Um museu de grandes novidades: por que o princípio da dignidade humana sempre será necessário para a compreensão do Direito Civil - Constitucional?

29/11/2016

Por Guilherme Wünsch – 29/11/2016

O princípio da dignidade da pessoa humana impôs uma transformação radical na dogmática do Direito Civil, estabelecendo uma dicotomia essencial entre as relações jurídicas existenciais e as relações jurídicas patrimoniais. Torna-se obsoleta a summa divisio que estremava, no passado, direito público e direito privado bem como ociosa a partição entre direitos reais e direitos obrigacionais, ou entre direito comercial e direito civil. Tal advertência ganha importância especial no momento em que, com o Código Civil de 2002, propaga-se a chamada unificação do direito privado. O relevante, ressalte-se, não consiste na topografia da disciplina da empresa na normativa codificada senão a distinção axiológica que deve presidir a dogmática da pessoa humana e a da pessoa jurídica. Ou seja, a proposta unificante do Direito Privado, concebido em seu aspecto estrutural, só por si nada representa.

À luz do princípio fundamental da dignidade humana têm-se, de um lado, a técnica das relações jurídicas existenciais, que informam diretamente os chamados direitos da personalidade e, mais amplamente, a tutela da pessoa nas comunidades intermediárias, nas entidades familiares, na empresa, nas relações de consumo e na atividade econômica privada, particularmente no momento da prevenção da lesão, deflagrando, a partir daí, uma transformação profunda na dogmática da responsabilidade civil. A dignidade da pessoa humana, como valor e princípio, compõe-se dos princípios da liberdade privada, da integridade psicofísica, da igualdade substancial e da solidariedade social, ambos previstos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.

As novas tecnologias, por exemplo, rompem com os compartimentos do direito público e do direito privado, invocando regulação a um só tempo de natureza privada e de ordem pública. A dignidade da pessoa humana há de ser tutelada e promovida, em última análise, nos espaços públicos e privados, daí resultando a imprescindibilidade de um controle da atividade econômica segundo os valores constitucionais, processo hermenêutico que, em definitivo, há de ser intensificado – e jamais arrefecido – com a promulgação de leis infraconstitucionais.[1]

O desafio do jurista de hoje consiste precisamente na harmonização das fontes normativas, a partir dos valores e princípios constitucionais. O Código Civil deve contribuir para tal esforço hermenêutico. Portanto, deve ser interpretado à luz da Constituição, seja em obediência às escolhas político-jurídicas do constituinte, seja em favor da proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundante do ordenamento.

Nunca é demais refletir que o Código Civil de 2002 foi concebido no final da década de 1960 e início da década de 1970, e, por essa razão, questões referentes ao direito de família, por exemplo, estão, hodiernamente, defasadas, de modo que as regras jurídicas não atingem a finalidade de proporcionar agilidade nas demandas jurídicas que possuem como pano de fundo a vida das pessoas, verdadeiros fatos sociais, premissa, inclusive, da Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda.

Concebe-se que o sistema jurídico contém regras jurídicas e essas se formulam com os conceitos jurídicos, que advém dos fatos e das relações humanas. Para saber o suporte fático é necessário estudar o que as relações apontam. Fazendo-se isso é que se exerce a “função esclarecedora, discriminativa, crítica, retocadora, da pesquisa jurídica.”[2] Marcos Bernardes de Mello, ao explicar a teoria pontesiana, aduz que o jurista clássico mostrou que suporte fático (Tatbestand) é conceito universal e não peculiar a um ou algum ramo da Ciência Jurídica (Direito Penal, onde primeiro foi tratado), além de ter criado e desenvolvido o conceito de incidência, efeito da norma jurídica que tem duas conseqüências essenciais: i) juridicizar o suporte fático, transformando-o em fato jurídico, e ii), por isso, tornar obrigatória a sua aplicação (da norma).[3]

Ademais, ressalta Mello que a teoria de Pontes distinguiu o mundo dos fatos do mundo jurídico, dividindo este último, de forma lógica, em planos da existência, da validade e da eficácia, mostrando, daí, que existir, valer e ser eficaz são três situações distintas em que se pode encontrar os fatos jurídicos, revelando a relação fundamental entre a norma jurídica que define o mundo jurídico, o fato jurídico, que o compõe, e a eficácia jurídica, que o integra.

Justifica-se, dessa forma, que a inexpressiva eficácia de direitos fundamentais decorre do despreparo dos juristas para enfrentarem, corajosamente, as causas apresentadas ao Direito na modernidade. O problema, e aqui, valendo-se da lição de Warat, é que, no trabalho jurídico, os diversos profissionais são influenciados por um senso comum teórico, um pano de fundo que condiciona todas as atividades cotidianas. Sem ele, não pode existir práticas jurídicas, isto é, não se tem como produzir decisões ou significados socialmente legitimáveis.[4]

Nesse diapasão, como ensina Streck negar a possibilidade de que possa existir uma resposta correta pode vir a se constituir em uma profissão de fé no positivismo, e, portanto, na discricionariedade judicial. Corre-se o risco de conceder ao juiz uma excessiva discricionariedade, um excesso de liberdade na produção de sentidos, acreditando que o direito é apenas um conjunto de normas e não norma, fato e direito.[5] De forma mais poética, como refere Warat, essa repetição do passado impede receber os sinais do novo, determina a morte do pensamento, do sentimento e da ação. Repetir o passado é uma forma de esgotar o presente, de desestimar a sua força criativa, de introduzir uma pulsão destrutiva: uma forma de instalar a apatia e o cinismo como condições da transmodernidade. Um eterno presente de sobrevivências e um futuro indecifrável.[6]


Notas e Referências:

[1] TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e Direito Civil. IN: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004.p.174.

[2] MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte geral. 4. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983. Tomo I. p.X-XI

[3] MELLO, Marcos Bernardes de. A genialidade de Pontes de Miranda. IN: Revista Getúlio: Revis­ta da GVlaw – Programa de Especialização e Educação Continuada da DIREITO GV. São Paulo, p. 44-48, mar. 2008.

[4] WARAT, Luiz Alberto. O senso comum teórico dos juristas. IN: JUNIOR, José Geraldo de Sousa. Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 1993. p.101.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? IN: Revista NEJ. v.15.n.1.p.158-173/jan-abr 2010. Disponível em http://www.univali.br/periodicos. Acesso em: 03 de novembro de 2016.

[6] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito III: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris editor, 1997. p.138.

MELLO, Marcos Bernardes de. A genialidade de Pontes de Miranda. IN: Revista Getúlio: Revis­ta da GVlaw – Programa de Especialização e Educação Continuada da DIREITO GV. São Paulo, p. 44-48, mar. 2008.

MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte geral. 4. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983. Tomo I.

STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? IN: Revista NEJ. v.15.n.1.p.158-173/jan-abr 2010. Disponível em http://www.univali.br/periodicos. Acesso em: 03 de novembro de 2016.

TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e Direito Civil. IN: Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, Nº 4 e Ano V, Nº 5 - 2003-2004.

WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito III: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.

WARAT, Luiz Alberto. O senso comum teórico dos juristas. IN: JUNIOR, José Geraldo de Sousa. Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 1993.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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