Por Leonardo Isaac Yarochewsky e Bárbara Bastos - 21/11/2015

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada 

Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato

(...)

Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um!
Maldita Geni![1] 

A paulistana Gabriela Leite, nascida em uma família de classe média, cursava Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), trabalhava em um escritório e frequentava círculos da boemia intelectual paulistana. No final da década de 1960, decidiu tornar-se prostituta e ficou conhecida como a principal defensora dos direitos humanos das prostitutas, e criou, em 1992, a ONG “Davida” e a grife “DASPU”, além de ter escrito o livro “Filha, mãe, avó e puta – A história de uma mulher que decidiu ser prostituta”. Militante desde o ano de 1979 defendia a regulamentação da prostituição e a organização da categoria. Em 2010, candidatou-se a uma vaga na Câmara dos Deputados e, apesar de sua não eleição e posterior falecimento, em 2013, deixou um legado substancial, hoje representado pelo Projeto n° 4.211/2012, conhecido como Projeto de Lei Gabriela Leite[2].

Apresentado pelo Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), o projeto “regulamenta a atividade dos profissionais do sexo”, e, em suas disposições, define quem é considerado profissional do sexo, veda a prática de exploração sexual, concede direitos trabalhistas a esse profissional e altera dispositivos do Código Penal. Ao justificar o Projeto, o Deputado expõe que: “a prostituição é atividade cujo exercício remonta à antiguidade e que, apesar de sofrer exclusão normativa e ser condenada do ponto de vista moral ou dos ‘bons costumes’, ainda perdura. É de um moralismo superficial causador de injustiças a negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de contradição causadora de marginalização de segmento numeroso da sociedade”.

Inspirado pela lei alemã que regulamenta as relações jurídicas das prostitutas (ProstG)[3] e pelos não bem sucedidos projetos do então deputado Fernando Gabeira (PV-RJ)[4] e Eduardo Valverde (PT-RO)[5], o referido projeto parte do pressuposto de que o exercício da prostituição é uma das práticas mais antigas, disseminadas e conhecidas do mundo. Porém, é indubitável o preconceito, a discriminação e o repúdio que gera em virtude da existência de moralistas e fascistas que tripudiam e intentam, cada vez mais, reduzir até eliminar por completo os direitos e garantias fundamentais de cidadãos das classes minoritárias, em favor da imposição de um modo de ser cáustico, casuísta e totalitário.

Para os intolerantes, é sinal de repugnância, devassidão, libertinagem e aviltamento a atividade lucrativa consistente na cobrança monetária em virtude da prática de atos sexuais. Comumente, depara-se com manchetes, tais como “O Povo Sofre: moradores de São Paulo sofrem com a prostituição em parques[6] e “GCM retira prostitutas da região da Sé[7].

Assim, apesar de não ser considerada típica a conduta dos profissionais do sexo, estes são diuturnamente criminalizados, por via transversa, pelo tabu social que os circunda e pela ausência de regulamentação da ocupação rechaçada pela opinião pública (da) Para exemplificar, recomenda-se assistir o curta “69 – Praça da Luz[8] e verificar a reação dos conservadores. No citado filme, cinco mulheres revelam suas experiências vividas durante vários anos de prostituição.

Em que pese à discussão acerca dos direitos trabalhistas, da autonomia e liberdade de escolha, que evidentemente circundam a temática, urge observar a deturpação, discriminação e preconceito elevados a seu grau máximo e por vezes olvidados quando esses profissionais são levados à instância e faceta mais radicais de todo o sistema jurídico: a penal.

O vício em drogas como o crack faz com que algumas mulheres troquem sexo por dinheiro, e transforme isto um meio de sobrevivência, com fincas em obterem mais da substância entorpecente. Na maioria das vezes, e invariavelmente, são introduzidas no sistema penal e duplamente punidas: pelo crime legalmente previsto que cometeram e pelo crime subliminar e implícito de serem profissionais do sexo.

Não bastasse a criticável e pífia criminalização do uso de drogas ilícitas e de seu comércio ilegal que movimenta bilhões de dólares ao redor do mundo todo ano, não raro veem-se juízes e tribunais contribuindo sobremaneira para a deterioração da dignidade humana e colaborando para o aumento sistemático do encarceramento em todo o país.

A dosimetria da pena e a adoção do critério trifásico relativo a esta intentou eivar de racionalidade uma prática que, em seu cerne, é, per si, de difícil mensuração. Não obstante, há quem consiga agravar a técnica punitivista, tecendo considerações como “conduta social e personalidade: desfavoráveis, pois que ganha a vida como garota de programas sexuais[9], na ocasião de auferir-se a pena-base da sentenciada que ao final foi condenada a pena de 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses por “tráfico”.

Decisões como a citada e outras do gênero que consideram a “condução de vida”, próprias de um “direito penal do autor” ferem frontalmente os princípios constitucionais e garantistas do direito penal, em especial, os princípios da culpabilidade e da lesividade.

Em razão do princípio “nullum crimen sine culpa”, uma culpabilidade pela conduta de vida do agente vai de encontro ao direito penal do fato e, portanto, deve, também, se rechaçada.

Punir uma pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum)  é, segundo Salo de Carvalho[10], abandonar “as amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita) no que tange ao aumento da pena, substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente mau (mala in se).”

Importante salientar que na culpabilidade pelo fato o agente não é desconsiderado, posto que não seja possível esse se desligar do fato, em momento algum, conforme adverte Toledo[11], “é o fato que dará os concretos e definitivos limites para a atuação do Estado na esfera penal”.

De tal modo, no direito penal, verdadeiramente comprometido com a dignidade do ser humano e com o Estado Democrático de Direito, teremos um direito penal do fato – descrição de modelos de condutas proibidas - que considere também o autor sem, contudo, descrever tipos de autor.  No dizer de Toledo[12]o direito penal moderno é, basicamente, um direito penal do fato. Está constituído sobre o fato-do-agente e não sobre o agente-do-fato.”

Segundo Zaffaroni[13], “uma pessoa se coloca em situação de vulnerabilidade quando o sistema penal seleciona e a utiliza como instrumento para justificar seu próprio exercício de poder”. A situação de vulnerabilidade, de acordo com Zaffaroni, é produzida pelos fatores de vulnerabilidade, que podem ser classificados em dois grandes grupos: posição ou estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal para a vulnerabilidade. A primeira situação, posição ou estado de vulnerabilidade é predominantemente social (condicionada socialmente) e consiste no grau de risco ou perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria, etc., sempre mais ou menos amplo, como também por se encaixar em um estereótipo, devido às características que a pessoa recebeu”. Já a segunda situação, esforço pessoal para a vulnerabilidadeé predominantemente individual, consistindo no grau de perigo ou risco em que a pessoa se coloca em razão de um comportamento particular. A realização do ‘injusto’ é parte do esforço para a vulnerabilidade, na medida em que o tenha decidido com autonomia[14].

Além de clara e manifesta violação ao princípio constitucional penal da culpabilidade, corolário da dignidade da pessoa humana, decisões que consideram o modo de ser e de viver do agente e que punem o individuo pelo que ele é, pelo seu caráter e personalidade, também, afronta o princípio da lesividade já que não há nestes casos ofensa a nenhum bem jurídico.

O princípio da lesividade, na precisa lição de Nilo Batista[15], compreende quatro funções: proibir a incriminação de uma atitude interna; proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas desviadas que não afete qualquer bem jurídico.

Sem embargo das diversas concepções ou teorias acerca da culpabilidade, teoria psicológica e teorias normativas, bem como das teorias funcionalistas, está assentado no direito penal atual à responsabilidade pela prática de fatos (direito penal do fato) comissivos ou omissivos, afastando-se, assim, qualquer responsabilidade pelo modo de ser do agente, fundada no modo de vida ou no caráter (direito penal do autor). Sendo, certo que o agente só poderá ser punido por sua conduta e jamais pelo que ele é ou deixa de ser.

Outro aspecto relevante no que se refere às decisões (sentenças) que se assenta em estados ou condições existenciais, ou seja, no modo de ser e de viver da pessoa, diz respeito ao princípio da secularização – separação entre o direito e a moral – não é demais repetir que o direito penal só pode ser um direito penal da ação, que o homem somente pode ser julgado pela sua conduta (ação ou omissão) e jamais pelo que ele é ou deixa de ser.

Para Ferrajoli[16]se aplicado ao processo, e consequentemente aos problemas da jurisdição, o princípio normativo da separação - entre direito e moral - impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou, ainda, sobre outros aspectos substanciais da personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno, constituem as únicas coisas que podem ser empiricamente provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos morais sobre uma pessoa, mas apenas individuar os seus comportamentos vedados pela lei. Um cidadão pode ser punido apenas por aquilo que fez, e não pelo que é”. (grifamos)

Assim sendo, é incabível condenação ou qualquer exacerbação da pena (agravamento, causo de aumento de pena etc.) com base no que a pessoa é ou deixa de ser. Como já foi dito alhures, só pode ser penalizado condutas e comportamentos que lesione direitos de outras pessoas e que ofendam algum bem jurídico. Comportamentos imorais e pecaminosos que não afeta bem jurídico devem ser excluídos definitivamente do direito penal. Não importa e não deveria interessar ao direito penal a condição da pessoa. Portanto, se a pessoa é ou deixa de ser “prostituta”, “garota de programa”, “homossexual”, “bissexual”, “transexual”, “vadio”, “vagabundo”, “bruxo”, “macumbeiro”, “judeu”, “muçulmano”, “ateu”, “negro”, “cigano”, “muambeiro”, “maconheiro”, etc., mas não praticou nenhum ato capaz de ofender determinado bem jurídico, não pode, em hipótese alguma, ser punida ou ter de algum modo sua pena elevada em razão do seu estado ou condição pessoal.

Por tudo, é abominável, arbitrário e autoritário qualquer exacerbação da pena em razão da conduta do agente, do seu modo de ser e viver, de sua personalidade e do seu caráter. Ao elevar a pena-base (art. 59 do Código Penal) considerando a “conduta social e personalidade: desfavoráveis, pois que ganha a vida como garota de programas sexuais”, como fez o prolator da sentença em comento é, sem dúvida, situação que remete a figura abjeta de “direito penal do autor” própria de regimes fascistas.

Não sendo despiciendo lembrar que afinal, a garota de programa é como disse o poeta, “dessas mulheres que só dizem sim, por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim...

Belo Horizonte, Primavera de 2015.


Notas e Referências:

[1] "Geni e o Zepelim" é uma canção brasileira, composta e cantada por Chico Buarque Esta canção fez parte do musical Ópera do Malandro, do mesmo autor, lançado em 1978, do álbum, de 1979, e do filme, de 1986, todos com o mesmo nome.

A letra descreve em versos heptassílabos metrificados e rimados, a longa história que define o episódio ocorrido com Geni, uma travesti (segundo representado na "Ópera do Malandro"), que era hostilizada na cidade. Diante de uma ameaça de ataque de um Zepelim, o comandante se encanta com os dotes de Geni, que acaba sendo provisoriamente tratada de um modo diferenciado pelos seus detratores. Passada a ameaça, ela retorna ao seu dia-a-dia normal, no qual as pessoas a ofendiam e excluíam, revelando o caráter pseudo-moralista e hipócrita da sociedade.

A canção teve tal relevância que o refrão “Joga pedra na Geni” se transformou numa espécie de bordão, indicando como Geni pessoas ou até mesmo conceitos que, em determinadas circunstâncias políticas, se tornam alvo de execração pública, ainda que de forma transitória ou volátil. (Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Geni_e_o_Zepelim>)

[2] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1012829

[3] http://www.juareztavares.com/textos/prostituicaobr.pdf

[4] http://www.camara.gov.br/sileg/integras/114091.pdf

[5] http://www.camara.gov.br/sileg/integras/244114.pdf

[6] https://www.youtube.com/watch?v=NbcKufbHo5E

[7] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,gcm-retira-prostitutas-da-regiao-da-se-imp-,579892

[8] http://curtadoc.tv/curta/diversidade-sexual/69-praca-luz/

[9] Processo nº 0024.14.229.520-3, 3ª Vara de Tóxicos, Comarca de Belo Horizonte/MG.

[10] CARVALHO, Salo. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, p. 154.

[11] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 252.

[12] Idem, p. 235.

[13] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 264-281.

[14] ZAFARONI, ob. cit.

[15] Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 92-94.

[16] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica e auts. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 208.


Sem título-1

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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

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Bárbara Bastos

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Bárbara Bastos é Estagiária e Acadêmica de Direito da PUC-Minas.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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