Um presidente da Câmara dos Deputados, no Brasil, pode ser afastado de suas funções?

29/07/2015

 Por Rômulo de Andrade Moreira - 29/07/2015

Em 2011, foi promulgada a Lei nº. 12.403, alterando substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal que passou a ter a seguinte epígrafe: “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”.

Com a alteração, o art. 282 passou a estabelecer novas medidas cautelares que deverão ser aplicadas observando-se um dos seguintes requisitos: a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (periculum libertatis).

Além destes requisitos, a lei estabeleceu critérios que deverão orientar o Juiz no momento da escolha e da intensidade da medida cautelar, a saber: a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (fumus commissi delicti). Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor.

Procurou-se, portanto, estabelecer neste Título os requisitos e os critérios justificadores para as medidas cautelares no âmbito processual penal, inclusive no que diz respeito às prisões provisórias, incluindo-se a prisão temporária, “pois são regras abrangentes, garantidoras da sistematicidade de todo o ordenamento.[1]

Assim, quaisquer das medidas cautelares estabelecidas neste Título (repetimos: inclusive as prisões provisórias codificadas ou não) só se justificarão quando presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis (ou o periculum in mora, conforme o caso) e só deverão ser mantidas enquanto persistir a sua necessidade, ou seja, a medida cautelar, tanto para a sua decretação quanto para a sua mantença, obedecerá à cláusula rebus sic stantibus.

Observa-se que as medidas cautelares só poderão ser decretadas de ofício pelo Juiz durante a fase processual; antes, no curso de uma investigação criminal, apenas quando instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela Polícia. Ainda que tenha sido louvável esta limitação, parece-nos que no sistema acusatório é sempre inoportuno deferir ao Juiz a iniciativa de medidas persecutórias, mesmo durante a instrução criminal. É absolutamente desaconselhável permitir-se ao Juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em Juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (restritiva de direitos, privativa de liberdade, etc.), pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo[2].

É evidente que o dispositivo é perigoso, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.[3]

Claro que há efetivamente certo distanciamento dos postulados do sistema acusatório, mitigando-se a imparcialidade[4] que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, que não se coaduna com a determinação pessoal e direta de medidas cautelares. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.[5]

Dentro desta perspectiva, o sistema acusatório é o que melhor encontra respaldo em uma democracia, pois distingue perfeitamente as três funções precípuas em uma ação penal, a saber: o julgador, o acusador e a defesa. Tais sujeitos processuais devem estar absolutamente separados (no que diz respeito às respectivas atribuições e competência), de forma que o julgador não acuse, nem defenda (preservando a sua necessária imparcialidade), o acusador não julgue e o defensor cumpra a sua missão constitucional de exercer a chamada defesa técnica.

Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo o professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, “hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar[6], proibindo-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora[7], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento[8].

Sobre o sistema acusatório, José Frederico Marques: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal, tão-somente, da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[9]

Ainda como corolário dos princípios atinentes ao sistema acusatório, aduzimos a necessidade de se afastar o Juiz, o mais possível, de atividades persecutórias. Um dos argumentos mais utilizados para contrariar esta afirmação é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal[10]. Ocorre que este dogma está em franca decadência, pois hoje se sabe que a verdade a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico.

Como ensina Muñoz Conde, “el proceso penal de un Estado de Derecho no solamente debe lograr el equilibrio entre la búsqueda de la verdad y la dignidad de los acusados, sino que debe entender la verdad misma no como una verdad absoluta, sino como el deber de apoyar una condena sólo sobre aquello que indubitada e intersubjetivamente puede darse como probado. Lo demás es puro fascismo y la vuelta a los tiempos de la Inquisición, de los que se supone hemos ya felizmente salido.”[11]

Com efeito, não se pode, por conta de uma busca de algo muitas vezes inatingível (a verdade...)[12] permitir que o Juiz saia de sua posição de supra partes, a fim de auxiliar, por exemplo, o Ministério Público a provar a imputação posta na peça acusatória. Sobre a verdade material ou substancial, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”. Para o mestre italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´[13]”.

Vê-se, portanto, que se permitiu um desaconselhável “agir de ofício” pelo Juiz. Não é possível tal disposição em um sistema jurídico acusatório, pois que lembra o sistema inquisitivo caracterizado, como diz Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[14]

Parece-nos claro que há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do sistema acusatório, precipuamente à imprescindível imparcialidade que deve nortear a atuação de um Juiz criminal (e não neutralidade, que é impossível)[15]. Quanto à neutralidade, faz-se uma ressalva, pois não acreditamos em um Juiz neutro (como em um Promotor de Justiça ou um Procurador da República neutro). Há sempre circunstâncias que, queiram ou não, influenciam em decisões e pareceres, sejam de natureza ideológica, política, social, etc., etc. Como notou Eros Roberto Grau, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[16] São inconfundíveis a neutralidade e a imparcialidade. É ingenuidade acreditar-se em um Juiz neutro, mas é absolutamente indispensável um Juiz imparcial.

Um Magistrado imparcial, como afirmam Alexandre Bizzotto, Augusto Jobim e Marcos Eberhardt, implica em um “formal afastamento fático do fato julgado, não podendo o Magistrado ter vínculos objetivos com o fato concreto colocado à discussão processual. Coloca-se daí na condição de terceiro estranho ao caso penal. (...) Já a neutralidade é a assunção da alienação judicial, negando-se ingenuamente o humano no juiz. Este agente político partícipe da vida social sente (a própria sentença é um ato de sentir), age, pensa e sofre todas as influências provocadas pela sociedade pós-moderna. Afirmar que o juiz é neutro é ocultar uma realidade.”[17]

Sobre o sistema acusatório, afirmava Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[18]

A propósito, relembramos o art. 3º. da Lei nº. 9.296/96 (interceptações telefônicas) que permite ao Juiz, mesmo na primeira fase da persecutio criminis, determinar de ofício a quebra do sigilo telefônico, o que também representa uma quebra flagrante dos postulados do sistema acusatório, bem como o art. 311 do Código de Processo Penal, possibilitando ao Juiz Criminal a decretação, de ofício, da prisão preventiva (ver adiante), decisões que (pasmen!), ainda o tornam prevento (art. 75, parágrafo único e art. 83 do Código de Processo Penal).[19]

Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...) ”[20]

Atendendo à exigência constitucional do contraditório, dispõe o § 3º. do art. 282 que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida (quando, então, será tomada inaudita altera pars, como, por exemplo, uma interceptação telefônica), o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias; neste caso, os autos devem permanecer em juízo. Parece-nos que mesmo no caso da medida ser determinada de ofício pelo Juiz, deve assim também se proceder, ou seja, ouvir-se a parte a quem a medida possa trazer algum prejuízo, ressalvadas, evidentemente, as hipóteses de urgência ou de perigo para a eficácia da decisão. Não há devido processo legal sem o contraditório, que vem a ser, em linhas gerais, a garantia de que para toda ação haja uma correspondente reação, garantindo-se, assim, a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito do contraditório, Willis Santiago Guerra Filho afirma “que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.” (grifos no original).[21]

Segundo Étienne Vergès, a Corte Européia dos Direitos do Homem (CEDH) “en donne une définition synthétique en considérant que ce principe ´implique la faculté, pour les parties à un procés penal ou civil, de prendre connaissance de toutes pièces ou observations présentées au juge, même par un magistrat indépendant, en vue d´influencer sa décision et de la discuter` (CEDH, 20 févr. 1996, Vermeulen c/ Belgique, D. 1997, som. com. P. 208).”[22]

O contraditório será fundamental (ressalvada a urgência e a possibilidade de ineficácia da medida), até para que o investigado ou acusado tenha a oportunidade de, por exemplo, requerer “a decretação de medida menos gravosa do que aquela sugerida pela parte contrária.[23]

Aliás, ainda que a medida tenha sido tomada inaudita altera pars, “a observância do contraditório, nesses casos, é feita depois, dando-se oportunidade ao suspeito ou réu de contestar  a providência cautelar (...). Fala-se em contraditório diferido ou postergado.[24]

Esta exigência do contraditório (prévio ou postergado) aplica-se, inclusive, quando se tratar da prisão provisória (temporária ou preventiva), pois típica medida cautelar, ressalvando-se, obviamente, a urgência e a possibilidade de sua ineficácia (prisão preventiva para aplicação da lei penal, por exemplo).

Também com nova epígrafe está o Capítulo V – Das Outras Medidas Cautelares, englobando os arts. 319 e 320 e acabando definitivamente com a previsão legal (e inconstitucional) da prisão administrativa. Neste Capítulo estão previstas outras medidas cautelares diversas da prisão preventiva e da prisão domiciliar.

Pois bem.

Uma delas consiste na suspensão do exercício de função pública[25] ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais. Evidentemente que esta medida acautelatória deve ser aplicada em casos de crimes praticados contra a administração pública, contra a ordem econômico-financeira, fiscais, previdenciários, contra a economia popular ou mesmo, a depender do caso concreto, em crimes ambientais quando praticados no bojo de atividade econômica. Observar que medida semelhante já tinha sido prevista no art. 56, parágrafo primeiro da Lei n. 11.343/06 (Lei de Drogas).

A propósito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 482.006-4, tendo como Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, decidiu que "a redução de vencimentos de servidores públicos processados criminalmente colide com os princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5º., LVII) e da irredutibilidade de vencimentos (art. 37, XV), (...) validando-se verdadeira antecipação da pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal e antes mesmo de qualquer condenação."

Aliás, por analogia, podemos utilizar do disposto no art. 17-D da Lei nº. 9.613/98 ("Lavagem de Dinheiro"), segundo o qual, "em caso de indiciamento de servidor público, este será afastado, sem prejuízo de remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno.” (Grifo nosso).

Logo, a prisão preventiva é uma opção excepcional, razão pela qual as cortes só devem determinar a reclusão do acusado em casos extremos. A decisão é do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Reis Júnior ao conceder liminar para libertar oito auditores fiscais do Paraná. Com a decisão, as prisões preventivas devem ser substituídas por medidas cautelares alternativas, entre elas, a suspensão do exercício da função pública. Para o Ministro Sebastião Reis Júnior, os argumentos do juiz de primeiro grau “não são suficientes para justificar a decretação da prisão preventiva”. Segundo ele, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera que o decreto de prisão provisória deve estar baseado em elementos concretos e de convicção que justifiquem a necessidade da medida excepcional. De acordo com o Ministro, a aplicação das medidas alternativas é suficiente “para garantir a ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a aplicação da lei penal, até porque os crimes imputados não foram cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa”. Sebastião Reis Júnior afirmou, ainda, que o afastamento dos pacientes do exercício de suas atividades se mostra suficiente para evitar a reiteração criminosa, pois os crimes teriam sido cometidos em razão do exercício da função. “Com o advento da Lei 12.403, a prisão cautelar passou a ser a mais excepcional das medidas, devendo ser aplicada somente quando comprovada sua inequívoca necessidade, devendo-se sempre verificar se existem medidas alternativas à prisão adequadas ao caso concreto”, concluiu Sebastião Reis Júnior. (Habeas Corpus nºs.  327155,  327164,  327181 - parte 2, 326930,  327165 - parte 2,  327167 e  327078 - partes 2 e 3).

Neste sentido, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal não conheceu o Habeas Corpus nº. 121035. No Supremo, a defesa pretendia reverter decisão de Ministro do Superior Tribunal de Justiça que indeferiu pedido de liminar em Habeas Corpus  lá impetrado, no qual o réu pedia trancamento de ação penal e seu retorno ao cargo público. O Ministro Dias Toffoli destacou que afastar do mandato eletivo um agente político, com base no artigo 319 do Código de Processo Penal, em vez de decretação da prisão pode ser mais eficaz. Lembrou que, antes da alteração da lei, houve diversos casos em que prefeitos tiveram a prisão decretada, mas continuaram despachando da cadeia. O Ministro afirmou ter refletido sobre a possibilidade de um juiz que não é da seara eleitoral afastar alguém do mandato, mas que no caso em julgamento, especialmente pelo fato de o acusado ser alvo de denúncia de diversos crimes semelhantes na gestão da prefeitura, a medida se justifica. “É necessário que não fechemos a porta a toda e qualquer possibilidade de uso deste dispositivo do Código de Processo Penal, na medida em que, se o crime pode voltar a ser praticado, estando a pessoa na função pública, ela deve ser afastada”, observou o relator.

Portanto, entendemos ser possível, caso estejam presentes indícios suficientes de autoria e prova da existência de um crime contra a administração pública, além de ser conveniente para a instrução criminal, o afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados de suas funções, mantendo-o, como Deputado Federal, múnus para o qual foi eleito de forma legítima pelo povo (e considerando, evidentemente, ter havido, neste sentido, pedido do Procurador-Geral da República, afastando-se, por óbvio, atuação de ofício, do Ministro relator).   

E, caso haja descumprimento desta medida cautelar? Segundo permite o Código de Processo Penal, o Magistrado (neste caso, o Ministro do Supremo Tribunal Federal), poderia (como ultima ratio) decretar a prisão preventiva, nos termos do art. 312, parágrafo único. Não neste caso, tendo em vista que os Deputados Federais só podem ser presos, desde a Diplomação, em flagrante delito de crime inafiançável, nos termos do art. 53 da Constituição Federal. Nada a fazer, portanto. Foi a vontade popular!


Notas e Referências:

[1] Pierpaolo Bottini, ob. cit., p. 457.

[2] Interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), Cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe o brasileiro: “Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus.” Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o Cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: “Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano...” (in Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).

[3] Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.

[4] Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

[5] Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

[6] Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p. 230.

[7] Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

[8] José António Barreiros, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.

[9] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Forense, p. 64.

[10] Sobre a matéria há obras importantes, a saber, por exemplo: “A Busca da Verdade Real no Processo Penal”, de Marco Antonio de Barros, Editora Revista dos Tribunais, 2002; “O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo Penal”, de Francisco das Neves Baptista, Editora Renovar, 2001 e “La verdad en el Proceso Penal”, de Nicolás Guzmán, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2006.

[11] Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal, Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

[12]Classicamente, a verdade se define como adequação do intelecto ao real. Pode-se dizer, portanto, que a verdade é uma propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam.” (Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 241). “A porta da verdade estava aberta / Mas só deixava passar / Meia pessoa de cada vez / Assim não era possível atingir toda a verdade. / Porque a meia pessoa que entrava / Só trazia o perfil de meia verdade / E a segunda metade / Voltava igualmente como perfil / E os meios perfis não coincidiam. / Arrebentavam a porta, derrubavam a porta, / Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. / Era dividida em metades diferentes uma da outra. / Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. / Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar. / Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.” (Carlos Drummond de Andrade, do livro "O corpo", editora Record).Não tenho a menor noção do que é a verdade, mulher! Caguei pra verdade, a verdade é uma coisa escrota, uma nojeira filosófica inventada pelos monges do século XIII, que ficavam tocando punheta nos conventos, verdade o cacete, interessa a objetividade.” (“Eu sei que vou te amar”, de Arnaldo Jabor, Rio de Janeiro: Objetiva, p. 65).

[13] Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, pp. 44 e 45.

[14] Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

[15] Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

[16] Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo: Malheiros, 2ª. ed., 2003, p. 51. Também neste sentido, veja-se Rodolfo Pamplona Filho, “O Mito da Neutralidade do Juiz como elemento de seu Papel Socialin "O Trabalho", encarte de doutrina da Revista "Trabalho em Revista", fascículo 16, junho/1998, Curitiba/PR, Editora Decisório Trabalhista, págs. 368/375, e Revista "Trabalho & Doutrina", nº 19, dezembro/98, São Paulo, Editora Saraiva, págs.160/170.

[17] A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal, obra organizada por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho, Porto Alegre: Notadez, 2006, p. 20.

[18] André Vitu, Procédure Pénale. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13-14.

[19] Sobre prevenção veja o que escrevemos em nosso Curso Temático de Direito Processual Penal, Curitiba: Juruá, 2010, p. 348.

[20] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[21] Introdução ao Direito Processual Constitucional, São Paulo: Síntese, 1999, p. 27.

[22] Procédure Pénale, Paris: LexisNexis Litec, 2005, p. 35.

[23] Pierpaolo Botinni, ob. cit., p. 462.

[24] Antonio Scarance Fernandes, Processo Penal Constitucional, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 60. No mesmo sentido, veja-se Rogério Lauria Tucci, Direitos e Garantias no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª., ed., 2004, p. 361.

[25] Por todos, veja-se o conceito de função pública na obra de Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 2002, 14ª. ed., págs. 439 e 440.


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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.                                                                                   


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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