Um debate atual: os princípios da obrigatoriedade e da oportunidade do exercício da ação penal pública. Propostas para disciplinar a discricionariedade do Ministério Público, caso seja adotado o princípio da oportunidade - Por Afrânio Silva Jardim

20/09/2016

Novamente o chamado princípio da obrigatoriedade da ação penal pública está em risco. Vários países, ainda que de forma moderada, passaram a adotar, em seus códigos processuais, o princípio oposto, qual seja, o princípio da oportunidade.

Por outro lado, talvez pela nossa injustificada tendência de copiar tudo que vem de fora, o que incentiva um certo “modismo” de copiar legislação e doutrina estrangeiras, sem considerar as peculiaridades de nossa realidade, volta à baila o chamado princípio da oportunidade da ação penal pública.

Na verdade, busca-se outorgar ao órgão do Ministério Público a possibilidade de, por algum motivo de oportunidade ou conveniência, deixar de oferecer a sua denúncia, mesmo quando presentes todas as condições para o exercício da ação penal.

Assumindo o risco de sermos rotulados de conservadores, vamos aqui, mais uma vez, ainda que de forma breve, criticar esta proposta de “revolução” de nosso sistema processual penal. Em verdade, tem-se como pano de fundo a indesejada importação do chamado “sistema adversarial”, próprio dos países onde predomina uma visão liberal e individualista do direito, próprio da “comon law”.

Tenho combatido sistematicamente este grande equívoco, que expõe o Ministério Público a severas críticas, algumas fundadas, outras não. Todo poder discricionário é “perigoso” no âmbito do Direito Público, mormente se estamos cuidando do sistema penal...

Lógico que temos de melhorar e ampliar o nosso sistema acusatório. Entretanto, devemos fazê-lo sem postergar valores muito caros ao sistema da “civil law”, como a legalidade, segurança jurídica, impessoalidade da atividade pública, isonomia perante o direito, etc.

Por tudo isso, venho sustentando, desde a minha tese de livre-docência, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no distante ano de 1988, (Ação Penal Pública, Princípio da Obrigatoriedade), que não devemos abrir exceções a este princípio da legalidade, pois isso importaria em dar ao membro do Ministério Público o poder discricionário de denunciar ou não este ou aquele crime, este ou aquele indiciado.

Trata-se de colocar o Promotor ou Procurador da República como titular exclusivo de se aplicar ou não a lei penal, que é de natureza pública. Vale dizer, dar-lhe o poder de discernir se está ou não presente o interesse público. O legislador incrimina determinada conduta como penalmente típica e o Ministério Público lhe vira as costas e diz que tal conduta não tem relevância social...

O princípio da oportunidade não é nada democrático, por isso a Constituição da Itália expressamente obriga o exercício da ação penal, presentes as condições que a lei exige para tal.

Na época do fascismo, muitas vezes, o Ministério Público da Itália acusava quem fosse do interesse do governo autoritário ou deixava de fazê-lo para atender escopos políticos.

Embora estejamos caminhando para uma democratização de nossa sociedade, não podemos esquecer que a realidade do nosso país é bem diversa da de outros países.

Ademais, não podemos pensar apenas nos grandes centros mais desenvolvidos. Temos de perceber que, no interior do país, as coisas são bem diversas. Imaginem se o fazendeiro de longínqua área rural, por onde tem que passar o Promotor de Justiça, em seu carro, para chegar ao fórum, souber que este Promotor pode ou não denunciar o capataz de sua fazenda ... O princípio da obrigatoriedade funciona, nesta medida, também como uma “defesa” da atuação do membro do Ministério Público.

Caberia, ainda, outros questionamentos: 1) qual o critério a ser adotado pelo legislador para permitir uma acusação facultativa? 2) qual o critério a ser adotado pelo órgão do Ministério Público para exercer tal discricionariedade? Poder demasiado não fortalece a Instituição, mas a fragiliza perante a opinião pública.

O Direito Penal é que tem de resolver a questão, descriminalizando inúmeras infrações penais sem relevância social (princípio da intervenção mínima do Direito Penal). Por outro lado, o princípio da insignificância já legitima o não oferecimento da denúncia, tendo em vista a atipicidade da conduta, por ausência de bem jurídico a ser tutelado.

Talvez poderíamos pensar em ampliar as hipóteses da ação penal pública condicionada à representação do ofendido, mormente quando o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora for um bem disponível, lógico que nas hipóteses de crime sem violência ou grave ameaça à pessoa.

O argumento de que a polícia e até alguns órgãos do Ministério Público já não obedecem, na prática, ao nosso sistema processual não tem qualquer respaldo lógico. Seria o mesmo que revogar o artigo 121 do Cod. Penal, porque os homicídios continuam sendo praticados... Aliás, se com a regra da obrigatoriedade, já se criticam tais omissões, imaginem sem ela...

Vale a repetição: vamos parar de modismos, de imitar o sistema norte-americano, onde tudo é diferente, seja na cultura, seja na organização do Ministério Público, seja na estrutura do Poder Judiciário. Lá, noventa por cento dos casos não são levados a juízo, em razão de questionáveis e suspeitos acordos entre o Ministério Público e investigados. Tais acordos são feitos com base na “prova” inquisitória, colhida pela polícia. O chamado sistema adversarial somente se faz sentir para muitos poucos casos. Lá também existe a “lei do menor esforço”...

Isto já ocorre, entre nós, em muitas comarcas, nas hipóteses de transação penal, nas infrações de menor potencial ofensivo, inclusive, na ausência da necessária defesa técnica.

Como dissemos em outro texto, o perigo de tudo isto é que, como a realidade demonstra, após se “arrombar a porteira”, tudo o mais pode passar...

Entretanto, atento ao princípio da eventualidade, propomos algumas normas ou critérios para disciplinar a indesejada adoção do princípio da oportunidade, que outorga ao membro do Ministério Público o juízo de oportunidade e conveniência de oferecer ou não a sua denúncia. Vamos deixar a “porteira” entreaberta...

Vamos a tais sugestões:

1 – O princípio da oportunidade somente seria adotado em face das infrações penais de menor potencial ofensivo.

A transação penal prevista na lei n.9099/95 importa em aplicação de pena e pressupõe uma acusação oral pelo Ministério Público, como vimos sustentando de longa data. Na situação sugerida, o termo circunstanciado seria arquivado, sem a proposta ou qualquer sanção ou restrição legal para o chamado autor do fato.

2 – Não sendo aceita a proposta restritiva acima, sugerimos que o princípio da oportunidade seja cabível apenas para os crimes em que a supra referida lei permite a suspensão condicional do processo, vale dizer, cujas penas mínimas não sejam superior a um ano de prisão.

Aqui, seria maior a abrangência do princípio da oportunidade. Entretanto, se, na suspensão condicional do processo, já temos uma exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, seria razoável ampliar esta disponibilidade para o próprio exercício desta ação penal pública.

3 – Deveria o Ministério Público manifestar, em juízo, o seu desejo de não exercer o direito de ação, por isso que decide pelo arquivamento do inquérito ou demais peças de informação. Isto para dar total transparência à conduta omissiva do membro do Ministério Público.

Tal manifestação deveria ser amplamente fundamentada, justificando a não formulação da sua acusação, embora tecnicamente cabível.

Ao juízo, caberia aplicar a atual regra do artigo 28 do Cod. Proc. Penal ou do art. 62 da Lei Complementar 75/93 (Min. Público Federal), nas seguintes hipóteses:

a) caso não seja legalmente cabível a aplicação do princípio da oportunidade; b) discordando da motivação apresentada, para que o órgão superior do Ministério Público dê a última palavra sobre o exercício ou não da ação penal pública, como é próprio do sistema acusatório, formulando uma verdadeira “política criminal” para a instituição.

Lógico que não teria ela efeito vinculativo, tendo em vista o princípio da independência funcional dos membros do Ministério Público. Entretanto, seria uma forma saudável de explicitar uma orientação do Parquet, tudo em nome da segurança jurídica.

c) Nestas hipóteses supra, caso a denúncia venha a ser oferecida, consoante parte final do citado art. 28 do Cod. Proc. Penal ou do art. 62, inc. IV da Lei Complementar 75/93 (Min. Público Federal), o juiz estará absolutamente impedido para desempenhar sua atividade jurisdicional, devendo os autos ser encaminhados ao seu substituto legal, em nada alterando a competência do juízo. d) Concordando o juiz com o não oferecimento da denúncia, deve o ofendido ser intimado para, querendo, postular a remessa dos autos ao Procurador Geral ou Câmara de Coordenação e Revisão (Min. Público Federal), por simples petição assinada por ele ou algum representante constituído com poderes específicos, no prazo de 15 dias.

Cabe ressaltar que aqui não se cuida da complicada e rara ação penal privada subsidiária, mas de simples e informal manifestação de vontade da vítima ou de seus sucessores legais, (caso falecida ou juridicamente ausente). Nesta última hipótese, a intimação seria feita por edital, com prazo de 30 dias).

Trata-se de mais um mecanismo legal de fiscalizar o poder discricionário do órgão de atuação do Ministério Público. De qualquer forma, também aqui, a palavra final pertencerá ao órgão superior do Parquet, como é próprio do sistema acusatório.

Como dissemos acima, pode ser que a “porteira” do nosso atual sistema venha a ser aberta, mas com certa parcimônia, a fim de que a vontade das partes processuais não se sobreponham ao que está disposto na lei penal.

 

Rio de Janeiro, setembro de 2016


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