Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
No mais das vezes, o emprego das artes nos meios consensuais é lembrado apenas na criação de um ambiente acolhedor para as partes dialogarem. Logo, recomendam-se que as paredes sejam pintadas de cores amenas, que haja quadros de motivos reconfortantes ou que a música ambiente seja especialmente tranquilizadora.
Outro enfoque é, todavia, possível: a obra de arte, pelo seu efeito de estranhamento, leva ao demorar-se contemplativo que, no retorno, permite enxergar a realidade com outros olhos. Desse modo, ao nos tirar momentaneamente da rotina, a arte expande nossa própria noção do que seja a realidade.
Algo nos diz que essa dimensão alternativa é especialmente válida para tocarmos mais de perto a lógica em que se funda os meios consensuais. Uma lógica que, assim como na poesia, é analógica.
Centrados na ideia de transformação de conflitos, valendo-nos do clipoema “Acordo”, de Arnaldo Antunes, nosso objetivo é tangenciar tal horizonte provável.
1. Concordo/discordo
A mudança da cultura da sentença para a cultura da pacificação passa pela formação de outra mentalidade do profissional jurídico. Desse modo, o conceito de conflito, como principal objeto do operador do Direito, precisa ser revisto.
Na tradicional concepção de Francesco Carnelutti, conflito se confunde com lide, isto é, com contraposição de interesses caracterizada pela pretensão resistida. Os conflitos surgem porque os interesses são infinitos e os bens reduzidos. Como somente um dos interesses é justo, existem vencedor e vencido. Situações de indefinição, em que ainda não está determinado o lado que está com a razão, são danosas. Daí porque a lide é vista como o germe do delito.[1] Conflitos devem ser eliminados.
Em contrapartida, baseado em autores como o psicólogo social Morton Deutsch, os defensores dos meios consensuais ampliam a noção de conflito. Conflito implica contraposição, contraste, choque. Mas não necessariamente interesses inconciliáveis. Pais que discutem sobre como tratar a picada de mosquito do filho possuem ambos o interesse na sua cura.[2]
Conflitos, assim, não são percalços da vida, mas são a própria vida. São oportunidades de mudanças construtivas. Além disso, um aspecto adicional, trazido por autores como John Paul Lederach, é que conflitos, idealmente, são transformados, em vez de meramente eliminados.[3] A semente para se alterar a situação conflituosa está no próprio conflito.
Já que distante da tradicional, a visão transformativa do conflito costuma ser de difícil apreensão. Conflito fazer parte da vida e representar um ganho até se admite. Mas como explicar que a alternativa ao conflito nasce do conflito? Nesse aspecto, em especial, insere-se o potencial exemplar da arte para, ao criar um mundo paralelo à realidade, organizar e nos ajudar na compreensão da própria realidade. Para entender a visão transformativa do conflito, um bom exemplo metalinguístico é o clipoema “Acordo”, de Arnaldo Antunes (1993).
Como se sabe, um clipoema agrega elementos verbais, sonoros e visuais que, em conjunto, potencializam a interpretação. Isso remete à ideia concretista de dimensão verbivocovisual da poesia, ou seja, a confluência da palavra, do som e da imagem. Sem perder de vista o todo, vamos por partes.
2. Palavra
A letra é desgraçadamente simples: “Concordo/Discordo/Acordo”. O acordo surge da tensão entre concordar e discordar. É possível ser ainda mais sintético:
(con)
cordo
(dis)
Recorde-se que “cordo”, do latim “cordis”, significa coração. A tensão entre contrários resolvendo-se pelo coração. Que, aliás, é o centro tanto do concordo como do discordo.
Acordo pode ser também interpretado como despertar, como passar a ter consciência. Acordar resolve, assim, a inquietação provocada pela oscilação entre a vida e a morte que é o dormir. O despertar, porém, surge do sono.
Uma intertextualidade casual nos ajuda aqui. No fragmento 51, Heráclito diz que “discordando em si mesmo, consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira”. Trata-se da contradição do ser que, em si mesmo, é igual e diferente, mas unido pelo acordo.
Como nos ensina Fabio Neves, “arco” remete à guerra, ao passo que “lira” volta-se à poesia. Ambos, porém, unem-se nas cordas que possuem. Há, assim, uma tensão de opostos que se resolve pelo equilíbrio inerente aos dois.
3. Som
A música é irritantemente limitada. Na tonalidade de mi maior (representada pela letra E), é baseada em apenas dois acordes do campo harmônico maior: um pertencente ao primeiro grau (sobre o qual é cantada a palavra “discordo”) e outro ao quinto grau (sobre o qual é cantada a palavra “concordo”). O “acordo” perpassa ambos os acordes.
Na teoria musical, o primeiro grau remete a relaxamento, conclusão, já que é o centro tonal (mi maior, no caso). Muitas vezes é o acorde com o qual a música termina.
O quinto grau é uma preparação para o primeiro. Ao reconhecê-lo, o ouvido humano espera que o acorde seguinte seja o pertencente ao primeiro grau, o qual o músico ou compositor pode optar por usar, para concluir, ou até mesmo omitir, para gerar estranhamento.
Assim, ao relacionarmos as palavras de Arnaldo Antunes aos acordes que lhe dão suporte, percebemos um movimento que soa contraditório, pois o “discordo”, em vez de gerar tensão, relaxa. E o “concordo”, em vez de relaxar, tensiona.
Além disso, o concordo (sobre o quinto grau), remete ao discordo (sobre o primeiro grau), uma vez que o quinto grau “solicita” a presença do primeiro, como explicado.
O movimento proporcionado pela junção de letra e harmonia é, então, circular, quase monótono. Enquanto a harmonia vai em um sentido, a letra segue em outro. Esse ciclo, porém, é aberto pelo movimento interior que surge no “acordo” (como ato de despertar ou de chegar ao consenso, quem sabe?).
Dessa forma, o acordo movimenta o conflito. A oportunidade de crescimento pelo conflito passa pelo acordo. Não se trata de um círculo vicioso, mas de uma espiral. Se ela é construtiva ou destrutiva, é opção de cada um.
4. Imagem
A imagem é explicitamente clara. A tensão entre concordo e discordo é representada por ondulações. Melhor dizendo, por vibrações de cordas que formas as palavras “concordo”, “discordo” e, ao final, “acordo”.
As concordâncias e discordâncias vão abrindo espaço pelas linhas. Sem esse movimento, porém, teríamos apenas linhas retas que, por mais contínuas que fossem, permaneceriam inalteradas. Teríamos, então, estagnação. A vida depende do conflito, ou melhor, é o próprio conflito.
Só no emaranhado frenético das palavras “concordo” e “discordo” pode surgir o “acordo”. A eterna positividade do “concordo” ou a imutável negatividade do “discordo”, se isoladas, não produziria nada além de sua própria reiteração. Não há tensões produtivas se não há tensões.
No clipoema “Acordo”, sob a simplicidade da palavra, a limitação do som e a clareza da imagem, há a concretização da ideia de transformação do conflito. Se o quente vira o frio, e o frio vira o quente, então há algo de comum nos dois, que permite certa identidade. Entre o concordo e o discordo, o comum seria a possibilidade de acordo. Nesse jogo entre opostos que estão distantes, mas próximos, surge a potencialidade da conciliação. A tensão que balança as cordas, que ressoam acordes, que nos acordam, que geram acordos...
Notas e Referências
[1] Como se Faz um Processo. Belo Horizonte: Líder, 2005, p.26.
[2] DEUTSCH, Morton.The Resolution of Conflict: Constructive and Destructive Processes. New Haven/ London: Yale University Press, 1973, p.10.
[3] Transformação de Conflitos. São Paulo: Palas Athena, 2012.
Imagem Ilustrativa do Post: Justice sends mixed messages // Foto de: Dan4th Nicholas // Sem alterações
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