O passado que não se repete
Para o Professor Rodrigo Francisco de Paula[1], alguns aspectos das eleições 2018 mostraram-se surpreendentes, como, por exemplo, uma taxa de renovação dos mandatos parlamentares para o Congresso Nacional acima do esperado, com velhos políticos perdendo o pleito.
Com a proibição de doação por empresas e a criação de um super fundo eleitoral (1,7 bilhão de reais), o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), esperava-se que a verba arrecadada e distribuída para cada partido tivesse como foco as candidaturas de nomes de peso, dos “donos” dos partidos políticos. No entanto, apesar dessa previsão de fato ter ocorrido, vários candidatos conseguiram se eleger, mesmo sem o emprego de tantos recursos em suas campanhas, deixando conhecidas raposas políticas para trás na corrida eleitoral.
Outro aspecto relevante foi que o tempo de TV dos candidatos não influenciou de maneira tão decisiva as eleições, uma vez que o novo fator determinante para a difusão das campanhas eleitorais foi, de fato, o meio virtual. Essa foi a primeira eleição no Brasil em que houve uso em larga escala das redes sociais (inclusive com a disseminação escancarada de fake news), reconfigurando o espaço (público ou privado?) de discussão sobre as eleições, reduzindo a importância dos meios tradicionais de comunicação social na influência do eleitorado.
A bem da verdade, estamos diante de uma nova forma de comunicação entre as pessoas, marcada pela instantaneidade na troca de informação e pelo enorme alcance, em uma nova dinâmica espaço-temporal. Os reflexos dessa novidade para o processo democrático, embora já estejam produzindo efeitos concretos, precisam ser devidamente analisados, e exigirão um olhar atento para essa nova forma de comunicação e seu papel na formação da opinião e da vontade pública.
Como lidar com essa novidade, se as categorias tradicionais de análise teórica foram elaboradas com pressupostos que parecem ter se dissolvido? Como pensar em formação de uma opinião pública com divulgação de informações em redes sociais, em uma zona de indeterminação entre o público e o privado?
Portanto, esse “novo” precisa ser compreendido à luz dessas novas experiências, exigindo novas categorias de análise da teoria política e da teoria da democracia, pois o passado nunca se repete.
Os perversos abismos entre nós
A psicanalista Renata Conde Vescovi[2] ressaltou que a psicanálise nos lembra que, quando a relação entre os semelhantes deixa de ser mediada pela palavra, e o sujeito perde sua margem de liberdade para dizer, seja no privado das relações familiares ou na esfera coletiva estamos diante do totalitarismo do Outro, que não se submete a Lei civilizatória e interdita para todos, o “tudo é possível”. O Outro, lugar de alteridade, pode assumir a face autoritária nas relações familiares, e, no laço social. Ele é a expressão da cultura, da política a cada tempo da história; referencias que podem vir impregnadas por discursos violentos, de intolerância e controle de ideias, transmitidos por governos igualmente autoritários e que apostam no “dividir para governar”.
As contribuições de Sigmund Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”, um texto de 1923, contemporâneo para o que vivemos hoje na história de nosso país, também lançou luz ao debate. Freud, nos permitiu refletir sobre o que leva a massa, diante de seu desamparo psíquico e da miséria social e econômica em que se encontram a produzirem líderes autoritários: “Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e sabe de sua enorme força, ela é ao mesmo tempo intolerante e crente na autoridade. Respeita a força e deixa-se influenciar moderadamente pela bondade (…)”. “(…) o que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer seus senhores. No fundo, inteiramente conservadora, tem aversão aos avanços e inovações e ilimitada reverencia pela tradição”. (Sigmund Freud).
Apesar do Outro
Segundo o Professor Antônio Leal de Oliveira[3], Apesar de muitos depositarem no candidato Jair Bolsonaro (PSL) uma esperança de “salvação” nacional, deve-se lembrar que a história política brasileira é repleta de grandes líderes que se apresentam como representantes de grupos sem voz e como a solução de nossos complexos problemas. Exemplos destes líderes são os seguintes presidentes: Getúlio Vargas, opondo-se à política de café com leite; Jânio, no discurso de varrer a corrupção; Collor, na caça aos marajás; e Lula, tido como “pai dos pobres”.
Partindo de uma visão benjaminiana, a lógica bolsonarista representa o excesso, de maneira que a figura do presidenciável e suas ideias consistem na externalização dos anseios de vingança frente a determinado(s) inimigo(s). Anseios esses há muito tempo presentes no ideário brasileiro, mas com a enorme insatisfação perante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e o surgimento da figura política Jair Bolsonaro, agora encontraram a sua representação.
Então, a insatisfação com os últimos governos fez com que, sob a óptica de Carl Schmitt, as pessoas decidissem a sua postura política e o seu voto baseadas no “apesar de”. Isso significa que fecham os olhos às contradições e às problemáticas de seu candidato porque o mero fato de ser a alternativa a algo que abominam se torna suficiente. A partir disso, tudo se torna válido e possível.
Imersos nesta atmosfera de extremos e intolerâncias, perdemos a empatia e a alteridade. Ou seja, a noção trabalhada pelo filósofo francês Emmanuel Levinas de “responsabilidade infinita pelo rosto do Outro”, que remete à capacidade dos indivíduos em enxergar o sofrimento alheio e se engajar para superá-lo, tornou-se uma ficção entre os brasileiros. Sendo assim, esses sujeitos que optam pelo “apesar de” encontram-se incapazes de se sensibilizar frente aos retrocessos que poderão atingir as minorias. Essas que deverão“sucumbir à vontade da maioria”.
Por fim, Antônio Leal questiona: “Quais os ganhos da democracia para as massas?” Se não respondermos isso, falaremos apenas aos nossos pares, e o “apesar de” vingará.
A morte de pilares do regime democrático
Acatando a sugestão do professor Nelson Camatta Moreira de que experiências pessoais fossem compartilhadas, a psicanalista Vera Saleme Colnago[4] relatou um aprendizado oriundo de sua participação no movimento estudantil. Contou que ela e os outros líderes deste movimento só conseguiam mobilizar os estudantes quando tratavam de questões bem presentes na vida cotidiana deles (como a redução do preço do RU), e nunca quando abordavam questões profundas e de extrema relevância para a coletividade, à exemplo da melhora na educação. Nesse sentido, quando o candidato Jair Bolsonaro (PSL) ressalta valores como “Deus, Família e Brasil” – apelando às crenças religiosas, morais e ao nacionalismo dos brasileiros-, ele consegue mobilizar a população. Dessa forma, o apoio político recebido por este candidato independe de que ele exponha propostas concretas para melhorar problemas estruturais do País.
Além disso, Vera Saleme, à luz da obra Psicologia das Massas (1921), de Sigmuntd Freud, analisa como Jair Bolsonaro representa um “ideal do ego”. Isso significa que esse candidato encarna os anseios das pessoas, em especial, o ódio ao Partido dos Trabalhadores (PT). Frente a isso, o que a preocupa é o radicalismo e a violência que permeia a sociedade brasileira quando o assunto é política, levando muitos a se sentirem intimidados. Quando as pessoas deixam de se expressar por medo, tem-se a morte de pilares do regime democrático.
A psicanalista também aponta para o fato de que o cenário político brasileiro insere-se em uma tendência global. Há um nítido avanço da extrema direita no mundo - Brexit, Donald Trump e Marine Le Pen são exemplos disso. Assim, há algo de estrutural que se repete, algo que se relaciona inclusive com a psique humana. Cabe a cada um de nós refletirmos, por um lado, no que consiste esse “algo” e, por outro, como nós nos portaremos frente a esta conjuntura.
Escândalos para além da corrupção
Partindo do recorte epistemológico da Constituição de 1988, que garante uma série de direitos fundamentais, sempre foi muito pertinente o lema “ditadura nunca mais”, devido ao trauma sofrido pelo país em décadas anteriores. No entanto, segundo o Professor Nelson Camatta Moreira[5], há muito tempo não se via um discurso “pró-ditadura” tão latente como nas eleições de 2018.
Dessa forma, a ascensão do apoio a essa forma de discurso tem a ver, em parte, com os vários escândalos de corrupção expostos e investigados durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Esses escândalos desencadearam um sentimento de asco muito grande na sociedade em relação ao referido partido. Assim, as pessoas tem comungado com muitos discursos que vão de encontro a direitos fundamentais com a justificativa de que se dever resolver primeiro o “maior” problema do país: a corrupção. Afinal, a linguagem de Jair Bolsonaro (PSL) toca o cotidiano dos brasileiros: o caos na segurança pública e os escândalos de corrupção difundidos pelas grandes mídias.
Diante disso, é possível dizer que o combate à corrupção é uma luta necessária, porém, nessas eleições, tal discurso tem sido utilizado como bode expiatório. No poema de Baudelaire “Os Olhos dos Pobres”, é refletida a repulsa que alguns setores da sociedade possuem em relação aos pobres. Sendo assim, estaria o discurso do combate à corrupção mascarando o preconceito e descaso da sociedade em relação àqueles que são produto da enorme desigualdade social brasileira?
Nesse sentido, Nelson Camatta Moreira cita uma das mais emblemáticas frases de Nelson Rodrigues: “o subdesenvolvimento não é improviso, mas sim um longo projeto.”
Um caminho de trevas e luz a se trilhar
Não obstante as angústias que o atual momento político brasileiro desperta, o Professor João Gualberto Vasconcelos[6] expressou que, na sua perspectiva, não estamos necessariamente passando por um “caminho de trevas”.
O que existe hoje na forma como os brasileiros votaram nas eleições de 2018 é um fenômeno de sociedade. Jair Bolsonaro é apenas a expressão momentânea de um mal estar que é mais amplo, mais geral. Nosso sistema político vem dando sinais de exaustão há mais de uma década. O parlamento posterga uma reforma política há longos anos. O eleitor cansou e resolveu fazer ele mesmo o movimento que as elites negaram. Precisamos tentar elucidar o movimento para agir nele.
Não temos direito de ser ingênuos e pretender aplicar as matrizes teóricas nascidos no mundo europeu. Há que se fazer o que o sociólogo Guerreiro Ramos enunciava desde os anos 1960: a redução sociológica. Não podemos ser eurocêntricos. Há uma dinâmica na sociedade brasileira que vem desde dos movimentos de rua de 2013, passando pelo pato da Fiesp, o impeachment de Dilma e o apoio popular a Bolsonaro em níveis impensáveis há apenas alguns meses atrás. Temos que avançar na compreensão do Brasil.
Os eleitores de Bolsonaro não são todos de extrema direita. Existem diferentes camadas internas entre eles. O tal mito é mito para alguns não para todos. O apoio a medidas extremas pode desaparecer nos primeiros meses de governo e o possível presidente operar no vazio e instalar-se uma crise ainda maior do que a atual. O futuro desse movimento depende agora dos gestos das lideranças. Se ameaçarem o que a massa dos brasileiros achar razoável, instala-se novamente uma imobilização dos processos decisórios nacionais.
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