premissas e contenções. Justiça não é apenas o que o Estado diz, mas também as vozes circulantes e dissonantes dentro de uma comunidade e de seus poderosos saberes locais, seja uma realidade na periferia (como o “Direito da Pasárgada” bem descrito pelo estudo de Boaventura de Sousa Santos), seja o reconhecimento de povos indígenas originários campesinos, tal como bem fez a Constituição Boliviana de 2009. O “lugar” da justiça pode ser ocupados por muitos outros sujeitos coletivos além do próprio Estado.
Por segundo, há de se compreender que qualquer instituição ligada ao sistema de justiça precisa ser transparente e estar democraticamente aberta ao controle social e popular, resguardados os mecanismos de defesa de posições contramajoritárias, pois de outra forma não se protegem as garantias e direitos fundamentais assegurados pelas Constituições. É inaceitável que as instituições do sistema de Justiça, incluindo-se Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, acreditem que, pelo trabalho técnico e finalístico que desempenham, estejam autorizadas e legitimadas por presunção sem a necessidade de escuta e debate permanente com a sociedade, o que ganha contornos mais fortes no que diz respeito à gestão administrativa das instituições, a qual deveria estar voltada para atendimento das reais e principais necessidades dos jurisdicionados em pior situação. Potencializar o exercício dos modelos normativos da democracia da deliberação, da participação e da realidade no âmbito do sistema institucional de justiça é medida mais do que necessária. Uma justiça do povo é uma justiça não só acessível e compreensível a todos, em todo os níveis, mas também uma justiça estruturada, inclusive institucionalmente, para atender, com prioridade, as negações de direitos mais graves (negação de moradia, ausência de reforma agrária, falta de titulação de territórios quilombolas, julgamento de crimes dolosos contra a vida, proteção do meio ambiente, prioridade na fiscalização de políticas públicas diversas etc). No “modo de produção” da justiça e do seu trabalho também como subjetividade, enquanto as instituições do sistema de justiça ignorarem o valor da qualidade em detrimento da estatística da quantidade, premiarem a omissão como exemplo de falsa eficiência e não estiverem abertas para as críticas externas dos destinatários de suas ações, esse quadro não mudará; ao contrário, acentuar-se-ão os problemas e os limites desse perverso modelo: cada vez menos trabalho “vivo” (não-objetivado) criador de valor e mais trabalho “morto” alienado ou descompromissado com a vocação. Quando atividades que propiciam “injustiça” são tidas como produtivas, definitivamente há algo de errado.
Em terceiro lugar, por fim, livre de pré-conceitos de origem, há de se apostar nas reflexões e categorias marxistas para repensar a razão de ser do Estado e, por consequência, do próprio Direito, como uma de suas mais fortes expressões. É factível apostar na possibilidade de o direito não só romper com o capitalismo, mas servir de instrumento para mitigação ou diminuição das injustiças causadas por este mesmo modelo? Ou trata-se de abandonar o direito? Do abstrato ao concreto, o valor fundante de um sistema de justiça deve ser as principais necessidades do seu povo; as principais e mais históricas negações de direito devem ser superadas, sem perder de vista a crença na utopia futura. Se, como bem denunciou Lenin, há uma ligação incondicional do Estado à estruturação do capitalismo, repensar o papel deste implica em reposicionar o direito como subsistema; um direito capaz de dar a cada um segundo sua capacidade, e a cada um segundo sua necessidade, como proposto por Marx. Há de se pensar também em um direito que, antes de ser norma, seja representado pelas relações sociais concretas, com, de modo otimista, defende Stutchka (1865-1932), como instrumento revolucionário para reverter a luta de classes, para que, por exemplo, antes da defesa de uma propriedade individual ocupe-se a ordem jurídica de assegurar a propriedade coletiva e a consequente função social como prioridade. De maneira mais específica e de modo decisivo para a problematização que se pretende, Pachukanis (1891-1937) aprofunda a compreensão do direito como lógica do capital, definindo o quanto a forma do direito (a ideia de sujeito de direito) protege a forma mercadoria, sendo a circulação mercantil que explica a especificidade do direito. Mas se o direito é um aparato necessário do capitalismo, há como se utilizar do próprio direito para mudança desse quadro de injustiça ou só mesmo resta a necessidade radical de sua eliminação gradativa, por mais paradoxal que seja uma filosofia do direito nesses termos? Afinal, se o direito, no plano do ser, não serve para debelar a injustiça - uma de suas promessas fundantes, se não é possível transformar o direito para que ele desonere-se deste encargo crucial, então, talvez seja caso de se pensar na ruptura e rompimento com o direito, não? Marcar pela aparência de justiça o que, em essência, revela-se como injustiça, é que definitivamente não serve. Chega da legalidade da injustiça e da ilegalidade da justiça, como bem aponta Dussel.
Notas e Referências:
[1] LUDWIG, 2006, p. 180: “A libertação implica, portanto, partir de um novo sujeito histórico, o ‘bloco social dos oprimidos’, que é não-ser (pois não tem lugar na totalidade dominadora), mas tem realidade”.
[2] LUDWIG, 2006, p. 183: “(…)o ponto de partida, o antes de tudo, é a vida concreta de cada sujeito como modo de realidade. A vida é o critério-fonte, condição da possibilidade de todo o mais. Esse critério é referência de todos os campos: do ético, do político, do econômico, do social, do jurídico e outros. É referência, também, de todo ato, norma, estrutura, sistema, subsistema, instituição etc. Assim, a premissa é que aa vida humana em comunidade é o modo de realidade do sujeito. O modo de realidade consiste em considerar a vida humana como ela se apresenta a nós, nas situações concretas do mundo, na idade da globalização e da exclusão”; p. 185: “A vida humana é a referência. O que importa, no plano concreto, é produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito”.
[3] LUDWIG, 2006, p. 174: “(…) a exterioridade constitui-se como categoria fonte, reserva de fundamento último (ponto de partida e de chegada) da justiça. (…) a partir desse ‘novo lugar’ pode revelar um ‘outro’ justo, ou uma ‘outra’ justiça: o não-ser como ser da justiça”; p. 177: “trata-se de uma exigência de justiça, fundada na exterioridade. A justiça concretiza-se histórica e faticamente, nessa ótica, não como uma concessão paternalista da ordem moral ou jurídica vigente, ou como ato de comiseração, altruísmo ou benevolência do sistema dominante, ou entao de um ato de indignação caridosa dos críticos do status quo, mas, ao contrário, como exigência ético-filosófica que tem na exterioridade, no nada de sentido, no não-ser, que é real e concreto por excelência, sua fonte originária”.
[4] FANON, 2005, p. 365: “Logo, camaradas, não paguemos tributo à Europa criando Estados, instituições e sociedades inspirados nela. A humanidade espera outra coisa de nós, e não esta imitação caricatural e, no conjunto, obscena. Se queremos transformar a África em uma nova Europa, a América em uma nova Europa, então confiemos a europeus os destinos dos nossos países. Eles saberão fazer melhor do que os mais talentosos de nós. Mas se queremos que a humanidade avance, se queremos levá-la a um nível diferente daquele em que a Europa a manifestou, então é preciso inventar, então é preciso descobrir”.
[5] SANTOS e MENESES, 2010, p. 32: “A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialéctica. Para dr exemplo baseado no meu próprio trabalho, tenho vindo a caracterizar a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação social. Esta distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto no relativo a factos substantivos como no plano dos procedimentos. Mas subjacente a esta distinção existe uma outra, invisível, na qual a anterior se funda. Esta distinção invisível é a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De facto, a dicotomia regulação/emancipação apenas se aplica a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-las aos territórios coloniais. Nestes aplica-se uma outra dicotomia, a dicotomia apropriação/violência, que, por seu turno, seria inconcebível aplicar deste lado da linha”.
[6] SANTOS e MENESES, 2010, p. 66.
FANON, Franz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 4a edição. São Paulo: Atlas, 2014.
SANTOS, Boaventura de Sousa. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Márcio Soares Berclaz é Doutorando em Direitos das Relações Sociais (UFPR), Mestre em Direito do Estado (UFPR), sócio-fundador do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br), membro do Ministério Público Democrático, membro da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude – ABMP, membro da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público em saúde pública – AMPASA, membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS, autor do Blog Recortes Críticos (www.recortescriticos.blogspot.com) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Paraná.
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