Trabalho parcial e exploração total: a PEC 18/2011 e a disputa pelo não retrocesso da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes no Brasil  

09/12/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

O que é a PEC 18/2011?

O Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n.18/2011 pretende alterar o texto constitucional do artigo 7º inciso XXXIII, que proíbe o trabalho aos menores de 16 anos, salvo na condição de menor aprendiz a partir dos 14 anos.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (Brasil, 1988).

O texto da PEC, propõe a inserção da possibilidade do trabalho sob regime de tempo parcial para adolescentes acima de 14 anos, limitado a 25 horas semanais. O autor da PEC, Deputado Dilceu Sperafico (PP-PR), fundamenta que “esse regime de tempo parcial não gera nenhuma incompatibilidade com a Doutrina da Proteção Integral ao adolescente”.

Desde a primeira ementa em 2011, a PEC 18/2011 foi submetida à diversas reuniões deliberativas na Câmara dos Deputados acerca da sua admissibilidade perante o ordenamento jurídico brasileiro. Após o Relator Deputado Betinho Gomes (PSDB-PE) ter considerado a inadmissibilidade da PEC, em 2016, houve um hiato de três anos, até que, em 2019 a discussão volto à tona na Câmara, coincidentemente no mesmo ano em que começou a gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), quem em diversas vezes se manifestou favorável ao trabalho infantoadolescente por meio da flexibilização das normas vigentes. Durante esse tempo, foram apensadas várias Propostas de Emenda à Constituição na PEC 18/2011, como a PEC 108/2015 e a 274/2013. Atualmente, em 2021, após várias Reuniões Deliberativas Extraordinárias, Requerimentos de Retirada de Pauta e diversas votações, a PEC 18/2011 continua a tramitar na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), na Câmara dos Deputados.

 

Não há incompatibilidade entre a PEC 18/2011 e a Doutrina da Proteção Integral?

A Proposta de Emenda à Constituição já foi denegada por diversas instituições que fazem o atendimento direto ou lidam com os direitos das crianças, dos adolescentes e dos jovens, devido a compreensão de que ela se constitui como um atentado à Doutrina da Proteção Integral, onde as crianças e os adolescentes deixam de ser vistos como passivos e assumem a titularidade de seus direitos de educação pública de qualidade, um sistema de saúde efetivo, de fácil acesso e público, e  espaços de cultura e lazer, direitos esses que devem ser assegurados pelo Estado, pela família e pela sociedade (Brasil, 1988).

A PEC 18/2011, em retrospecto, remonta aos tempos do Código de Menores de 1979, com uma visão de bem-estar social e de segurança nacional, em que, para o Estado, existia apenas duas possibilidades para os “menores” – Empregando a terminologia do Código – estar nas ruas ou estar trabalhando (Código de menores, 1979). Isso apaga as inúmeras formas de viver a infância e a adolescência que existem no Brasil e as condições históricas de produção das desigualdades sociais, sumamente escamoteadas para fomentar a culpabilização de famílias e crianças de grupos com recortes de classe, raça e gênero bem definidos.

A defesa dessa PEC se sustenta em argumentos antiquados de que para o bem do adolescente e da sociedade, é melhor que aquele esteja trabalhando, do que, supostamente, se envolvendo com a criminalidade, as drogas e a violência nas ruas. Entretanto, são incontáveis os efeitos que o trabalho precoce causa no desenvolvimento do adolescente e a compreensão de que a exposição antecipada ao ambiente de trabalho, muitas vezes deixa esses adolescente à mercê de acidentes graves, exploração da mão de obra de baixa remuneração, em razão da pouca especialização desta, bem como a redução da aprendizagem ou até mesmo o favorecimento da evasão escolar e consequentemente a perpetuação do ciclo vicioso de pobreza.

A PEC 18/2011 mostra-se um artifício que parece promover a inserção no mercado de trabalho e melhoria financeira de muitos jovens, mas isso mascara resultados negativos a longo prazo. Dessa forma, o trabalho com uma alta carga laboral acarreta uma série de consequências negativas para jovens, entre elas a evasão escolar. Em relação a isso é fato que esta está intimamente ligada à pobreza e ao trabalho infantil, que prejudica a obtenção de um melhor desenvolvimento educacional e ascensão social. Isso desenvolve um efeito em cadeia: o jovem que necessita de renda prioriza o trabalho em detrimento da educação e perde, com isso, oportunidades de melhoria das condições de vida, sua e de seus familiares.

Estudo da Organização Internacional do Trabalho e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (OIT e UNICEF, 2020) mostra que, em 2019, quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória estavam fora da escola no Brasil. A maioria deles, crianças de 4 e 5 anos e adolescentes de 15 a 17 anos. Nesse viés, percebendo que a miséria e a pobreza coagem o jovem a submeter-se a serviços que tornam o prosseguimento de uma vida acadêmica incompatível com sua realidade, muitos jovens acabam deteriorando suas perspectivas futuras em melhores níveis educacionais e, consequentemente, provoca uma menor qualificação profissional. 

Em relação a isso, dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (IBGE, 2019), de 2019, mostram que um dos principais motivos que levam os jovens a abandonar a escola é a necessidade de trabalhar. Dos jovens que largaram a escola, 40% alegaram, na pesquisa, que o trabalho foi a principal causa. Isso considerando um cenário em que muitas pessoas são contempladas pela Lei da Aprendizagem e usufruem de qualificação profissional, ensino prático, teórico e horário compatível para o desenvolvimento de outras tarefas escolares. A redação da PEC ignora que legitimar o trabalho em “regime parcial” para pessoas a partir dos 14 anos prejudica os jovens a longo prazo, porque dificulta o desenvolvimento educacional e acadêmico, além de impedir um futuro com melhores oportunidades e remunerações. O texto da PEC 18/2011 não considera que isso só dificulta a inserção de jovens pobres em níveis mais altos do ensino acadêmico, pois na medida que propõe inserção do jovem no mercado de trabalho o estagna educacionalmente, promovendo a criação de um grande contingente de trabalhadores de baixo orçamento em um mercado com milhões de desempregados.

Concomitantemente, cabe pontuar que as crianças e adolescentes estão em uma fase de intenso desenvolvimento fisiológico, psicológico e social. A partir disso, o trabalho precoce acaba por comprometer a saúde de muitos jovens, como mostra a cartilha “Consequências do Trabalho Infantil — Os acidentes registrados nos Sistemas de Informação em Saúde”, elaborada pelo governo federal (Brasil, 2020). Nela, consta os impactos negativos que o trabalho pode provocar na saúde de crianças como prejuízos à saúde mental, sistema musculoesquelético, pele, sistema cardiorrespiratório, imunológico e nervoso. Assim, a proposta constitucional pode viabilizar o comprometimento da integridade física e psíquica de milhares de jovens e, por consequência, também de crianças, pois acaba estimulando a prática destes atos ilegais.

Portanto, se faz relevante ressaltar que a PEC pode ser considerada uma nítida legitimação de violência contra crianças e adolescentes, visto que estes ao desempenhar qualquer categoria de atividade laboral estão suscetíveis a um prejuízo de seu desenvolvimento físico, psicológico, social e moral. Em relação a isso, o trabalho infantil é uma forma de violência, porque acaba por transformar precocemente as crianças e os adolescentes em adultos, submetendo-os as situações que prejudicam seu processo de crescimento e desenvolvimento, expondo-os as ocorrências de doenças e a atrasos na formação escolar e, até mesmo, a sequelas que acabam sendo irreversíveis na vida adulta (MINAYO-GOMEZ E MEIRELLES, 1997). Essa Proposta de Emenda Constitucional é, por óbvio, uma violação de anos de progresso no desenvolvimento de uma legislação de proteção dos direitos de crianças e adolescentes.

Não obstante, as considerações acerca da problemática desta PEC 18/2011 não se limitam à agressão à Doutrina da Proteção Integral. O entendimento do Supremo Tribunal Federal de que os direitos individuais estão espalhados pela Carta Magna, encaminha para a compreensão dos Direitos Sociais previstos nos artigos 6º e 7º da Constituição como Direitos Individuais dos trabalhadores e, por consequência, pautando-se no texto do Art. 60 da citada, reforça o status de cláusula pétrea destes artigos. Adquirindo grau de irrevogabilidade e não podendo, tampouco, ser alterados.

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV - os direitos e garantias individuais.

Para complementar a inconstitucionalidade da PEC, o texto desta confronta ativamente o princípio de vedação ao retrocesso social, uma vez que a proposta em si, bem como seus apensados representam um enorme retrocesso no sistema de proteção dos direitos da criança e do adolescente, consequentemente a tutela dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos.

 

Mobilizações sociais contra este absurdo legislativo

Desde a primeira apresentação da PEC, várias organizações em prol do combate ao trabalho infantil expuseram suas oposições e protestos. Ainda hoje, em 2021, com a PEC em tramitação na Câmara dos Deputados, esses protestos estão tendo mais relevância do que nunca. O Instituto Brasileiro de Direito da Criança e do Adolescente (IBDCria) emitiu uma nota pública de repúdio contra a PEC, alegando desrespeito e infringência às convenções da Organização Mundial do Trabalho (OIT) e da Organização das Nações Unidas (ONU). Ademais, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança (CONANDA), também anunciou uma nota pública de protesto contra a Proposta, elencando, ao decorrer do texto, não só inconstitucionalidades, mas também vários impactos negativos na sociedade, caso a PEC seja aprovada. Ainda, as redes nacionais: ECPAT Brasil, Comitê Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e ANCED- Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, manifestaram-se de forma impetuosa contra a PEC 18/2011, arguindo que o trabalho infantil é uma grave violação dos Direitos Humanos e que o Estado deveria assegurar orçamento público para a proteção integral da criança e do adolescente como uma prioridade absoluta. Essas foram algumas das várias organizações que se opuseram à Proposta de Emenda Constitucional 18/2011, a qual, há dez anos, causa muitas polêmicas e impasses, devido ao seu conteúdo nocivo à integridade humana.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesso em 01 de dezembro de 2021, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores – Revogado pela Lei nº 8.069, de 1990. Acesso em 01 de dezembro de 2021, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1970-1979/L6697.htm#art123.

BRASIL.  Cartilha Consequências do Trabalho Infantil — Os acidentes registrados nos Sistemas de Informação em Saúde. GOV: 2020

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Trabalho Infantil 2019 PNAD Contínua. IBGE:2019.

MINAYO-GOMEZ, C. e MEIRELLES, Z.V. Crianças e adolescentes trabalhadores: um compromisso para a saúde coletiva Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(Supl. 2):135-140, 1997.

Organização Internacional do Trabalho e do Fundo das Nações Unidas para a Infância. Trabalho infantil: Estimativas globais de 2020, tendências e o caminho a seguir. OIT-UNICEF: 2020.

 

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