A pergunta estava no Depósito de Tirinhas: “Amanhã é um dia a menos, ou um dia a mais na sua vida?” É uma boa pergunta. É sobre o meu tempo no mundo. A mim me parece que há uma única resposta capaz de atender à concretude do transcorrer da minha existência: amanhã é um dia a menos na minha vida; amanhã é um dia a mais para eu viver.
Vida é prazer e intensidade. E é significado. Eu me significo quando meço a apreciação em que me tenho: sendo quem sou, o que mereço dos outros e de mim mesmo? Sinto prazer se agrado minhas emoções, se atendo meu gosto. Sou intenso na medida em que me relaciono com categoria: quem me venha, que me seja grande; eu que não me vá pequeno a ninguém.
Mas, atenção: tudo com mundanidade, nada de gente que vive em abstração. Não vale quem se tem como espírito iluminado, escolhido para ser evoluído e outros eufemismos narcísicos com que muita gente adorna o próprio (carente) ego. Falo de quem não se basta, de quem precisa de afetos. Enfim, cuido de quem se abre ao mundo e tenta abrir o mundo a si.
Vida é tempo, e tempo tem futuro. Então, que se construa um futuro interessante e com alguma felicidade. Felicidade terrenha, só. Sobretudo, que não se sofra a tristeza de um futuro que não se soube ter. Assuntava sobre essas coisas, intrigado com o que ouvi, há algum tempo, em uma peça de teatro: alguém lá propôs que não se fizessem planos para o passado.
Claro, eu bem sei: o passado compõe a minha vida; o passado não passa, fica sempre em mim. Na contramão do dito popular, tenho dito: “na vida, só as águas passadas movem moinhos”. A despeito disso, tenho que seguir: eu e o meu passado, no presente, temos todo um futuro para fazer acontecer. Se não contribuo no acontecimento, ele acontece à minha revelia.
Pour Elise, um amor inesquecível, é um musical de Flávio de Souza e Claudio Goldman, dirigido por Pamela Duncan, teatro Folha, 2005: “Varsóvia, 1938. Em uma festa de classe social abastada, o pianista judeu Sbig se apaixona pela bela cantora Elise, casada com um líder da resistência antinazista. O amor acaba quando explode a Segunda Guerra Mundial e Elise embarca com seu marido para o Brasil. Anos depois, Sbig e Elise se reencontram no país tropical e retomam o romance” (prospecto, apresentação).
Tudo no enredo é sensível, divertido, afetivo, mas tudo trata da vida bruta, da gravidade dos acontecimentos, da fria incidência do aleatório nos nossos caminhos. Elise é socialmente sofisticada, mas pessoalmente cafajeste. Já na lua de mel “engana-se” de trem e vai ao encontro marcado com Sbig. Sbig é um apaixonado ingênuo que sabe calcular: está com Elise quando é possível; quando o dever a chama ao marido, põe-se de espera, como um bom “amante”.
Os autores afirmam que “o amor acaba quando explode a Segunda Guerra Mundial”. Discordo. Trata-se de um amor ardente, mas que sabe ser sensato. As afeições se interrompem sempre que o império dos fatos pede. Os amantes, porém, não se deixam vencer, resistem a desertar de sua paixão. Ela lembra dele enquanto cumpre os protocolos esponsais. Ele faz do seu desejo um amor buscado, e busca pela mulher até por ela ser encontrado. Embora esse amor tenha tanto de candente quanto de prático, em tudo é um amor de querer eternizar-se.
A representação teatral é angústia humorada quando, diante do futuro, o casal não pode determiná-lo para si próprio, e é humor angustiado quando os amantes se põem ingênuos ou cínicos para levar a vida como ela é. É o impreciso da condição humana tratado com gravidade e graça. O futuro tem seus caprichos: aceita ser planejado; não se compromete a cumprir plano algum.
O motivo do texto é o amor. Não o piegas. O dos sobreviventes, como somos todos no mundo, ainda que alguns jamais compreendam essa nossa condição. Amor sem controles, durado nas incertezas: “Quem quer amar vai ter que arriscar, vale a pena”, diz um personagem. Amanhã o dia é meu. Como na peça, não sei as surpresas que o meu dia tem. Desejo que tenha amores; decerto terá dores. É a vida. Hei de vivê-la bem assim mesmo como ela é.
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