Transparência e Democracia: o capital simbólico dos regulamentos administrativos – Por Leonel Pires Ohlweiler

16/02/2017

Em meio ao conturbado início do ano para a Administração Pública Federal, no dia 05.02.2017, a Folha de São Paulo veiculou notícia sobre ofício do Ministério Público Federal enviado para a Petrobrás cobrando transparência nos processos de licitação. De fato, e os últimos acontecimentos relacionados com a Operação Lava Jato demonstram, o procedimento regulado pela Lei nº 8666/93, não o formal, mas aquele do mundo da vida, é recheado de práticas não republicanas em algumas ocasiões! O MPF recomendou, com o intuito de evitar a judicialização da questão, a publicização do chamado Demonstrativo de Formação de Preço (DFP), documento apresentado pelos licitantes interessados em contratar com a Administração com o detalhamento de como elaboraram o preço final do serviço. Segundo consta na reportagem “atualmente, o manual interno da Petrobrás preserva o sigilo, sob o argumento de que tais dados são confidenciais e fazem parte da estratégia comercial de cada um”.

Mais uma vez estamos diante do vetusto problema que ronda os assuntos públicos: o dilema entre a preservação do segredo de Estado e o acesso às informações. E o pior: as restrições ao Estado de Direito decorrem de “manual interno”.

Diversas questões poderiam ser suscitadas!

Não se pode olvidar que a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso a Informações, aprovada democraticamente após longa tramitação, regulamentou o inciso XXXIII do artigo 5º, bem como o inciso II do §3º do artigo 37 e o §2º do artigo 216, todos da Constituição Federal, e estabeleceu no artigo 3º, inciso I, a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção. Em hipótese alguma o acesso à informação é direito absoluto, mas as restrições devem ser bem explicitadas e justificadas, exatamente para evitar a frustração da indicação normativa por meio de decisões administrativas arbitrárias.

A questão sobre a publicidade das licitações realizadas pela Petrobrás é mais complexa.

Conforme o veiculado na reportagem, a linha de argumentação da estatal é que não aplica a Lei 8666/93, mas um decreto de 1998, da gestão do então Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Ora, desde 2005 o Supremo Tribunal Federal discute a questão – RE 441280/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, sobre a aplicação ou não do artigo 1º da Lei nº 8666/93 à Petrobrás, considerando os termos do Decreto nº 2.745/1998, julgamento suspenso para aguardar o voto do Ministro Gilmar Mendes, conforme dados obtidos no Informativo nº 840 do STF. O debate que está no STF gira em torno do tema da aplicação obrigatória da Lei de Licitações aos atos de caráter instrumental da companhia, relacionados com a compra de materiais de escritório, computadores, etc., e a possibilidade de flexibilizar tal incidência normativa no que tange aos atos relacionados com a atividade preponderante. Além das dificuldades hermenêuticas dessa distinção dogmática, que por vezes soa um tanto quanto artificial, o fato é que o próprio STF, por meio de alguns ministros, entende que mesmo em tais situações, a Petrobrás está sujeita ao conjunto de princípios da Administração Pública!

Portanto, não é crível que um decreto presidencial tenha o efeito de liberar do cumprimento dos princípios constitucionais do artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, por exemplo, como publicidade e a própria concepção de transparência administrativa. A grande questão é saber até que ponto atos regulamentares podem estabelecer exceções sobre acesso a informações.

Outro dado deve agregar-se ao debate.

A entrada em vigor da Lei nº 13.303, de 20 de junho de 2016, a lei que estabeleceu o Estatuto Jurídico das Estatais, abarcando empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. O diploma legal indica a ampla aplicação da transparência às empresas públicas e sociedades de economia mista, em diversos dispositivos, mas, para situar a discussão aqui formulada, menciona-se o artigo 86 segundo o qual as informações das empresas públicas e das sociedades de economia mista relativas a licitações e contratos, inclusive aqueles referentes a bases de preços, constarão de banco de dados eletrônicos atualizados e com acesso em tempo real aos órgãos de controle. Os §§ 4º e 5º disciplinam que é possível a existência de informações revestidas de sigilo “bancário, estratégico, comercial ou industrial”, mas que assim devem ser identificadas, sendo que “os critérios para a definição do que deve ser considerado sigilo estratégico, comercial ou industrial serão estabelecidos em regulamento.”

Se já é difícil implementar na órbita administrativa o efetivo acesso às informações públicas, o cuidado deverá ser redobrado relativamente aos atos regulamentares, sob pena de inviabilizar-se a dimensão pública do Estado Democrático de Direito que, para alguns desavisados gestores públicos, também alcança empresas estatais! E nem se retoma aqui o debate sobre o sigilo do valor estimado do contrato a ser celebrado, nos termos do artigo 34 do Estatuto Jurídico das Empresas Estatais.

A discussão é bem interessante, sob outro enfoque, quando se vislumbra o texto de Pierre Bourdieu, intitulado Espíritos de Estado – Gênese e Estrutura do Campo Burocrático[1]. Ao examinar questões relacionadas com a transparência e publicidade, não se pode olvidar que o Estado deve ser compreendido na sua gênese como detentor do capital de informação, fator determinante de sua influência sobre diversos outros campos, como econômico, cultural, de mercado, tecnológico, prestação de serviços, etc. A circunstância de possuir em seus registros, documentos e arquivos, diversas informações públicas, lhe confere poder, “entendido como o espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução[2]”. Por isso, não se pode olvidar, existem interesses na defesa da competência administrativa, no caso em discussão para edição de regulamento, cuja consequência será a fixação de critérios jurídicos na definição de sigilo estratégico, comercial ou industrial.

Não há dúvidas que os espaços de atuação das empresas estatais no mercado são constituídos por relevantes questões estratégicas e comerciais, mas um dos perigos reside – por mais paradoxal que possa ser – na completa falta de transparência e publicidade na construção do marco sobre tais questões, na via administrativa. Sob o argumento de atender à lógica de mercado e salvaguardar competitividade, corre-se o risco de transformar em autêntico uso burocrático de tal competência regulamentar, dotando o arbitrário de oficialidade.

Veja-se o resultado.

Enquanto o texto constitucional erigiu como direito fundamental do cidadão o aceso a informações, além da transparência e publicidade como virtudes soberanas (Ronald Dworkin), inclusive nos processos de licitação promovidos pelas chamadas empresas estatais, por outro lado confere-se o capital simbólico de determinar por meio de regulamento quando a informação não será fornecida. O ato estatal cria exatamente a divisão entre o possível e o impossível, com a roupagem de defender interesses superiores.

Ora, muito embora aqui não seja o espaço adequado para tal, todo o marco internacional de construção do direito de acesso à informação orienta-se, em linhas gerais, sobre o pressuposto de a transparência ser a regra e o sigilo a exceção. Certo, isso não resolve muita coisa, mas também se fixou o entendimento de haver regras claras sobre tais exceções, além, de indicadas em texto legal aprovado pelos parlamentos. Não é crível que a Lei nº 13.303/2016 emita um cheque em branco para o próprio Estado! Cite-se, só para exemplificar, um dos itens que consta na Declaração de ATLANTA de 27 de fevereiro de 2008, cujo texto, influenciou diversas legislações: “As exceções ao acesso a informações devem ser estritamente definidas, especificadas em lei e limitadas às permitidas pela legislação internacional. As excepcionalidades estarão sujeitas a não-deferimento em nome do interesse público, cujo princípio determinará se o benefício da liberação da informação superará o potencial dano público.”

De certo modo, o propósito é evitar as arbitrariedades dos detentores do capital de informação. Vale mais uma vez a advertência de Pierre Bourdieu quando aduz que o Estado já concentra a informação, como no caso dos processos de licitação, ou seja, os entes públicos viram uma espécie de banco informacional. Ademais, lhe é conferida a prerrogativa de analisar as informações e de redistribuir[3]. Com a competência regulamentar para definir os critérios de informações sigilosas, aumenta-se de modo assustador o capital simbólico. Por fim, menciona-se o Decreto 8.945, de 27 de dezembro de 2016, que regulamenta no âmbito da União a Lei 13.303/2016, cujo §5º do artigo 46 refere: “Os critérios para a definição do que deve ser considerado sigilo estratégico, comercial ou industrial serão estabelecidos em Decreto específico.”

Não adianta mesmo, o poder possui caráter circular, pois no caso do direito de acesso à informação a base de compreensão constitucional migrou para a normatização infraconstitucional produzida democraticamente. E por aqui, em alguns casos, deveria parar. Mas, com a potencialidade do caráter simbólico de sigilo obnubilar o acesso à informação, é crível dizer que em casos como o presente um “Decreto específico” pode valer mais que a Constituição!


Notas e Referências:

[1] Razões Práticas – Sobre a Teoria da Ação. Campinas-SP: Papirus, 1997, p. 91-135.

[2] Cf. BOURDIEU, Razões Práticas – Sobre a Teoria da Ação, p. 100.

[3] Cf. BOURDIEU, Razões Práticas – Sobre a Teoria da Ação, p. 105.

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas – Sobre a Teoria da Ação. Campinas-SP: Papirus, 1997.


 

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