TRIBUNAL DO JÚRI E A DISCUSSÃO SOBRE A LEGALIDADE DA PESQUISA À VIDA PRIVADA DOS JURADOS

25/09/2024

1. INTRODUÇÃO

Em 2013, a Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul, no artigo intitulado Ministério Público e a vida privada dos jurados, já havia denunciado que o Ministério Público vasculhava a vida dos jurados através do Sistema de Segurança Pública a que possuem acesso, buscando analisar as tendências de julgamento.

No âmbito do Tribunal do Júri, as sondagens e monitoramentos ocorrem na vida privada dos jurados que, quanto mais participam da vida em rede e têm seus dados pessoais inscritos em sistemas, mais ficam expostos às sondagens. Esses monitoramentos são frutos de uma Sociedade de Controle. De acordo com Passetti (2003) a Sociedade de Controle surge sem suprimir totalmente a Sociedade Disciplinar apontada por Michel Foucault. Nessa Sociedade de Controle, a participação contínua energiza o controle contínuo, por meio das redes e seus diversos monitoramentos e sondagens.

A liberdade de manifestação é também uma condição de possibilidade para os sistemas exerceram o controle “[...] se os presos do panóptico de Bentham têm ciência de estarem sendo observados por um vigia, ilusoriamente os habitantes do panóptico digital imaginam estar em total liberdade” (HAN, 2017, p. 107).  O Ministério Público tem demonstrado estar atento e interessado nesses controles e nessas possibilidades de investigar cada centímetro da vida pessoal de cada um dos membros que compõem o Conselho de Sentença, observando suas condições sociais e inclinações ideológicas.

 

2. DESENVOLVIMENTO

No Brasil, o Tribunal do Júri surgiu em 1822, cerca de dois anos antes da primeira Constituição Federal Brasileira, através do Decreto de 18 de junho de 1822. Naquela época, apenas crimes de abuso de liberdade de imprensa eram apreciados pelo Tribunal do Júri (BRASIL, 1822). Os jurados eram escolhidos pelo juiz e deveriam atender as seguintes exigências: “homens bons, honrados, inteligentes e patriotas” (BRASIL, 1822).

A história do Tribunal do Júri no Brasil é marcada pelo protagonismo (na época, pelo exclusivismo) da participação masculina, remontando à própria história de negação de voz às mulheres no Direito, a exemplo do Código Civil Brasileiro de 1916, que tratava de forma discriminatória as mulheres, afirmando que “todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil” (BRASIL, 1916, art. 2º). Naquele momento, as mulheres casadas compunham o rol dos relativamente incapazes, previsto no art. 6, inciso II, sendo anuláveis os atos que elas praticassem sem a autorização do marido. A história do Direito é também a história do patriarcado e a história de diversas proibições e silenciamentos das mulheres.

Outra marca da construção do Direito é a ausência de objetividade e o poder de criação e designação explorados por Bourdieu (2021), que abrem precedentes para o arbítrio, como em relação à exigência de ser um homem bom, honrado e patriota, sem que se tenha parâmetros para aferir o que significam estas determinações. Embora o Direito trate disso como se fosse algo “óbvio”, ao mesmo tempo em que ele considera a linguagem transparente, faz os ajustes necessários conforme convém aos poderes estabelecidos, sejam eles políticos ou econômicos. Como se pode perceber, há determinações ideológico-conjunturais que pesam sobre os que podem ou não fazer parte do Tribunal do Júri, restrições estas que são definidas à luz de conjunturas históricas e morais, abrangentes das condições de produção e da historicidade.

Em 28/11/1832, foi promulgado o Código de Processo Criminal (BRASIL, 1832), aumentando a competência do Tribunal do Júri, que passou a julgar grande parte dos crimes.

O art. 23 definiu quem eram as pessoas aptas a serem jurados, bem como, as pessoas que deveriam ser excluídas:

São aptos para serem jurados todos os cidadãos, que podem ser Eleitores, sendo de reconhecido bom senso e probidade. Excetuam-se os Senadores, Deputados, Conselheiros, e Ministros de Estado, Bispos, Magistrados, Oficiais de Justiça, Juízes Eclesiásticos, Vigários, Presidentes, e Secretários dos Governos das Províncias, Comandantes das Armas, e dos Corpos da 1ª linha. (BRASIL, 1832, art. 23).

Paulo Rangel (2018) afirma que a Carta Magna do Rei João Sem-terra, escrita em 1212, determinou que as pessoas fossem julgadas perante seus pares. E nesse contexto, de acordo com Rangel (2018, p. 45), o Tribunal do Júri nasce com o objetivo de “retirar das mãos do déspota o poder de decidir contrário aos interesses da sociedade da época”. Não há consenso na doutrina sobre a origem do Tribunal do Júri, entretanto, Paulo Rangel (2018, p. 45) pontua que foi na Inglaterra que “o Júri ganhou as feições que se conhecem hoje”. 

Afirma também que:

Da Inglaterra, após o ano de 1215, com a edição da Magna Carta do Rei João Sem-Terra, o júri se espalhou pela Europa, Suíça, Suécia, România, Grécia, Rússia e Portugal e também para os Estados Unidos, ganhando feições mais modernas, sendo que cada país adotou um modelo de Júri [...]. (RANGEL, 2018, p. 44).

É preciso observar que algumas categorias são dispensadas de exercer a função de jurado (como é o caso de Magistrados, Ministros, Deputados etc.), em razão de ser incompatível com um dos pilares do júri (presente na Carta Magna), que é ser julgado perante os seus pares, ou seja, ser julgado por um “cidadão comum”.

Entretanto, não se olvida que essa exclusão dos “não aptos”, nunca foi garantia de julgamento perante os pares, principalmente, considerando as distâncias sociais e econômicas entre jurados e réus, sobretudo nas especificidades brasileiras, como sustenta Zaffaroni (2012), na periferia do poder, onde a assimetria interna e externa são grandes (no âmbito nacional e no contexto internacional frente à rede de poder planetária), tratando-se de uma posição na qual, historicamente, a promessa de julgamento perante os próprios pares nutre efeitos de sentido incompatíveis com o real.

Percebe-se que o Tribunal do Júri é composto por meio de uma seleção que leva em conta quem são as pessoas que farão parte dele e a que critérios devem atender: elas não podem ser qualquer um.

Paulo Rangel (2018) explica que existia na época o grande júri (grand jury) e o pequeno júri (petty jury); o primeiro era composto por 23 jurados e o segundo por 12, sendo permitido que os jurados debatessem a decisão a ser tomada, e funcionava da seguinte forma:

O primeiro, com debates entre os jurados, decidia se procedia a acusação contra o réu. Se os jurados respondessem que afirmativamente, o réu seria submetido a julgamento perante o pequeno Júri. Do contrário, o juiz julgava improcedente a denúncia ou queixa. (RANGEL, 2018, p. 63).

Em 05/01/1938, por meio do decreto nº 167/1938, o Conselho de Sentença do Tribunal do Júri passou a ser composto por sete jurados (BRASIL, 1938, art. 2º), sendo requisito para ser jurado: “Art. 7º Os jurados devem ser escolhidos dentre os cidadãos que, por suas condições, ofereçam garantias de firmeza, probidade e inteligência no desempenho da função” (BRASIL, 1938, art. 7º).

A partir desse momento, foi determinada a incomunicabilidade dos jurados (BRASIL, 1938, art. 52 §1º), ou seja, a Lei determinou que eles não poderiam se comunicar com terceiros durante o júri e não poderiam emitir sua opinião sobre o processo.

Na história do Tribunal do Júri no Brasil, foram realizados diversos ajustes no sentido de aprimorar o instituto, buscando aproximar-se cada vez mais do que se entende por justiça, mas dentro dos efeitos de evidência explicados por Pêcheux (2014) acerca do funcionamento ideológico. O art. 7º acima, por exemplo, afirma que os jurados devem oferecer garantia de firmeza, não ficando claro, contudo, o que seria essa firmeza, ou mesmo como se oferece esse tipo de garantia. Como também não são claros os parâmetros para se aferir probidade e tampouco inteligência.

Contudo, ser jurado é ser convocado (recrutado) para servir ao Estado, e servir ao Estado nesse contexto de julgador temporário mobilizado, envolve a expectativa majoritária de não contrariar a ideologia dominante, de não questionar os poderes estabelecidos, não causar ruídos na ordem das coisas, contribuindo para a reprodução das violências sociais. O jurado é tangenciado por expectativas sociais dominantes e uma memória discursiva do que significa julgar e estar apto para tanto.

Quando o jurado adentra no jogo processual, pisa em território em que as regras estão determinadas por quem o convocou; ademais, o processo existe e está em determinada etapa por iniciativa e impulso de quem o convocou, sendo a condenação o prevalentemente esperado, até para que se legitime o trabalho feito pelo Estado, cuja ideologia dominante é determinada por relações econômicas fixadas previamente. O dispositivo crime envolve a proteção estrutural dos pilares da formação social e econômica, a manutenção da propriedade privada e da exploração sem tocar na assimetria material, reproduzindo as relações de produção. Enfim, trata-se de um funcionamento que não é neutro.

Em 03/12/1841, ocorreu a reforma do Código de Processo Penal Brasileiro (BRASIL, 1841a), de modo que a partir daquele momento deixou de existir o grande júri (grand Júri).

Com isso, saiu do controle “popular” o poder de decidir sobre quem iria ou não para o pequeno júri. A decisão de pronúncia passou para o poder de decisão dos juízes municipais. A pronúncia também poderia ser feita por delegados e subdelegados, mas necessitavam de confirmação por parte do juiz municipal (BRASIL, 1841a). Com essa reforma, foram novamente renovados os critérios para ser jurado, que passaram a ser:

Art. 27. São aptos para Jurados os cidadãos que puderem ser Eleitores[1], com a excepção dos declarados no art. 23 do Código do Processo Criminal, e os Clérigos de Ordens Sacras, com tanto que esses cidadãos saibam ler e escrever, e tenham de rendimento anual por bens de raiz, ou Emprego Público, quatrocentos mil reis, nos Termos das Cidades do Rio de Janeiro, Bahia, Recife e S. Luiz do Maranhão: trezentos mil réis nos Termos das outras Cidades do Império; e duzentos em todos os mais Termos. Quando o rendimento provier do comércio ou indústria, deverão ter o duplo. (BRASIL, 1841a, art. 27).

O Direito, desde seu nascimento, busca preservar a propriedade privada; logo, os aptos a participarem da justiça na época deveriam ter o “mínimo” de capital a justificar sua entrada. Ter poder econômico aparece como garantia de ser um “bom cidadão”. Destaca-se que naquela época:

Se a pessoa podia ser jurada, ela podia ser eleitora; se ela era eleitora, ela poderia ser jurada. Nasce aí a distância entre os jurados e os réus. Os réus nem sempre eram eleitores, mas pessoas das camadas mais baixas da sociedade, muitas daqueles que depois se passaria a chamar de excluídos ou, na linguagem de Dussel, as vítimas. Logo, integrar o júri era algo possível apenas para determinada classe social, fazendo falecer de legitimidade a formação do conselho de sentença. (RANGEL, 2018, p. 63).

A competência para elaborar a lista anual de jurados era do Delegado de Polícia (BRASIL, 1841b, art. 28) e o julgamento deveria atender as seguintes quotas:

Art. 66. A decisão do Jury para a aplicação da pena de morte será vencida por duas terças partes de votos, todas as mais decisões sobre as questões propostas serão por maioria absoluta; e no caso do empate se adoptará a opinião mais favorável ao acusado (BRASIL, 1841b, art. 66).

Em 1941, foi promulgado o atual Código de Processo Penal Brasileiro (BRASIL, 1941) e, em 09/06/2008, foi promulgada a Lei 11.689/2008 (BRASIL, 2008), que, por meio do art. 466 §§ 1º e 2º, acrescentou que a comunicação dos jurados, além de ser proibida com outrem, era proibida entre si. É dizer, a partir de então, os jurados não puderam mais debater entre eles a decisão a ser tomada.

No Código de Processo Penal atual, a competência de julgamento do Tribunal do Júri no Brasil é definida pelo art. 74, §1º[2] do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) e sua existência é garantida pela Constituição Federal em seu, art. 5º, inciso XXXVIII[3].

A decisão de pronúncia[4] do Réu fica a cargo do juiz togado, sendo que, quando uma pessoa é pronunciada, é submetida ao júri.

O Tribunal do Júri é composto por um juiz togado (presidente), 25 jurados que serão intimados a comparecer, sendo que, comparecendo, no mínimo 15, 7 são sorteados para compor o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento (BRASIL, 1941, art. 447 e 463). A acusação e a defesa podem exercer a recusa imotivada de jurados por até três vezes (art. 468). Antes do sorteio, o juiz presidente deve advertir aos jurados que, após o sorteio, não poderão se comunicar entre si e com as demais pessoas, sendo vedado que manifestem opinião sobre o processo.

Após isso e feito o juramento previsto no art. 472[5] (BRASIL, 1941), os jurados recebem cópia da decisão de pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram possível a acusação, bem como recebem o relatório do processo (BRASIL, 194, art. 472, parágrafo único).

Os debates são organizados da seguinte forma: é concedido o tempo de uma hora e meia para que a acusação inicie e após isso é concedida a palavra à defesa por igual tempo. Findo, havendo interesse em réplica, acusação e defesa têm mais uma hora, respectivamente, para a utilizarem (BRASIL, 1941, arts. 476 e 477).

Após os debates entres acusação e defesa, os jurados votarão, por meio de questionário, se o Réu deve ser absolvido, sendo que os quesitos devem respeitar a ordem do art. 483[6] (BRASIL, 1941). O voto é sigiloso (BRASIL, 1941, art. 487) e a decisão do júri é soberana, podendo apenas ser desconstituída nas hipóteses do art. 593, inciso III[7], do Código de Processo Penal.

Cabe enfatizar, porque este é um ponto fulcral deste trabalho, que se deve perceber que, a cada revisão feita da forma de o Tribunal do Júri ser composto, ingredientes que ultrapassam a observação do crime propriamente dito e vão buscar outros elementos de seleção assombram os ditames a serem observados.

Gênero, profissão e poder econômico aparecem neste contexto sob a justificativa de que se deve buscar uma determinada competência para fazer justiça, lançando sombras sobre um fator que fica ocultado, impedindo que se veja que o Direito e a Justiça são exercidos de forma enviesada e forçada por uma maneira de olhar que não é nem universal nem atemporal, mas que está profundamente enraizada em determinadas condições de produção sócio-ideológicas sobretudo, econômicas.

Em 2013, a Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul, no artigo intitulado Ministério Público e a vida privada dos jurados, denunciou que o Ministério Público vasculhava a vida dos jurados através do Sistema de Segurança Pública a que possuem acesso, buscando analisar as tendências de julgamento.

O Direito e as instituições jurídicas historicamente buscam se associar à imagem de justiça, observando que o Direito também pode ser palco do absurdo e espelho da irracionalidade (WARAT, 2004, p. 95) e o Ministério Público está distante de ser neutro, até porque inexiste neutralidade em qualquer relação.

O plenário do júri é um “templo” de símbolos e rituais, em que o dito e o não-dito ordenam o jogo de poder. Orlandi (2004, p. 40) afirma que “nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na ‘comunicação’”.

A legalidade sobre a pesquisa à vida privada dos jurados, o que já é um sintoma de que algo vai por caminhos indevidos, dado que é posto sob suspeição, foi objeto de análise de alguns julgados, como os expostos a seguir.

Em 14/10/2013, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul julgou o Agravo Regimental nº 70056759152. O agravo foi interposto após denegação do Habeas Corpus. Foi alegado, pela defesa, que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul estaria usando, indevidamente, o acesso ao Sistema de Segurança Pública para colher dados privilegiados sobre os jurados, sendo que eles não eram utilizados somente para averiguar a idoneidade dos jurados, mas para realizar recusas imotivadas, conforme autoriza do artigo 468 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941); esta prática estaria ferindo o direito à ampla defesa, contraditório e paridade de armas. A defesa requereu que fosse determinada a suspensão do uso do Sistema de Consultas Integradas por parte do Ministério Público para investigar o histórico de vida dos jurados, devendo as pessoas da lista de jurados que tiveram suas vidas pesquisadas pelo Ministério Público serem excluídas e, alternativamente, requereu igual acesso aos que o Ministério Público tinha acesso.

No julgamento do Agravo Regimental, o relator desembargador Gaspar Marques Batista, afirmou (voto vencedor) que não havia ilegalidade na pesquisa, por meio dos Sistemas de Consultas Integradas, pois a “notória idoneidade” é indispensável para ser jurado.

Foi dito por ele que, na prática, os juízes apenas têm acesso aos antecedentes criminais do jurado; assim, seria justo que o Ministério Público utilizasse o sistema para fornecer maiores subsídios de informações ao magistrado. Ainda, segundo o desembargador, não caberia alegar violação dos princípios da ampla defesa, do contraditório e da paridade de armas, visto que é indispensável que o jurado tenha condições de exercer a função.

Sobre o pedido de acesso dos mesmos dados por parte também da defesa, o desembargador destacou que é “da mais absoluta justiça”. Afirmou que todos deveriam ter acesso, principalmente juízes e desembargadores, para que saibam a quem estão julgando. Entretanto, destacou que o pedido não poderia ser decidido pela via do Agravo Regimental, por isso, negou na totalidade os pedidos da defesa.

Em 18/07/2018, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul apreciou o Habeas Corpus nº 70078126703, de relatoria do desembargador Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, impetrado pelo, na época, Presidente da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul, (ACRIERGS) César Peres. O advogado afirmou, entre outras coisas, que o Ministério Público estava utilizando o Sistema de Consultas Integradas para investigar a vida dos jurados e que isso proporcionaria que o promotor moldasse ideologicamente o Conselho de Sentença para o que melhor lhe convir. Requereu acesso imediato aos dados dos jurados constantes no Sistema de Consultas Integradas.

Sobre o pedido, o relator destacou que o Sistema de Consultas Integradas não deve ser usado para consultas levianas e bisbilhoteiras e para desigualar acusação e defesa no que tange ao acesso de dados. Ademais, o Tribunal afirma que o sistema não deve ser usado para consultar a situação pessoal e histórico de vida dos jurados, porque o objetivo era ser um instrumento de políticas de segurança pública, bem como de localizar o endereço das partes e das testemunhas.

Foi dito que, constatando-se que o Sistema de Consultas Integradas é usado para finalidades não compatíveis com seu objetivo, portanto, diversas, a exemplo de violar o princípio da paridade de armas no processo penal, deveriam ser adotada medidas, entre estas de não vasculhar a vida privada dos jurados. Por isso, o pedido de acesso aos dados a que o Ministério Público tinha acesso por meio dos Sistemas de Consultas Integradas foi indeferido para a advogada impetrante do Habeas Corpus

Em 06/04/2018, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou a Revisão Criminal nº 70074667536. Entre outras coisas, a defesa alegava nulidade do julgamento, pelo Tribunal do Júri, em razão de uso, por parte do Ministério Público, de pesquisas à vida dos jurados via Sistema de Consultas Integradas. O acórdão teve relatoria da desembargadora Rosaura Marques Borba.

Na fundamentação, foi destacado que não havia ilegalidade ou abuso de poder quando o Ministério Público investiga a vida pregressa dos jurados, utilizando o Sistema de Consultas Integradas, pois, segundo ela, era o papel do Ministério Público, na função de fiscal da Lei, aferir se os jurados possuem “notória idoneidade”.

O art. 437 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) não especifica o que é “notória idoneidade”; apenas afirma que, para ser jurado, além dela, é preciso ter mais de 18 anos. Na prática, verifica-se se a pessoa responde ou já foi condenada por algum crime, sendo, nesses casos, excluída. Entretanto, se a Lei não fixa parâmetros para se aferir “notória idoneidade”, não cabe ao Ministério Público e criar critérios os quais a defesa sequer sabe quais são.

Em 04/05/2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Habeas Corpus nº 342390, com relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. A defesa pedia, entre outras coisas, a nulidade do julgamento, em virtude de o Ministério Público ter consultado a vida pregressa dos jurados e ter feito recusas.

O STJ afirmou que não havia ilegalidade, alegando que os dados constantes no Sistema de Consultas Integradas auxiliam na constatação da notória idoneidade exigida dos jurados. O STJ destacou que a autoridade coatora registrou no acórdão recorrido que não havia óbice que a Defensoria Pública firmasse convênio igual ao do Ministério Público para ter acesso aos mesmos dados.

Dito isso, o STJ afirmou que não há violação ao princípio da paridade de armas, porque a defesa não comprovou que foi privada dos dados.

Ademais, foi destacado que a defesa não apontou que informações exatamente foram obtidas pelo Ministério Público e que teriam prejudicado o Réu.

 

3. CONCLUSÃO

Destaca-se que a linguagem e as estratégias discursivas podem invocar contextos, sentimentos e influenciar diretamente nas decisões. Ao pesquisar a vida privada dos jurados, o Ministério Público tem conhecimento (ainda que parcial) do que, discursivamente, pode influenciar diretamente na decisão dos jurados, adquirindo com isso uma vantagem. Se é melhor utilizar um discurso religioso ou cético, por exemplo. Com essa estratégia o Ministério Público busca elementos na memória discursiva dos jurados, a fim de garantir determinado resultado no julgamento. Orlandi (2004, p. 31) define memória discursiva como “o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma de pré-constituído, o já-dito que está na base do dizível [...]”.  E Possenti (2005, p. 365) afirma que “a noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos”.

E analisando os julgados, conclui-se que há dificuldade de a defesa saber com exatidão quais os dados que o Ministério Público tem acesso e efetivamente usa, o que tem inviabilizada o questionamento perante os Tribunais, pois é exigido que a defesa aponte, especificamente, quais dados privilegiados a acusação tem e a defesa não, como foram usados e como houve prejuízo, o que cria uma espécie de tarefa impossível a quem não possui acesso aos dados, havendo ofensa à paridade de armas, e potencialmente, violações de privacidade contra os jurados e demais envolvidos, ao que tudo indica, estruturalmente em prejuízo dos réus e fomentando a ampliação da desigualdade processual, com disparidade entre as partes.

 

Notas e referências:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa. Edições 70, 2021.

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RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão linguística, histórica, social e jurídica. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2018.

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WARAT, Luís Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos: Conferencias de Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.

[1] De acordo com a Constituição de 1824, as regras para ser eleitor eram: “Art. 92. São excluídos de votar nas Assembleias Paroquiais. I. Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem os casados, e Oficiais Militares, que forem maiores de vinte e um anos, os Bacharéis Formados, e Clérigos de Ordens Sacras. II. Os filhos de famílias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Ofícios públicos. III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guarda livros, e primeiros caixeiros das casas de comércio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas rurais, e fabricas. IV. Os Religiosos, e quaisquer, que vivam em Comunidade claustral. V. Os que não tiverem de renda liquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos. Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos os que podem votar na Assembleia Paroquial. Excetuam-se: I. Os que não tiverem de renda liquida anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego. II. Os Libertos. III. Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa”. (BRASIL, 1824, arts. 92 e 94).

[2] “A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri. § 1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados”. (BRASIL, 1941, art. 74, §1º).

[3] “É reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de Defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. (BRASIL, 1988, 5º, inciso XXXVIII).

[4] “O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. § 1º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”.  (BRASIL, 1941, art. 413).

[5] “Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação: Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça. Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão: Assim o prometo”.  (BRASIL, 1941, art. 472).

[6] “Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela Defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 1º A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado. § 2º Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado? § 3º Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre: I – causa de diminuição de pena alegada pela Defesa; II – circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena, reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 4º Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o 2º (segundo) ou 3º (terceiro) quesito, conforme o caso. § 5º Sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito. § 6º Havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas”. (BRASIL, 1941, art. 436).

[7] “Das decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; b) for a sentença do Juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”. (BRASIL, 1941, art. 593, inciso III).

 

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