Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 19/12/2015
“O imperativo de não torturar deve ser categórico, não hipotético; tortura é um mal absoluto, não relativo; não existem torturas más e outras benéficas”.
Ernesto Sábato
A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes - Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1984 – em seu artigo 1º definiu tortura como sendo: “qualquer acto pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência...”
Quando se fala em tortura no Brasil logo se remete ao passado e o regime militar (1964 a 1985). Embora o Brasil tenha, em 28 de setembro de 1989, ratificado a Convenção contra a tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, a tortura não acabou, não é coisa do passado e nem exclusividade do regime militar ditatorial e de exceção. Naquele período o emprego da tortura pelas forças de segurança era política de Estado e sua pratica tornou-se institucionalizada.
No segundo volume dos quatro livros sobre a ditadura militar ELIO GASPARI[1] em “A Ditadura Escancarada” explica os “Anos de Chumbo” que vai, segundo o autor, desde 1969, logo depois da edição do AI-5 em 13 de dezembro de 1968, ao extermínio da guerrilha do Partido Comunista do Brasil, nas matas do Araguaia em 1974. De acordo com ELIO GASPARI “Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi substituída por um regime a um só tempo anárquico nos quartéis e violento nas prisões. Foram os Anos de Chumbo”. Mais adiante, prossegue o jornalista e escritor, afirmando que: “Os oficiais-generais que ordenaram, estimularam e defenderam a tortura levaram as Forças Armadas brasileiras ao maior desastre de sua história. [2]A tortura tornou-se matéria de ensino e prática rotineira dentro da máquina militar de repressão política da ditadura (...)” Dois conceitos prevaleciam: i) concepção absolutista de segurança da sociedade – “A segurança pública é a lei suprema” – “Contra a Pátria não há direitos”, informava uma placa no saguão dos elevadores da polícia paulista; ii) funcionalidade do suplício – “havendo terrorista, os militares entram em cena, o pau canta, os presos falam e o terrorismo acaba”[3].
Infelizmente, trinta anos após o fim da ditadura militar, o emprego da tortura permanece fazendo milhares de vítimas anônimas em um Estado que se pretende democrático e de direito com algumas diferenças.
Enquanto durante a ditadura a tortura era praticada, principalmente, contra os estudantes, os intelectuais e os que de uma maneira ou outra se opunham ao regime, atualmente, a tortura é perpetrada, maiormente, contra os excluídos de uma vida com o mínimo de dignidade, marginalizados, miseráveis, favelados, negros, analfabetos, enfim, aqueles que compõem a clientela do sistema penal brasileiro.
No regime militar de exceção os opositores – inimigos – eram etiquetados como “terroristas” e “comunistas”; os criminalizados de hoje são etiquetados como “perigosos” e “traficantes”.
Constata-se que o emprego da tortura e dos maus-tratos deixou de ser arma da repressão política para se transformar em instrumento de “investigação”, de “punição” e de “vingança” na mão de policiais civis e militares. Além das torturas, há aqueles que são sumariamente executados pelo sistema penal - os “indignos de vida”.
A Anistia Internacional já constatou que práticas como aplicação de eletrochoques, espancamentos com palmatória, afogamento parcial, pau-de-arara e outros meios infames são constantemente empregados pela polícia, seja no momento da prisão de um “suspeito” por integrante da Polícia Militar ou em um “interrogatório”, onde se obtém uma “confissão espontânea”, realizado por agente da Polícia Civil.
Relatório anual da ONG Human Rights Watch (HRW) revelou que diariamente seis pessoas são vítimas de tortura no Brasil. A maioria delas, 84%, estão em penitenciárias, delegacias e unidades de internação de jovens. Os dados divulgados, como um capítulo do relatório mundial da entidade, são baseadas nas denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. De janeiro de 2012 a junho de 2014 foram relatados 5.431 casos de tortura.
O relatório da HRW apresentado em janeiro deste ano destaca uma série de desafios na área de direitos humanos em relação à violência policial, além de impunidade registrada durante o período que o país esteve sob o regime militar (1964-1985). Segundo a ONG, nos primeiros nove meses de 2014, a polícia do Estado do Rio de Janeiro matou 436 pessoas - em São Paulo, foram 505 mortes registradas em incidentes policiais no mesmo período. São Paulo fechou o ano com 728 mortes em confrontos entre policiais e suspeitos, diz a ONG. Os números representam aumento de 97% em SP no ano.
Segundo o delegado MARCELO BARROS CORREIA[4], autor do livro “Polícia e tortura no Brasil: conhecendo a caixa das maçãs podres”, muitos policiais começam a torturar amparados por uma moralidade socialmente aceita de que a tortura é legítima para solucionar e resolver crimes. No entanto, na prática, "a tortura é usada para fins pessoais como na resolução de crimes patrimoniais que oferecem recompensas e ascensão profissional ao policial". Para CORREIA, a tortura atual não é fruto da ditadura militar, mas de uma ideia de opressão aos grupos menos organizados da sociedade que remonta ao período colonial.
Dúvida não há de que boa parte da sociedade elitizada não só tolera a tortura praticada pela polícia como também glorifica, sob o argumento de que “bandido” não é torturado, assim como “policial” que combate a criminalidade não é “torturador”. Descontextualizar o “bandido”, no dizer preciso de BEATRIZ VARGAS RAMOS[5], “é uma forma eficaz de racionalizar e programar sua eliminação física, pela negativa de sua condição humana, única forma pela qual o executor também não será visto como torturador. Assim, nem é cidadão o bandido e nem é torturador quem o tortura”.
A história recente do Brasil, como bem observou LEONARDO BOFF[6], “está em continuidade com seu passado, quase sempre escrita apenas pela mão branca. Nela não falaram e se falaram não foram ouvidos, os negros, os índios, os mulatos, as mulheres e os pobres em geral”.
Urge que esta história comece a ser escrita pelas vítimas da opressão, pelas minorias, pelos discriminados, pelos vulneráveis, pelos torturados, enfim, por todos que foram sempre excluídos por uma sociedade perversa. Para tanto é necessário que a democracia deixe de ser apenas formal e passe a ser material, social e participativa, efetivamente.
Por fim, necessário que haja por parte do Estado e da sociedade um compromisso indissociável com a dignidade humana e com os direitos humanos. Que os direitos humanos sejam realmente de todos e para todos, inclusive, para aqueles que torturam ou defendem a tortura, porque tortura nem para os que a defendem.
Belo Horizonte, primavera de 2015.
Notas e Referências: [1] GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. [2] ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015. [3] GASPARI, Elio. A ditadura escancarada... ob. cit. [4] CORREIA, Marcelo Barros. Polícia e tortura no Brasil: conhecendo a caixa das maças podres. Curitiba: Appris, 2015. [5] RAMOS, Beatriz Vargas. Nas botas do capitão Nascimento. In Discursos Sediciosos. Crime, direito e sociedade. Ano 17, n. 19/20. Rio de Janeiro: Revan, 2012. [6] BOFF, Leonardo. A violência contra os oprimidos: seis tipos de análise. . In Discursos Sediciosos. Crime, direito e sociedade. Ano 1, n. 1. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
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