Tópicos Teóricos de Direito Processual – Por Afrânio Silva Jardim

21/06/2016

1 – O processo (judicial) não é uma relação jurídica. Criador e criatura não se confundem. Ele cria a relação jurídica que vincula os sujeitos que nele atuam, através de direitos, deveres, poderes, faculdades, sujeições e ônus (todos processuais). O processo é uma categoria jurídica autônoma, não cabendo ser enquadrado em outra já cunhada pela Teoria do Direito. O processo é um conjunto de atos jurídicos, concebidos de forma sistemática e finalística, através dos quais o Estado presta jurisdição. Ele se desenvolve dialeticamente, com estrutura informada pelo princípio do contraditório: afirmação (tese), negação (antítese) e síntese (decisão).

2 – As impropriamente chamadas “condições da ação”, na verdade, não são condições para a existência do direito de ação, mas sim condições para o seu regular exercício. Elas se referem ao abuso do direito de ação. É importante distinguir o direito do  exercício do direito;

3 – As condições para o regular exercício do direito de ação e os pressupostos processuais são preliminares à resolução do mérito do processo.  A falta de uma destas categorias acarreta a extinção do processo sem exame do mérito (a falta de um pressuposto de validade deve apenas levar à anulação do processo). Entretanto, as condições para o regular exercício do direito de ação e os pressupostos processuais não se confundem, pois se referem a categorias diversas: a primeira regula como o direito de ação deve ser exercido e a segunda cuida dos requisitos mínimos para a existência e desenvolvimento válido do processo.

4 -  Sendo vedado que um direito de ação seja exercido mais de uma vez (litispendência ou coisa julgada), a chamada “originalidade” é uma condição para o regular exercício do direito de ação e não pressuposto processual negativo, como entende a doutrina tradicional. A falta de originalidade da ação está relacionada com o abuso deste direito e não com a validade dos atos processuais do segundo processo.

5 – Pretensão, enquanto categoria processual, é a manifestação de vontade do autor no sentido de que o juiz dê prevalência ao seu interesse em detrimento do interesse do réu. A pretensão é exteriorizada ou materializada através do pedido. Desta forma, o pedido é o objeto do processo, ou seja, é o ponto de convergência de toda a atividade jurisdicional.

6 – A pretensão deve ser polo central da teoria geral do processo, já que a lide pode ocorrer ou não. O réu pode não resistir à pretensão do autor (lide), sem que isto impeça a existência do processo e da relação processual. Assim, o que deve servir para distinguir o processo do procedimento de jurisdição voluntária deve ser a existência ou não de pretensão e não a existência ou não de lide. Neste particular, a lide não serve como elemento distintivo.

7 – Sem pedido (que exterioriza a pretensão) não há o exercício do direito de ação. Neste caso, sem pedido, a denúncia, queixa ou petição inicial têm a natureza de mera comunicação ao juiz de fatos ou condutas ilícitas. No Direito Proc. Penal, chamaríamos de “notitia criminis”. Destarte, o pedido é pressuposto de existência do exercício do direito de ação.

8 – Na impropriamente chamada jurisdição voluntária, não há ação (pretensão deduzida em juízo), não há processo e jurisdição no sentido próprio. Temos sim requerimento, procedimento (que cria uma relação jurídica entre os interessados) e atuação meramente judicial. Não há autor e nem réu. Por isso, pode a lei outorgar a outro órgão público a mesma função (tabelião, no caso de divórcio consensual, por exemplo).

9 – A jurisdição voluntária decorre de uma opção política do legislador de exigir a manifestação de vontade do juiz para viabilizar ou dar eficácia a um determinado negócio jurídico. O juiz nada julga, mas participa, de alguma forma, da consumação do negócio jurídico. Por isso, sustentamos que a homologação judicial do acordo de cooperação premiada tem a natureza de atividade de jurisdição voluntária no processo penal. Por vezes, ela está mais ligada ao direito material do que ao direito processual.

10 - No processo penal, não se admite ação condenatória sem um lastro probatório mínimo, tendo em vista que a instauração do processo penal já pode ser um dano irreparável para o réu ou dano de difícil reparação. Desta forma, o suporte probatório mínimo é uma condição para o regular exercício do direito da ação penal condenatória. Tal conjunto probatório se refere não só à autoria e materialidade do delito, mas deve dar arrimo a tudo o que se narrou na denúncia ou queixa. Cuida-se de constatar a existência de tal prova e não valorá-la.

11 – No processo civil, sempre que se exigir algum requisito para o exercício do direito de ação (prova pré-constituída, determinado documento, depósito de alguma quantia, etc), estaremos diante de uma condição específica para o regular exercício desta ação civil (mandado de segurança, ação civil pública, anulação de testamento, ação rescisória, etc).

12 – Não cabe ao juiz se declarar competente ou incompetente no inquérito policial ou no inquérito civil, pois não há atividade jurisdicional ainda. Não há ação, processo e jurisdição. Somente diante do que for narrado na peça inicial (petição inicial, denúncia ou queixa), é que o juiz poderá examinar a sua competência. Antes disso, teria que raciocinar com uma acusação hipotética ou petição inicial imaginária, que pode não ser a futuramente oferecida pelo autor da eventual ação.

13 – Descabe ao juiz declarar extinta a punibilidade do indiciado no inquérito policial ou peças de informação, pois ainda não há ação, processo e jurisdição. Na hipótese, a decisão deve ser sobre o arquivamento, não sendo a extinção de punibilidade o objeto da decisão, mas sim razão de decidir. Desta forma, surgindo prova nova de que efetivamente a punibilidade do indiciado não está extinta, o direito de ação penal pode ser regularmente exercido.

14 – A decisão de arquivamento do inquérito ou peças de informação não faz coisa julgada material, pois não há ação, processo e jurisdição. O juiz, ao decidir pelo arquivamento, não deve afirmar que o indiciado agiu justificado por uma excludente de ilicitude, mas sim que o Ministério Público não dispõe de suporte probatório mínimo (condição da ação) para narrar, na denúncia, uma conduta ilícita, consoante exige o art.41 do Cod. Proc. Penal.

15 -  O chamado arquivamento implícito do inquérito policial não pode decorrer de um mero esquecimento do Ministério Público. Para sua existência, precisamos de uma manifestação de vontade que, embora não expressa, se depreenda das circunstâncias do caso concreto. Por exemplo, após oferecer uma denúncia, na sua promoção ao juiz, o órgão da acusação diz expressamente que denuncia apenas alguns dos indiciados, arrolando os outros como testemunhas. Desta forma, o eventual e futura aditamento para incluir, na denúncia, estes indiciados vai exigir prova nova, pois este aditamento importa no desarquivamento do arquivamento implícito. Caso não se admita o instituto do arquivamento implícito, os não denunciados permaneceriam eternamente como indiciados...

16 – A chamada imputação alternativa é uma consequência do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública condenatória, já que o Ministério Público tem suporte probatório mínimo em relação a duas ou mais infrações penais. O que caracteriza a imputação alternativa é que o reconhecimento da prática de um dos crimes importa na inexistência dos outros. Os crimes são excludentes. Exemplo: roubo e receptação por um só indiciado. Na imputação alternativa, não se violam o direito de defesa e o contraditório, pois as duas infrações penais são detalhadamente descritas na denúncia, havendo lastro probatório mínimo em relação a elas.

17 – A proposta da transação penal, prevista na lei 9.099/95, traz embutida uma imputação de uma infração penal de pequeno potencial ofensivo. Caso aceita pelo acusado, o juiz aplicará uma pena não privativa de liberdade. Por isso, tal proposta não mitiga o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública. O arquivamento do termo circunstanciado só pode ocorrer nas mesmas hipóteses do arquivamento do inquérito policial ou peças de informação.

18 – A proposta de suspensão do processo, prevista na lei 9.099/95, é uma exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, preenchidos determinados requisitos. Por isso, o juiz não pode fazer tal proposta, pois só o titular do direito de ação pode dele dispor.

19 -  No processo penal, o ônus da prova é todo da acusação. O artigo 41 do Cod. Proc. Penal exige que a parte autora impute ao réu um crime, com todas as circunstâncias juridicamente relevantes. Assim, a dúvida sobre qualquer dos elementos do crime é dúvida sobre o que o autor da ação alegou e não convenceu o juiz.  O réu nada tem que provar, embora lhe possa ser útil colocar em dúvida os fatos da acusação. Quando o réu alega fatos de seu interesse, na verdade, o faz para negar os fatos alegados primeiramente pela acusação na sua denúncia ou queixa. Assim, a  dúvida sobre a veracidade do álibi alegado pelo réu é, na verdade, dúvida sobre a veracidade dos fatos alegados primeiramente pela acusação na denúncia ou queixa.

20 – O princípio “in dubio pro reo” se refere à autoria, nexo de causalidade, tipicidade (objetiva e subjetiva), ilicitude ou reprovabilidade da conduta imputada ao réu, bem como das demais circunstâncias que devem ser narradas na peça acusatória. Trata-se de regra de julgamento para orientar o juiz, no caso de dúvida, quando exauridos todos os meios probatórios.

21 – No sistema acusatório, o juiz não deve produzir prova senão após toda a atividade probatória das partes. Não estando exauridos os meios probatórios, permanecendo o órgão jurisdicional em dúvida sobre fato relevante, deve determinar a realização de determinada diligência, buscando formar o seu convencimento. Por isso, para evitar questionamentos, até de cunho filosófico, devemos substituir a equivocada expressão “busca da verdade real” pela expressão “busca do convencimento do juiz”. A verdade absoluta dos fatos ele nunca saberá e talvez o réu e vítima também não saibam.

22 – A parte final do art. 395 do Cod. Proc. Penal é inconstitucional por ferir os princípios da ampla defesa e do contraditório. Não pode o juiz considerar, na sua sentença condenatória, circunstância agravante do delito que não conste da acusação, como exige o art. 41, ao tratar dos requisitos da denúncia ou queixa.

23 – Em alegações finais, o Ministério Público não pede ou não retira o pedido formulado na denúncia. Fora da denúncia, todos os pronunciamentos dos vários órgãos do Ministério Público têm uma eficácia de mero parecer, sem qualquer vinculação a quem quer que seja.  A ação penal pública é indisponível, conforme está expresso no art. 41 do Cod. Proc. Penal. Neste particular, o art. 385 foi técnico, pois se refere expressamente a mero “opinamento” do Ministério Público. Desta forma, não viola o sistema acusatório a previsão legal de o juiz condenar o réu, ainda que o Min. Público tenha opinado pela absolvição. A independência do Poder Judiciário não permite que o Min. Público possa determinar o conteúdo da decisão judicial. Se houvesse esta vinculação, na verdade, quem estaria decidindo o mérito do processo seria o Min. Público, o que seria um despautério.

24 – O artigo 384 do Cod. Proc. Penal não autoriza que o Ministério Público possa substituir uma imputação feita na denúncia por outra imputação cuja prova tenha surgido no curso do processo. A ação penal pública é indisponível, nos termos do art. 42.  A correta aplicação deste artigo pressupõe a manutenção do chamado “fato principal”. Exemplo: imputação originária de furto, surgindo prova nova de que tal subtração se deu com violência à vítima, cabe o aditamento para imputar o crime de roubo (mesma subtração do mesmo bem). Se surgir prova de que o réu praticou o crime de receptação e não de furto, deve o Ministério Público opinar por sua absolvição em face do furto e depois denunciá-lo pela receptação, salvo se admitirmos a imputação alternativa superveniente.

25 – Se é verdadeira a premissa de que o ato nulo não produz efeitos desde a sua existência jurídica e o ato anulável produz efeitos até ser desconstituído, no processo civil, penal e trabalhista não teríamos ato nulo (nulidades) e sim atos anuláveis (anulabilidades absolutas ou relativas). O ato processual produz efeitos até ser anulado pelo juiz. Havendo coisa julgada, estes efeitos se tornam perenes. Talvez tenhamos que trazer, para o Direito Processual, os três planos distintos: existência, nulidade e eficácia, já estudados pela teoria geral do direito.

26 – O interesse em recorrer de uma determinada decisão judicial não depende, necessariamente, da sucumbência. Em outras palavras: quem sucumbiu tem interesse, mas o recorrente pode ter interesse sem ter sucumbido, como acontece com o recurso de terceiro que não era sujeito da relação processual e muitas outras situações. Damos outros exemplos: o réu absolvido por insuficiência de prova tem interesse em apelar, visando ser absolvido por legítima defesa. O Ministério Público tem interesse em recorrer em prol da correta aplicação da lei penal, ainda que isto leve à absolvição do réu.

27 -  Anulado o processo em razão de recurso exclusivo da defesa, a nova sentença não poderá ser mais gravosa do que a anterior. Caso contrário, teríamos a “reformatio in pejus indireta”. Por vezes, na teoria do direito, o nulo produz efeitos.

28 – A prisão processual, em qualquer de suas espécies, por não ser pena, não deve admitir o regime de progressão próprio da sanção penal. Para tanto, seria necessário aceitar a execução provisória da pena, já que a sentença ou acórdão condenatório substituiriam o título anterior da prisão do réu. O réu estaria agora preso como efeito da condenação.  Por outro lado, o princípio da presunção da inocência tem sido um óbice ao instituto da execução provisória da pena, criando-se uma contradição em nosso sistema processual penal. Somente o legislador futuro poderá resolver este problema, já havendo sugestões neste sentido.r

29 – No Tribunal do Júri, tendo em vista o quesito genérico e obrigatório sobre a absolvição do réu, passou-se a admitir que o acusado seja absolvido por mera clemência, independentemente de qualquer tese jurídica, como era próprio deste tribunal popular, na sua origem inglesa. Nesta hipótese, não se sabendo o motivo de absolvição, não se pode dizer que a decisão foi manifestamente contrária à prova dos autos, motivo pelo qual aqui não cabe mais a apelação do Ministério Público ou do ofendido (ou sucessores processuais).

Tendo em vista as garantias próprias do Estado de Direito, o Estado-Ministério Público só está legitimado a aplicar a pena ao réu se provar que ele praticou um crime doloso contra a vida (direito penal do fato). Já para a defesa, vigora o “direito penal do autor”, vale dizer, os jurados podem entender que, embora o réu tenha sido autor de uma conduta penalmente típica, não necessita ele de ser submetido ao regime carcerário. Esta tese foi pioneiramente sustentada pela filha Eliete Costa Silva Jardim, em relevante trabalho publicado no site Empório do Direito e em vários livros e revistas.

30 – A tendência de privilegiar a vontade das partes – nem sempre de livre manifestação – em detrimento do sistema processual legislado, acarreta uma danosa privatização do nosso processo penal. Trata-se de uma vetusta visão liberal individualista, que amesquinha o caráter público da atividade jurisdicional do Estado e do próprio processo que, de há muito, não mais é “coisa das partes”. Diferentemente do que se pensava no longínquo passado, no processo penal, a prática de um crime não cria um conflito entre o autor do delito e a vítima, mas sim entre o criminoso (que não deseja ser punido) e a sociedade juridicamente organizada (que tem o dever de punir). A reparação patrimonial da vítima é desejável e deve ser buscada, mas não pode ser o escopo primeiro do processo penal.

 

Rio de Janeiro, outono de 2016. .


Imagem Ilustrativa do Post: Books in Chetham's Library // Foto de: Pete Birkinshaw // Sem alterações

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