TRIBUNAL DO JÚRI. CINCO ANOS SEM A FILHA ELIETE COSTA SILVA JARDIM. CINCO ANOS PARA QUE A SUA TESE SOBRE O TRIBUNAL DO JÚRI FOSSE ACOLHIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL  

06/08/2019

Desta feita, esta minha coluna do Site Empório do Direito tem um aspecto muito peculiar. Ela é publicada com um misto de tristeza e alegria. Explico.

Tristeza, porque, neste mês de agosto, faz cinco anos que uma tragédia atingiu nossa família. A filha Eliete Costa Silva Jardim faleceu, prematuramente, deixando um casal de filhos em tenra idade.

Eliete era Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro, após disputado concurso público, no qual obteve o primeiro lugar. Antes exercia o relevante cargo de membro do Ministério Público Especial junto ao Tribunal de Contas do E.R.J., obtido também após brilhante concurso.

Por seu destaque como Defensora Pública, Eliete foi homenageada, pela respectiva Instituição, tendo a sala do seu Conselho Superior recebido o seu nome.

Pouco antes de falecer, a filha Eliete escreveu um relevante trabalho jurídico para publicação em livro organizado em minha homenagem. Após cirurgia não muito relevante, Eliete veio a morrer antes de ver publicado o seu pioneiro estudo jurídico.

Por outro lado, como disse acima, sentimos grande satisfação em ver a tese jurídica da filha Eliete, após cinco anos, acolhida integralmente pelo Supremo Tribunal Federal, através de excelente voto do Ministro Celso de Mello, que a cita expressamente, transcrevendo parte de texto de sua lavra.

Trata-se da inadmissibilidade de recurso do Ministério Público diante de absolvição pelo Tribunal do Júri que acolhe o quesito obrigatório e genérico, introduzido no Código de Processo Penal por reforma recente (art. 483, III, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008). Como ser a decisão manifestamente contrária à prova dos autos se não se sabe o motivo da absolvição ???

Este estudo da Eliete Costa Silva Jardim foi o primeiro a sustentar esta tese jurídica, estando publicado orginalmente nas páginas 173/190 do livro “Tributo a Afranio Silva Jardim”, publicado em 2014, pela editora Lumen Iuris (a terceira edição desta obra foi publicada recentemente pela editora Juspodium).

Por amor à verdade, cabe esclarecer que o primeiro autor a dar o devido crédito à filha Eliete foi o professor e magistrado André Nicolitt, consoante se vê às páginas 531/532, da 6ª.edição do seu excelente “Manual De Processo Penal”, 6ª.edição, Revista dos Tribunais.

Por tudo isso, julgo útil e conveniente usar esta coluna para, em uma espécie de homenagem à  memória da minha querida filha, transcrever abaixo o substancioso acórdão do ministro Celso Mello, supra mencionado, onde a matéria jurídica é apreciada de forma exaustiva e nos seus vários ângulos.

Também por isso, digo mais uma vez: obrigado, Eliete. Você agora será sempre também lembrada pela nossa comunidade acadêmica e jurídica em geral.

 

Este é o teor do acórdão do S.T.F. 

* * *

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 117.076 PARANÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

  • (S) :ÉTORE SANTO SACON ADV.(A/S)
  • MARCO ALEXANDRE DE SOUZA SERRA E OUTRO(A/S)
  • (A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

EMENTA: Recurso ordinário em “habeas corpus”. Tribunal do Júri. Quesito genérico de absolvição (art. 483, inciso III, e respectivo § 2º, do CPP). Interposição, pelo Ministério Público, do recurso de apelação previsto no art. 593, inciso III, alínea “d”, do CPP. Descabimento. Doutrina. Jurisprudência. Recurso ordinário provido.

– A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Doutrina e jurisprudência.

– Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo “Parquet”. Magistério doutrinário e jurisprudencial.

DECISÃO: O presente recurso ordinário em “habeas corpus” insurge-se contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado:

“‘HABEAS CORPUS’. HOMICÍDIO TENTADO, HOMICÍDIO QUALIFICADO E CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE (ARTIGO 121, COMBINADO COM O ARTIGO 14, INCISO II; ARTIGO 121, § 2º, INCISO IV, TODOS DO CÓDIGO PENAL, E ARTIGO 32 DA LEI 9.605/1998). ABSOLVIÇÃO DO PACIENTE PELO TRIBUNAL DO JÚRI. RECURSO DE APELAÇÃO MINISTERIAL. VEREDICTO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIO À PROVA PRODUZIDA NOS AUTOS. PROVIMENTO. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DO VEREDICTO POPULAR E AO PRINCÍPIO DA ÍNTIMA CONVICÇÃO DOS JURADOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.

Não há violação ao princípio da soberania dos veredictos, inserto no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘c’, da Constituição Federal, nos casos em que, com espeque na alínea ‘d’ do inciso III do artigo 593 do Código de Processo Penal, o Tribunal de origem, procedendo a exame dos elementos contidos no feito, entende que a decisão dos jurados não se coaduna com a prova produzida no caderno processual.

Não há como esta Corte Superior de Justiça avaliar se as provas indicadas pelo acórdão objurgado são aptas a absolver o paciente, porquanto a verificação do conteúdo dos testemunhos prestados em Juízo implicaria o aprofundado revolvimento de matéria fático-probatória, providência que é vedada na via eleita. Precedentes. 3. Ordem denegada.” (HC 235.651/PR, Rel. Min. JORGE MUSSI – grifei)

Consta dos autos que o Ministério Público do Estado do Paraná ofereceu denúncia contra o ora recorrente pela suposta prática dos crimes de homicídio tentado (CP, art. 121, “caput”, c/c art. 14, II), de  homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º, IV) e de lesão em animal doméstico (Lei nº 9.605/98, art. 32, “caput”).

A peça acusatória oferecida pelo “Parquet” estadual expôs, de modo claro e preciso, o comportamento atribuído ao recorrente, fazendo-o, em síntese, nos seguintes termos:

“1º Fato:

‘Consta, que no dia 03 de setembro de 2006 (03/09/2006), por volta da 01:00h, a ora vítima Thiago Henrique da Silva encontrava-se no ‘Bar Tartaruga’, situado na Avenida Dr. Alexandre Rasgulaeff, ao lado da oficina de motos ‘Motos Shows’ quando acabou discutindo com o ora denunciado Etore Santo Sacon – vulgo ‘Ovelha’, por causa de um problema relacionado à venda e à documentação de uma motocicleta. Então, o ora denunciado, com vontade livre e consciente, desferiu duas (2) facadas na vítima, com inequívoca intenção de matá-la, só não consumando esse seu intento assassino por circunstâncias alheias à sua vontade, posto que a vítima foi prontamente socorrida e encaminhada ao Hospital Universitário de Maringá, onde submeteu-se à intervenção cirúrgica e tratamento médico eficaz’.

2º Fato:

‘Em continuidade, dando sequência ao seu propósito criminoso de ceifar a vida da referida vítima, no dia 08 de setembro de 2006 (08/09/06), por volta de 01h45min., o denunciado Etore Santo Sacon – vulgo ‘Ovelha’ se dirigiu até a residência da vítima, situada na Rua Dona Leonor de Held, nº 108, Jardim Alvorada, nesta cidade e comarca, com o intuito de concluir o seu intento. Em lá chegando, sem o consentimento de quem de direito, invadiu o interior da habitação e adentrou no quarto onde a vítima Thiago Henrique da Silva dormia, efetuando três (3) disparos contra ela, a curta distância, praticamente a ‘queima roupa’, atingindo-lhe a lateral esquerda da face e a região parieto-occipital à esquerda, causando-lhe a morte instantânea (Laudo de Necropsia de fls. 60 e vº), empreendendo fuga a pé e tomando rumo ignorado’.

‘A vítima não teve a mínima possibilidade de se defender ou de reagir ao ataque repentino, seja porque se encontrava deitada sobre a cama, onde recuperava-se da mencionada cirurgia ou porque sequer conseguiu levantar-se, sendo este repentino ataque mortal praticamente uma mera continuação daquela tentativa, dadas as mesmas circunstâncias de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes’.

3º Fato:

‘Consta, finalmente, que quando o ora denunciado Etore Santo Sacon – vulgo ‘Ovelha’ invadiu a residência da vítima e se dirigiu o quarto onde ela se encontrava convalescida, veio a se deparar com um cachorro doméstico, da família, que estava sob a mesa da cozinha. Então, atuando com vontade livre e consciente, sem o menor sentimento de piedade, efetuou um disparo na direção do animal, atingindo-lhe uma das patas, vindo a feri-lo’.” (grifei)

O MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri da comarca de Maringá/PR, “convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria” (CPP, art. 413, “caput”), pronunciou o ora recorrente nos exatos termos constantes da peça acusatória.

O júri da comarca, por seu Conselho de Sentença, desclassificou, para o crime de lesão corporal leve, o delito de homicídio simples em sua forma tentada, vindo a absolver o réu – com base no quesito genérico previsto no art. 483, III, do CPP – quanto às demais acusações que lhe foram feitas (crimes de homicídio qualificado e de crueldade contra animais), o que motivou a interposição, pelo Ministério Público estadual, do recurso de apelação, no qual o “Parquet”, além de haver suscitado a ocorrência de nulidades processuais após a pronúncia, também alegou que a deliberação dos jurados mostrava-se manifestamente contrária à prova dos autos.

Ao apreciar o recurso criminal em causa, o E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná deu-lhe provimento, para determinar a submissão do acusado a novo julgamento pelo Tribunal do Júri:

“JÚRI – HOMICÍDIO QUALIFICADO – ABSOLVIÇÃO – TESE DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA ACOLHIDA – DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS – CASSAÇÃO (ART. 593-III – ‘d’, CPP) – SUBMISSÃO DO ACUSADO A NOVO JULGAMENTO. Contraria manifestamente a prova dos autos o veredicto do Conselho de Sentença que, distante de elementos fáticos capazes de configurar situação tão excepcional que não permita outra opção ao agente senão ceifar a vida da vítima, vem a recepcionar a tese de inexigibilidade de conduta diversa para absolvê-lo. RECURSO PROVIDO.” (grifei)

Inconformada com essa decisão, a parte ora recorrente impetrou “habeas corpus” perante o E. Superior Tribunal de Justiça (HC 235.651/PR), o qual foi denegado por aquela Alta Corte judiciária, que reconheceu a idoneidade jurídico-processual do recurso de apelação interposto, nos termos do art. 593, III, “d”, do CPP, contra a absolvição penal do paciente.

Insurge-se a parte ora recorrente contra a decisão em referência, sustentando, em síntese, para justificar sua pretensão, o que se segue:

“(...) os recorrentes ousam sugerir que a presente causa reúne os elementos necessários a que seu julgamento seja aproveitado para se atualizar a interpretação que o disposto no art. 593, III, ‘d’ e seu § 3º merecem, a partir de uma rigorosa hermenêutica constitucional. Cogita-se, assim, de uma interpretação em conformidade com o plexo normativo constitucional que dilate o âmbito de proteção das disposições legais sob enfoque, de modo que apenas os julgamentos pelo Júri que neguem a evidência da materialidade do fato e de sua autoria é que admitiriam o juízo de cassação que o Tribunal de"

As recentes reformas realizadas no Código de Processo Penal, ainda, vieram para reforçar ainda mais a soberania dos ‘veredicta’. É por isso que, por ocasião do Recurso Extraordinário aviado, a defesa fez questão de aludir à atual redação do art. 483, ‘caput’, III e seu § 2º. Mencionado preceito, ao definir a obrigatoriedade e até mesmo a redação (O jurado absolve o acusado?) do principal quesito a ser respondido, eximiu os jurados da compreensão das intrincadas teses jurídicas. Doravante se pergunta aos jurados apenas se absolvem ou não, desimportando as razões pelas quais o fazem. Dessa forma, além de juridicamente impossível, fica também improvável, no campo fenomenológico, que o Tribunal tenha condições de sindicar se a deliberação do Júri está em conformidade ou não com o material probatório constante dos autos.

Parece cuidar-se de uma impossibilidade meditada pelo legislador, apontando, quiçá, para reconhecer razão aos que enxergavam ser impossível censurar a decisão do Júri. Pois a soberania, mesmo que não absolutizada, não deve contas à interpretação mais ou menos elaborada, consentânea ou não com o que a dogmática jurídica, por exemplo, tem compreendido. Nesse sentido, reconhecer, como fez o Tribunal ‘a quo’, que a tese da inexigibilidade de conduta diversa não encontra eco nos autos, é algo que beira a irrelevância.

Pois se eventual contraste entre o material de convicção encartado e a deliberação do Júri pode até ser observado e, nesse sentido, censurado, tal não se afigura possível em relação às teses jurídicas debatidas. Em suma, com toda sinceridade, a derrogação do art. 593, III, ‘d‘, pelo art. 483, ‘caput’, III e seu § 2º não está descartada.” (grifei)

Busca-se, desse modo, nesta sede recursal, a concessão da ordem de “habeas corpus” para determinar a anulação do acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Apelação Criminal nº 614.652-5), bem assim para restabelecer a sentença de absolvição penal emanada do Tribunal do Júri da comarca de Maringá/PR (Processo-crime nº 2006.0003364-6).

Por entender presentes, cumulativamente, os requisitos concernentes à plausibilidade jurídica e ao “periculum in mora”, deferi o pedido de medida liminar formulado nestes autos para suspender, na origem, o curso do processo penal em questão.

O Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. EDSON OLIVEIRA DE ALMEIDA, manifestou-se contrário à pretensão deduzida nesta sede recursal.

Sendo esse o contexto, passo a apreciar o pleito em causa. E, ao fazê-lo, entendo assistir plena razão ao ora recorrente, no ponto em que sustenta, corretamente, com base no art. 483, III e respectivo § 2º, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008, que não mais se revela   viável a utilização, pelo órgão da acusação, do recurso de apelação (CPP , art. 593, III, “d”) como meio de impugnação às decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com apoio na resposta dada pelo Conselho de Sentença ao quesito genérico de absolvição penal (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º).

Como se sabe, o Código de Processo Penal, ao dispor sobre a formulação do questionário a ser submetido à deliberação dos membros do Conselho de Sentença, introduziu quesito inovador contendo indagação sobre “se o acusado deve ser absolvido” (art. 483, III, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008).

O quesito em questão, tal como determinado pelo art. 483, § 2º, do CPP, será formulado com a seguinte redação: “O jurado absolve o acusado?”.

Se a resposta de pelo menos 04 (quatro) jurados for afirmativa, o Juiz Presidente do Tribunal do Júri dará por encerrada a votação em virtude de tal resultado importar na absolvição penal do acusado.

Vê-se, portanto, que, em razão da superveniência da Lei nº 11.689/2008 – que, ao alterar o Código de Processo Penal no ponto concernente à elaboração do questionário, neste introduziu o quesito genérico da absolvição (art. 483, III) –, os jurados passaram a gozar de ampla e irrestrita autonomia na formulação de juízos absolutórios, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, seja às teses suscitadas em plenário pela defesa, seja a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica.

Disso resulta que a decisão dos jurados, quando indagados, de modo genérico, sobre a inocência do réu, tem por fundamento a sua íntima convicção, o que valoriza, nesse tema específico, o princípio do livre convencimento, em que o membro do Conselho de Sentença possui inteira discrição, protegido, constitucionalmente, pelo sigilo da votação (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), para absolver o acusado por razões, até mesmo, de clemência, tal como tem sido decidido por alguns Tribunais judiciários (Apelação Criminal nº 0085323-62.2004.807.0001, Red. p/ o acórdão Des. JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, TJDFT – Apelação Criminal nº 0010601   -67.2010.8.13.0393, Rel. Des. CÁSSIO SALOMÉ, TJMG – Apelação   Criminal nº 5391587-21.2009.8.13.0024, Rel. Des. EDUARDO BRUM, TJMG – Apelação Criminal nº 0035542-91.2011.8.13.0443, Rel. Des. EDUARDO BRUM, TJMG – Apelação Criminal nº 0008366-51.2007.8.26.0400, Rel. Des. NEWTON NEVES, TJSP – Apelação Criminal nº 0227792-86.2010.8.21.7000, Rel. Des. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA, TJRS – Apelação   Criminal nº 0272761-26.2009.8.21.7000, Rel. Des. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA, TJRS – Apelação Criminal nº 0236172   -64.2011.8.21.7000, Rel. Des. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA, TJRS – Apelação Criminal nº 0504741-65.2013.8.21.7000, Rel. Des. OSNILDA PISA, TJRS – Embargos Infringentes e de Nulidade nº 0306181   RHC 117076 / PR-17.2012.8.21.7000, Red. p/ o acórdão Des. MARCEL ESQUIVEL HOPPE, TJRS):

“APELAÇÃO CRIMINAL – HOMICÍDIO SIMPLES – JÚRI – ALEGAÇÃO DE DECISÃO DOS JURADOS CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS – INOCORRÊNCIA – QUESITAÇÃO ALTERADA APÓS A LEI Nº 11.689/08 – ABSOLVIÇÃO SEM ESTAR ADSTRITA ÀS TESES DEFENSIVAS DO PLENÁRIO – POSSIBILIDADE – RECURSO NÃO PROVIDO. I – A partir da nova redação do art. 483 do CPP, após a Lei nº 11.689/08, é admitida a absolvição do réu por motivos desconhecidos e até mesmo por clemência. II – Se a nova formulação dos quesitos alargou as possibilidades de absolvição, fica, de fato, ao alvedrio dos jurados decidir pela não condenação do réu por motivos até alheios à sustentação defensiva. III – Na antiga sistemática, as possibilidades de absolvição eram   limitadas pelas teses apresentadas pela defesa, o que mitigava, de certa forma, a possibilidade de o jurado absolver com base na íntima convicção. A partir da reforma, não há nenhum limite. IV – Recurso não provido.” (Apelação Criminal nº 1.0024.00.092182-5/002, Rel. Des. EDUARDO BRUM, TJMG – grifei)

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. RECONHECIMENTO DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. RESPOSTA POSITIVA AO QUESITO GENÉRICO DE ABSOLVIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO LÓGICA. ÍNTIMA CONVICÇÃO DO JURADO E SOBERANIA DOS VEREDICTOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Os jurados são livres para absolver o acusado, ainda que reconhecida a autoria e a materialidade do crime, e independentemente das teses sustentadas pela defesa.

A reforma processual promovida pela Lei 11.689/08, ao estabelecer quesito genérico de absolvição, consubstanciado na pergunta ‘O jurado absolve o acusado?’, mais do que atender a uma finalidade clara de simplificação da elaboração dos quesitos, prestigiou o sistema da íntima convicção, vigente na Instituição do Júri, conferindo a cada integrante do Conselho de Sentença liberdade para absolver o réu para além das balizas fixadas pelas teses defensivas sustentadas em Plenário, inclusive com base em critérios não positivados. 3. Recurso conhecido e desprovido.” (Apelação Criminal nº 0004246-17.2012.8.07.0012, Rel. Des. JESUÍNO RISSATO, TJDFT – grifei)

A inovação em referência, que resultou da Reforma Processual Penal   de 2008, notadamente da Lei nº 11.689/2008, provocou dúvida relevante sobre a possibilidade, ou não, de o Ministério Público, mediante interposição de apelação criminal com suporte no art. 593, III, “d”, do CPP, insurgir-se contra a decisão absolutória do Conselho de Sentença fundada na resposta dos jurados ao quesito genérico (e obrigatório) de absolvição formulado com apoio no art. 483, III, do estatuto processual penal.

O eminente Professor AURY LOPES JR., ao examinar essa questão em artigo publicado, em 18/08/2017, na revista eletrônica CONJUR (“Tribunal do Júri: A Problemática Apelação do Artigo 593, III, do CPP”), assim resumiu o estado da controvérsia:

 “Com a nova sistemática do tribunal do júri – inserida na reforma de 2008 e ainda sendo assimilada –, foi inserido o famoso quesito genérico da absolvição (obrigatório), estabelecendo-se um novo problema: será que ainda tem cabimento a apelação por ser a decisão manifestamente contrária à prova dos autos (artigo 593, III, ‘d’) quando o réu é absolvido ou condenado com base na votação do quesito ‘o jurado absolve o acusado?’

Já que está autorizado que o jurado absolva por qualquer motivo, por suas próprias razões, mesmo que elas não encontrem amparo na prova objetivamente produzida nos autos, será que ainda cabe esse recurso? A resposta sempre nos pareceu negativa, não cabendo mais esse recurso por parte do Ministério Público quando a absolvição for com base no quesito genérico, até porque a resposta não precisa refletir e encontrar respaldo na prova, ao contrário dos dois primeiros (materialidade e autoria), que seguem exigindo ancoragem probatória pela própria determinação com que são formulados. O réu pode ser legitimamente absolvido por qualquer motivo, inclusive metajurídico, como é a ‘clemência’ e aqueles de caráter humanitário.

Obviamente, o recurso com base na letra ‘d’ segue sendo admitido contra a decisão condenatória, pois não existe um quesito genérico para condenação. Para condenar, estão os jurados adstritos e vinculados à prova dos autos, de modo que a condenação ‘manifestamente contrária à prova dos autos’ pode e deve ser impugnada com base no artigo 593, III, ‘d’. É regra elementar do devido processo penal. Sublinhe-se: o que a reforma de 2008 inseriu foi um quesito genérico para absolver por qualquer motivo, não para condenar. Portanto, a sentença condenatória somente pode ser admitida quando amparada pela prova.” (grifei)

Não se desconhece que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar essa mesma controvérsia, uniformizou, por sua colenda Terceira Seção, a orientação jurisprudencial dessa Alta Corte judiciária, fazendo-o no julgamento do HC 313.251/RJ, Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK, em decisão que, proferida por exígua maioria (5x4), restou consubstanciada em acórdão assim ementado:

“‘HABEAS CORPUS’ SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. ABSOLVIÇÃO. APELAÇÃO DA ACUSAÇÃO PROVIDA. ART. 593, III, ‘D’, DO CPP. SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO. O JUÍZO ABSOLUTÓRIO RHC 117076 / PR PREVISO NO ART. 483, III, DO CPP NÃO É ABSOLUTO. POSSIBILIDADE DE CASSAÇÃO PELO TRIBUNAL DE APELAÇÃO. EXIGÊNCIA DA DEMONSTRAÇÃO CONCRETA DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS. SOBERANIA DOS VEREDICTOS PRESERVADA. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO QUE DEMANDA REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE EM ‘HABEAS CORPUS’. PRECEDENTES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO. ‘WRIT’ NÃO CONHECIDO. 1. Diante da hipótese de ‘habeas corpus’ substitutivo de recurso próprio, a impetração não deve ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ. Contudo, considerando as alegações expostas na inicial, razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal. 2. As decisões proferidas pelo conselho de sentença não são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o Tribunal ‘ad quem’, nos termos do art. 593, III, ‘d’, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez, determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise do mérito da demanda. 3. A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição. Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no art. 483, III, do CPP.

O Tribunal de Justiça local, eximindo-se de emitir qualquer juízo de valor quanto ao mérito da acusação, demonstrou a existência de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos amparado por depoimento de testemunha e exame de corpo de delito. Verifica-se que a decisão do conselho de sentença foi cassada, com fundamento de que as provas dos autos não deram respaldo para a absolvição, ante a inexistência de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, não prevalecendo, a tese defensiva da acidentalidade, tendo em vista a demonstração de que o acusado continuou a desferir golpes à vítima já caída ao chão, sendo a causa da sua morte, traumatismos no crânio, pescoço e tórax. 5. Havendo o acórdão impugnado afirmado, com base em elementos concretos demonstrados nos autos, que a decisão dos jurados proferida em primeiro julgamento encontra-se manifestamente contrária à prova dos autos, é defeso a esta Corte Superior manifestar-se de forma diversa, sob pena de proceder indevido revolvimento fático-probatório, incabível na via estreita do ‘writ’. ‘Habeas corpus’ não conhecido.” (grifei)

Cabe destacar, no ponto, os votos da corrente minoritária, formada pelos eminentes Ministros SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, REYNALDO SOARES DA FONSECA, RIBEIRO DANTAS e ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, cuja posição bem apreciou o sentido e corretamente identificou a razão da norma legal institutiva do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri.

É interessante observar, ainda, que o eminente Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, que não votou por ocasião do julgamento do HC 313.251/RJ, em virtude de vedação regimental (RISTJ, art. 24, I), por achar-se presidindo a colenda Terceira Seção do E. STJ, perfilha o entendimento que venho expondo na presente decisão:

“À luz dessas considerações, entendo pela inviabilidade de se cassar a decisão soberana dos jurados de absolver o réu (por clemência), por contrariedade manifesta à prova dos autos.

Tal solução implicaria, a meu sentir, violação da soberania dos jurados, característica ínsita à secular instituição do Tribunal do Júri, conforme assentado na Constituição da República em seu art. 5º, XXXVIII, cuja dicção bem explicita o propósito de ilidir normas de natureza infraconstitucional que se oponham a tal compreensão. Se o constituinte continuou a consagrar essa instituição, inserindo-a no capítulo dos direitos e das garantias fundamentais e assegurando-lhe, expressamente, a soberania do veredito dos julgadores populares, e se o legislador superveniente, ao promover mudança no questionário dos jurados, fez constar quesito genérico sobre dever ou não o réu ser absolvido, é de se respeitarem a ‘mens constitutionis’ e a ‘mens legis’, para assumir que, ao menos no tocante à absolvição do réu, a decisão dos jurados é soberana e não pode ser sindicada por juízes togados em recurso da acusação.” (REsp 1.677.866/MG, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ – grifei)

Registro, por necessário, que tenho adotado essa mesma orientação, no sentido de também considerar inadmissível – quando não incongruente em face da reforma introduzida no procedimento penal do júri – o controle   judicial, em sede recursal (CPP, art. 593, III, “d”), das decisões absolutórias   proferidas pelo Tribunal do Júri com suporte no art. 483, III e § 2º, do CPP, quer pelo fato, juridicamente relevante, de que os fundamentos efetivamente acolhidos pelo Conselho de Sentença para absolver o réu (CPP, art. 483, III) permanecem desconhecidos (em razão da cláusula constitucional do sigilo das votações prevista no art. 5º, XXXVII, “b”, da Constituição), quer pelo fato, não menos importante, de que a motivação adotada pelos jurados pode extrapolar os próprios limites da razão jurídica.

Essa visão em torno do tema em exame – vale registrar – tem sido perfilhada por alguns autores em sede doutrinária (IORIO SIQUEIRA D’ALESSANDRI FORTI, “O Tribunal do Júri como Garantia Fundamental, e não como Mera Regra de Competência: Uma Proposta de Reinterpretação do art. 5º, XXXVIII, da Constituição da República”, “in” Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Ano 3, vol. 3, 2009; RONALDO LEITE PEDROSA, “Decisão Manifestamente Contrária à Prova dos Autos: Recurso Exclusivo da Defesa”, “in” Revista da Escola da Magistratura do Estado de Rondônia, nº 21, 2012), valendo destacar, em face da pertinência de que se reveste, o magistério de ADEL EL TASSE e de LUIZ FLÁVIO GOMES (“Processo Penal IV: Júri”, p. 161/165, item n. 1.d., 2012, Saraiva):

“A Lei n. 11.689/2008, ao regulamentar o modelo de quesitação que atualmente deve ser adotado, produziu reflexo direto na matéria da apelação das decisões do Tribunal do Júri, não sendo mais aceita a continuidade no emprego da vetusta interpretação da matéria, que passa a representar evidente ausência de lógica do sistema. Parece indiscutível, sendo qualquer resistência em verificar esta situação totalmente desprovida de sentido técnico mínimo, que, com a alteração não só dos procedimentos, mas verdadeiramente da estrutura do Tribunal do Júri brasileiro, produzida em 2008, pela entrada em vigor da Lei n. 11.689, a apelação com base na manifesta contrariedade às provas dos autos passou a ser recurso exclusivo da defesa. O atual modelo de quesitação existente, pelo qual o Conselho de Sentença decide sobre a absolvição com total distanciamento de questionamentos técnico-jurídicos, mas atuando em acordo com o livre convencimento íntimo de forma plena, respondendo a quesito geral sobre se o acusado deve ser absolvido ou condenado, faz com que a decisão absolutória não seja passível de qualquer tipo de controle recursal pela acusação, pois insuscetível de análise quanto aos seus fundamentos, que podem, inclusive, decorrer do perdão social pelo fato praticado. Em outras palavras, não há qualquer suporte lógico para que possa a acusação recorrer para atacar o veredicto absolutório, argumentando que este ocorreu em contrariedade à prova dos autos, pois a absolvição deve atender a um único critério, qual seja, a livre convicção plena do juiz de fato, formada com imparcialidade após a apresentação das provas e dos debates pelas partes. O dado essencial é que a estrutura democrática do Tribunal do Júri garante que os jurados possam atuar para absolver além dos limites impostos pela lei ao juiz togado, não havendo dúvidas de que este aspecto democrático encontra-se, no caso brasileiro, expressamente refletido no modelo de quesitação adotado.

A quesitação hoje existente, em que uma única pergunta sobre se o réu deve ser absolvido resolve a causa, garante ao jurado a possibilidade de absolver com base no mais amplo juízo de íntima convicção e, por via de consequência, tacitamente revogou em parte o art. 593, III, ‘d’, do Código de Processo Penal, pois passou a ser absolutamente carente de lógica sistêmica debater em grau de apelação quais os critérios de absolvição do cidadão jurado, vedando-se, assim, o recurso de apelação pela acusação com base no fundamento de que o julgamento foi manifestamente contrário às provas dos autos.

Dessa forma, a atual redação do Código de Processo Penal, na disciplina do Tribunal do Júri, fixando a viabilidade absolutória com base na livre convicção íntima de forma plena, impede a utilização do recurso de apelação com base no art. 593, III, ‘d’, contra a decisão absolutória, sendo este recurso, em consequência, exclusivo da defesa para atacar decisão condenatória.” (grifei)

Impende registrar, no mesmo sentido, a valiosa lição de ANTONIO DE HOLANDA CAVALCANTE SEGUNDO e NESTOR EDUARDO ARARUNA SANTIAGO, que – ao analisarem, com propriedade, o teor do art. 593, III, “d”, do CPP, após a Reforma Processual Penal de 2008 – concluíram pela impossibilidade de a acusação, c  om   fundamento na contrariedade à prova dos autos, recorrer de veredicto que absolve o réu por clemência, com apoio no art. 483, III, do CPP (“Íntima Convicção, Veredictos dos Jurados e o Recurso de Apelação com Base na Contrariedade à Prova dos Autos: Necessidade de Compatibilidade com um Processo de Base Garantista”, “in” Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 116/09-11, item n. 3, 2015):

“Pode-se concluir, então, que a exegese do art. 593, III, ‘d’, do CPP (LGL\1941\8), que prevê o cabimento de apelação quando o veredicto for manifestamente contrário à prova dos autos, de acordo com o texto constitucional e a minirreforma processual penal de 2008, que consagram a íntima convicção dos jurados como ‘ratio decidendi’, é no sentido de que tal recurso, se fundado em inconformidade contra decisão advinda da resposta ao terceiro quesito, é de uso exclusivo da defesa, pois a íntima convicção não poderia ser utilizada para legitimar condenações sem provas, cedendo em face de direitos de liberdade prementes. Ora, a possibilidade de os jurados desprezarem a prova e decidirem de acordo com seu sentimento íntimo do que é ou não justo decorre das próprias regras do jogo, preestabelecidas e de conhecimento prévio do Ministério Público, o qual possui, então um duplo ônus quando se fala em julgamento pelo tribunal popular: o de se liberar das cargas probatórias, convencendo os jurados a respeito da materialidade, da autoria, e da improcedência das teses defensivas, e, agora, também o de convencer os juízes leigos da necessidade (justiça) da imposição de uma sanção, evitando a absolvição piedosa. A absolvição por clemência é uma possibilidade, decorrente das regras preestabelecidas, que resulta da perda de chance(s) pelo órgão acusador, quando não se libera a contento de seus ônus.

Como regra preestabelecida do jogo processual, ter-se-ia a possibilidade de os jurados prolatarem seus veredictos de acordo com a íntima convicção, com suas consciências, isto é, seu sentimento íntimo de justiça, podendo, inclusive, desprezar a prova dos autos. Tal decorre do sigilo e da soberania dos veredictos, princípios expressos no texto constitucional, que excetuam a necessidade de fundamentação da decisão dos jurados, não permitindo a aferição das razões que levam a uma absolvição decorrente de resposta ao quesito genérico previsto no art. 483, III e § 2º, do CPP (LGL\1941\8). Assim, não seria dado ao Ministério Público recorrer, com base no art. 593, III, ‘d’, do CPP, de tais veredictos absolutórios, pois um julgamento fundado na íntima convicção, sem atrelamento a uma tese específica, não é passível de ser manifestamente contrário à prova dos autos. O referido recurso seria, pois, de uso exclusivo da defesa, assim como a revisão criminal e os embargos infringentes e de nulidade, por não poder subsistir, ante o plexo de direitos de liberdade existentes, uma condenação sem provas. É de dizer: a soberania dos veredictos e a íntima convicção dos jurados só haveria de ceder em prol de direitos fundamentais que visam a resguardar o ‘jus libertatis’, tomando-se como base o garantismo processual, cujos fundamentos já foram expostos. De tal sorte, ao Ministério Público caberia um duplo ônus para que este se liberasse de suas cargas probatórias e aumentasse a chance de obter veredicto condenatório: o de provar a acusação e, igualmente, o de convencer os jurados da necessidade ou justiça da aflição de uma pena ao imputado.” (grifei)

Assinalo, por relevante, que igual orientação é perfilhada pela saudosa Dra. ELIETE COSTA SILVA JARDIM, eminente Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro (“Tribunal do Júri – Absolvição Fundada no Quesito Genérico: Ausência de Vinculação à Prova dos Autos e Irrecorribilidade”, “in” revista EMERJ, vol. 18, n. 67, p. 13/31, 2015): 

“Como (...) se admitir um recurso que tem como fundamento a manifesta contrariedade da decisão à prova se a decisão atacada não se vincula à prova? Para que o órgão jurisdicional ‘ad quem’ pudesse analisar o mérito recursal e decidir, com convicção, que a decisão do Conselho de Sentença afrontou a prova, necessário seria indagar dos jurados os motivos que os levaram a adotar tal ‘decisum’. Nesta toada, se tivessem sido motivados por fatos, o recurso mereceria provimento; se por razões outras, o recurso deveria ser improvido. Por óbvio, tal possibilidade inexiste, diante do sistema da íntima convicção. Ademais, nada impede que cada um dos sete jurados profira seu voto por uma razão diferente, sendo, portanto, a decisão final a aglutinação de fatores diversos que conduzem ao resultado absolutório. É, por conseguinte, manifesta a insindicabilidade da decisão absolutória resultante da votação do quesito genérico obrigatório. A conclusão consubstancia mesmo questão de lógica, uma vez que não é possível afirmar que um veredicto contrariou algo que sequer se sabe se foi considerado na decisão. Seria o equivalente a dizer, v.g., que o juiz recebeu uma apelação em manifesta contrariedade à prova produzida nos autos. Ora, a decisão que julga admissível ou não um recurso não guarda qualquer relação com a prova, mas tão somente com requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei. Destarte, não há como dizer que uma decisão contraria algo que lhe é desinfluente.” (grifei)

Impõe-se destacar, ainda, que o eminente Advogado GUILHERME MADI REZENDE (“Júri: Decisão Absolutória e Recurso da Acusação por Manifesta Contrariedade à Prova dos Autos – Descabimento”, “in” Boletim IBCCRIM, Ano 17, nº 207, 2010), em precisa abordagem da controvérsia ora em julgamento, definiu, de modo inteiramente correto e adequado, o próprio sentido da norma inscrita no art. 483, III, do CPP, como se dessume de sua consistente análise do tema:

“Uma das alterações trazidas ao Código de Processo Penal pela Lei nº 11.689/2008 diz com a formulação obrigatória de quesito redigido nos seguintes termo: ‘o jurado absolve o acusado?’. É o que se extrai da leitura do artigo 483 do mencionado diploma. Esse quesito – de formulação obrigatória, repita-se – tem dupla natureza: serve tanto para que nele sejam condensadas as teses defensivas, como, por exemplo, a legítima defesa, sem que sejam necessários quesitos relativos a cada um dos elementos que a compõem, como se fazia anteriormente; como também serve para que o jurado possa absolver por qualquer razão, ainda que não jurídica, sustentada ou não pela defesa, como clemência, por exemplo. Sobre essa natureza do chamado terceiro quesito, vale a transcrição de trecho de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que bem a ilustra: ‘não se atrela o questionamento a esta ou àquela tese adrede debatida durante o julgamento da causa. É quesito obrigatório e ponto. Disso resulta, então, que quer se queira ou não, até por clemência, por piedade, por bondade ou algo semelhante, os Senhores jurados estão aptos para o exercício da absolvição. Na atualidade, para os fins absolutórios, não se lhes exige, por consequência, qualquer vinculação temática com esta ou aquela proposição da defesa técnica, resultante dos debates em Plenário de julgamento, como era feito no passado recente’. Importa notar que a nova redação do artigo 483 do diploma processual alterou, num ponto específico, a sistemática das decisões dos jurados. Na sistemática antiga os jurados eram indagados apenas sobre a matéria de fato. As respostas ‘sim’ e ‘não’ eram dadas a questões objetivas relacionadas aos fatos, tas como se o réu, no dia tal, em tal lugar, desferiu os tiros.

Porém, como já dito linhas acima, a sistemática mudou. Já não são mais formulados quesitos apenas relativos aos fatos. Com efeito, o terceiro quesito não diz necessariamente com os fatos. Diz com a sensibilidade do jurado ao analisar o caso que lhe é apresentado. O jurado pode absolver por clemência, piedade, compaixão ou qualquer sentimento que lhe mova a tomar tal decisão. É livre para tanto. A diferença marcante aqui é que a decisão absolutória tirada por votação ao terceiro quesito, por não ser necessariamente um quesito de fato, não permite que se afira se a decisão tem amparo ou não na prova dos autos.

Ao tornar obrigatória a formulação desse quesito – ainda quando a única tese defensiva seja a negativa de autoria, já reconhecida em quesito antecedente – o legislador garante ao jurado o direito de absolver por suas próprias razões, mesmo que elas não encontrem amparo na prova objetivamente produzida nos autos. Ora, nenhum sentido há em garantir ao jurado esse direito e depois cassar a decisão que dele decorra. Assim, a decisão dos jurados que, ao votarem o terceiro quesito, entendem por absolver o acusado não é passível de recurso da acusação com base no artigo 593, inciso III, alínea ‘d’ do Código de Processo Penal. Não há decisão absolutória calcada no terceiro quesito que seja manifestamente contrária à prova dos autos, já que ela não reflete a resposta a um quesito de fato, mas reflete a vontade livre dos jurados, vontade essa que foi, por expressa disposição de lei, desvinculada da prova dos autos. Nada há de teratológico nisso na medida em que a instituição do júri, insculpida na Constituição no capítulo destinado às garantias e direitos fundamentais, visa a ser uma instituição que se preste a garantir ainda mais o ‘jus libertatis’, cumprindo, destarte, sua função ao permitir que os jurados, como representantes da sociedade, de forma soberana decidam pela absolvição do acusado. Por tudo isso, não cabe recurso da acusação, com fundamento no artigo 593, inciso III, alínea ‘d’ do Código de Processo Penal, quando a decisão absolutória dos jurados estiver calcada no terceiro quesito, isso é, quando os jurados, de forma livre, soberana e imotivada, responderem ‘sim’ ao quesito ‘o jurado absolve o acusado?’.” (grifei)

Cabe ter presente, finalmente, que referida compreensão da matéria ora em exame tem sido acolhida em vários julgamentos monocráticos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal a propósito da mesma questão ora suscitada nestes autos (HC 143.595-MC/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RHC 168.796-MC/SP, Rel. Min. EDSON FACHIN – RE 982.162/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES), cabendo destacar, no ponto, por relevante, expressivo fragmento de decisão que o eminente Ministro MARCO AURÉLIO proferiu, em outra causa, sobre a tese em análise:

“2. Surge relevante o pedido de implemento de liminar. Os jurados reconheceram, por maioria, a autoria e a materialidade delitivas. Na sequência, questionados se absolviam o paciente, nos termos do que dispõe o artigo 483, § 2º, do Código de Processo Penal – ‘respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do ‘caput’ deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: o jurado absolve o acusado?’ –, responderam afirmativamente. O quesito versado no dispositivo tem natureza genérica, não guardando compromisso com a prova obtida no processo. Decorre da essência do Júri, segundo a qual o jurado pode absolver o réu com base na livre convicção e independentemente das teses veiculadas, considerados elementos não jurídicos e extraprocessuais.” (HC 146.672-MC/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

O eminente Ministro GILMAR MENDES, por sua vez, enfrentando idêntica questão no julgamento final de determinado recurso extraordinário, assim expôs as razões que o levaram, com apoio em parecer favorável da douta Procuradoria-Geral da República, a concluir no mesmo sentido ora sustentado nesta decisão:

“Ademais, extraio do parecer da Procuradoria-Geral da República minhas razões de decidir:

Pois bem, o quesito genérico quanto à absolvição passou a ser obrigatório desde a edição da Lei 11.689/2008, que trouxe a atual redação do § 2º e do inc. III do ‘caput’, ambos do art  .   483 do CPP. Somente não é feita a indagação em tela se o quesito quanto à materialidade ou o quanto à autoria/participação forem respondidos negativamente, na forma do § 1º do referido art. 483 e do § único do art. 490 do ‘Codex’ processual penal. E esse quesito engloba tudo quanto alegado em favor do réu pela defesa, nos debates que antecedem a votação pelos jurados, sem que seja necessário quesitação técnica quanto aos componentes de eventuais excludentes alegadas. Tal é a abrangência desse quesito, que, mesmo que os jurados respondam positivamente quanto à autoria/participação e a negativa de autoria seja a única tese alegada pela defesa, ainda assim não se mostra contraditório responderem positivamente quanto ao quesito da absolvição. Os jurados sempre podem absolver por clemência aquele que consideraram com participação no fato. A clemência compõe juízo possível dentro da soberania do Júri, ainda que dissociada das teses de defesa. (…).

Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (…), mas concedo a ordem, de ofício, para restabelecer a soberania do veredicto e determinar a absolvição do recorrente.” (RE 982.162/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – grifei)

Em suma: entendo não se revelar viável a utilização, pelo órgão da acusação, do recurso de apelação a que alude o art. 593, III, “d”, do CPP, como meio de impugnação às decisões absolutórias proferidas pelo Conselho de Sentença (Júri) com apoio no art. 483, III e § 2º, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008.

É que, segundo penso, revela-se juridicamente possível a formulação, pelos jurados, com base em sua íntima convicção, de juízo de clemência ou de equidade, sem qualquer vinculação a critério de legalidade estrita, considerados, para tanto, como vetores de tal pronunciamento, o sigilo da votação, a soberania do veredicto do júri e o caráter abrangente do quesito genérico e obrigatório de absolvição (CPP, art. 483, III), circunstâncias essas que inviabilizam o controle recursal da manifestação absolutória dos integrantes do Conselho de Sentença, tornando insuscetível, como efeito consequencial, a utilização, pelo Ministério Público, da apelação fundada no art. 593, III, “d”, do CPP.

 

Concluindo:

A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri.; e

Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo “Parquet”.

Sendo assim, e em face das razões expostas, dou provimento ao presente recurso ordinário, para invalidar o acórdão proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Apelação Criminal nº 614652- -5), restabelecendo-se, em consequência, a decisão proferida pelo Conselho de Sentença, que absolveu o ora recorrente com base no art. 483, III, do CPP (Ação Penal nº 2006.0003364-6 – Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri da comarca de Maringá/PR).

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 235.651/PR), ao E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Apelação Criminal nº 614652-5) e ao Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri da comarca de Maringá/PR (Ação Penal nº 2006.0003364-6).

Devolvam-se estes autos ao E. Superior Tribunal de Justiça.

Publique-se.

Brasília, 1º de agosto de 2019.

Ministro CELSO DE MELLO Relator”

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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