Um pequenino ensaio acerca de contraceptivos ineficazes e da reparação de danos atados à violação de projetos de vida – Por Marcos Catalan

09/12/2016

Isabelly – a personagem é fictícia – é uma jovem bastante ativa. Cursa o quinto semestre de uma importante faculdade na área das humanidades no Centro-Oeste brasileiro. Não tem namorado e descobriu, esta semana, estar grávida. Pôs-se a questionar como isso teria ocorrido. E o fez, sabendo que no exercício da plenitude de sua sexualidade – de seus direitos sexuais e reprodutivos, preferirão alguns – sempre exigiu, dos parceiros, o uso de preservativos. Aliás, entre alguns enjoos antecipados, surtos de ansiedade e outras sensações, igualmente, desagradáveis, segue a indagar-se, como quem recita um mantra – Por que? Por que? Por que? Há anos consome, com a regularidade dos melhores relógios suíços, os anticoncepcionais prescritos por sua ginecologista. Bastante confusa com a novidade, Isabelly encontra-se, ainda, revolver, renitentemente, os motivos que teriam levado a Fortuna a elegê-la. Logo ela, que não desejava ter filhos, acreditando, assim, respeitar os contornos delineados pelos estudiosos da segurança alimentar. Enfim – e sem prejuízo de outros incomensuráveis dados não capturados pelas lentes fundidas a nossa condição humana – é preciso narrar que o pensamento da protagonista desta curta estória segue obnubilado pela distante e sombria lembrança de ter tangenciado, certa feita, a superfície da bula do contraceptivo consumido há dez anos e o registro da informação de que a droga não garantiria, plenamente, a contracepção, ainda que, fabricada e difundida pelo Mercado com esse, único e exclusivo, fim.

Mário Sérgio – a personagem é, como na hipótese anterior, igualmente, fictícia – é um empresário de meia idade que vive transitando entre a Ilha da magia, a Catalunha e a Toscana. Atua no ramo náutico, projetando e construindo embarcações luxuosas. Recorreu a vasectomia antes do fim do segundo casamento, ocorrido há, aproximadamente, um lustro. Seu affair, vinte anos mais jovem – tem a idade de Mário Filho – descobriu, também esta semana, estar grávida. Virginy está muito feliz. Mário Sérgio, entretanto, entremeio ao incomodo provocado pela taquicardia e pela lembrança dos centros cirúrgicos visitados nas duas ocasiões em que precisou recorrer às pontes de safena que carrega, escondidas, no peito, buscou nos porões da memória o fato de que o médico nada dissera acerca de – ainda que excepcionais – riscos de insucesso da intervenção cirúrgica contraceptiva. Lembrou-se apenas dos repetidos conselhos para que consumisse medicamentos, cujos nomes lhe escapam agora, ao longo dos primeiros doze meses que sucederam a cirurgia.

É deveras provável que leitor que tenha vivenciado qualquer pequeno contato com a temática que emoldura os exemplos acima grafados saiba dizer que as situações ilustrativamente pensadas são tratadas no direito alienígena como hipóteses de wrongful conception ou wrongful pregnancy. E, talvez, os mais atentos, irão recordar-se do(s) polêmico(s) caso(s) das pílulas de farinha[1] exemplos genuinamente tupiniquins da figura em questão. Em síntese bastante apertada a wrongful conception ou wrongful pregnancy emoldura hipóteses nas quais se explicita a concepção não desejada em decorrência do malogro ou falha dos métodos e (ou) medidas contraceptivas adotadas em concreto.

Obviamente – e que isto fique bastante claro – o rebento não pode ser qualificado como dano[2].

Ao mesmo tempo, entretanto, o direito ao planejamento familiar – um direito, constitucionalmente, assegurado no Brasil[3] – foi desprezado em todos os três cenários desenhados outrora. Fica a dúvida: a violação dos direitos sexuais e reprodutivos de nossas personagens fantasiosas – nos limitemos a elas – e, o consequente desrespeito a seus projetos de vida – autoriza afirmar ter havido lesão a direito merecedora de tutela jurídica? E, ainda nestes cenários, seria possível cogitar a gênese do dever de reparar?

A resposta a questão exige identificar os pressupostos que informam o referido dever. Exige, ainda, talvez, a formulação de uma provocação que antecede tal discussão. Daí o cuidado contido na redação de cada linha adiante grafada e o carinho dedicado à seleção e supressão das palavras aqui fundidas com o único propósito de despertar reflexões acerca de tema tão palpitante e para o qual temos muito mais perguntas que respostas.

A responsabilidade civil é apta à solução das situações anteriormente descritas – e a consequente reparação dos danos havidos e, na fenomenologia das relações processuais, comprovados – ou se limita a ecoar em cenários manifestamente insuficientes para o deslinde dos incomensuráveis dilemas havidos nas hipóteses em que a wrongful pregnancy materializa-se. Eis a provocação, outrora, antecipada. Considere, aliás, que o intérprete possui a habilidade necessária para afastar-se dos contornos decimonônicos que historicamente informam esse campo do Direito e domine o sofisticado instrumental teórico que informa essa deveras excitante seara do saber jurídico.

O dever de reparar pressupõe (a) o dano – pensado enquanto lesão a direito patrimonial ou existencial merecedor de tutela –, (b) a identificação de conduta contrária ao direito e (c) a conexão causal entre um e outro. Pressupõe, ainda, que o Direito tenha eleito (d) um fator de atribuição do dever de reparar, o qual, nas telas emolduradas nos cenários contratuais – e, igualmente, nas telas das quais pululam os tons que permitem identificar as cenas desenhadas na fenomenologia jusconsumerista brasileira – é objetivo, mesmo diante das muitas vozes que ecoam em sentido contrário.

Em nosso sentir parece inolvidável que em ambas as hipóteses narradas nos primeiros parágrafos deste opúsculo, dano há. É evidente que ele não se revela naquele ser que veio ao mundo. Em ambos os casos, ata-se à violação a projetos de vida, bem como, aos custos econômicos que emergem antes mesmo do nascimento de uma criança não esperada – e, talvez, indesejada –, materializado – em maior ou menor medida[4] – nas despesas com o pré-natal, nos gastos necessários à realização do parto e, especialmente, diante de sua voluptuosidade, ao custo ligado ao sustento e educação do novo ser[5]. A relação de causalidade, por sua vez, explicita-se na percepção de que da ausência da esperada efetividade da técnica contraceptiva utilizada in concreto resultou a gravidez inesperada e, além do dano emergente acima descrito, senão a violação, a mutação do projeto de vida até então existente e os danos extrapatrimoniais consequentes. Mesmo porque ante a explícita possibilidade de informar o parceiro contratual – em ambos os casos – acerca dos riscos contidos em ambos os casos descritos, explicitasse a necessidade, a partir da assunção de postura prospectiva, de fazer o necessário a impedir que os danos havidos nos campos da wrongful pregnancy se manifestem.

Resta saber se há conduta contrária ao direito. E aqui é deveras factível imaginar que alguns dos nossos leitores incomodar-se-ão com a defesa do dever de reparar promovida neste opúsculo. Em especial na primeira das ficções acima transcritas a partir de imagens buscadas na complexidade e riqueza das cenas que moldam o cotidiano. Afinal, a jovem fora informada que a contracepção não poderia ser garantida. Informada de que caso a Fortuna viesse a lhe sorrir, não deveria virar as costas para ela. Informada adequadamente? Qual a possibilidade de ocorrer a gravidez? Em números percentuais? A bula informa? E se houver, concomitante, uso de álcool durante a relação sexual? E os muitos outros medicamentos consumidos ao mesmo tempo, tem alguma influência na efetividade do contraceptivo? Quantas possibilidades emergirão do cotidiano comprovando que os dizeres contidos na bula não afastam o dever de reparar nos cenários emoldurados pela wrongful conception.

Ademais, uma vez identificados os contornos delineadores do direito de danos em construção no Brasil ele torna-se o protagonista de suas histórias. O direito privado é um direito de acessos e o dano precisa ser reparado. O direito à reparação há de ser alcançado. Direitos foram violados. A obediência ao dever de informar – imprecisamente cumprido, não raras vezes – não é suficiente para afastar o dever de reparar o ônus econômico e, muito menos, a lesão existencial atados à frustração de expectativas legítimas de titularidade de todo aquele que recorre a um método contraceptivo, ainda que se saiba que a internalização destes custos pressuponha sua diluição entre todos consumidores daquele produto e (ou) serviço.

Direito é valor. E entre optar por tutelar aquele que lucra e informa a presença de riscos pouco valorados por seres humanos não tão racionais como pretende o pensamento clássico, seres que, certamente, não filtrarão – como comprovam as ciências cognitivas – eventuais dizeres explicitados nas letras miúdas das bulas e em palavras soltas antes de intervenções cirúrgicas ou tutelar projetos de vida solapados por surpresas indesejadas?

Haverá escolha[6]?


Notas e Referências:

[1] STJ. REsp 866636/SP. 3. T. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJ 06/12/2007. p. 312

[2] SÁNCHEZ-LAMELAS, Ana. El daño moral en la responsabilidad derivada de actuaciones sanitarias: unas reflexiones a propósito de la jurisprudencia reciente. In URBINA, Jorge Tomillo; DE LAS CUEVAS, Joaquín Cayón (Dir.). La protección jurídica del paciente como consumidor. Navarra: Aranzadi, 2010. p. 318.

[3] “Art. 226. [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

[4] Há uma miríade de fatores que precisam ser levados em consideração e, talvez, comprovados no desvelar do processo obrigacional. Dentre eles podem ser rapidamente listados: (a) o desejo (ou não) de ter filhos, no futuro, (b) o impacto de ter um filho na economia familiar, (c) o impacto do nascimento na harmonia conjugal, (d) o grau de comprometimento de um e (ou) outro genitor com a criação do ser que veio ao mundo e os desvios necessários no projeto de vida até então existente, etc.

[5] CATALANO, Marco. La responsabilità medica. In FAVA, Pasquale (Coord.). La responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 2009. p. 1816-1817.

[6] A inspiração para este opúsculo foi encontrada na fala de uma jovem pesquisadora que corajosamente refletiu e nos pôs a refletir acerca dos malefícios provocados pelo consumo de anticoncepcionais, no Brasil. Uma fala havida por ocasião do V Agendas de Direito Civil-Constitucional, ocorrido no Unilasalle Canoas, em novembro deste ano.


Imagem Ilustrativa do Post: Boy Belly // Foto de: Eduardo Merille // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/merille/2053337421/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura