Todo dia é dia da mulher?

08/03/2018

Coordenador Marcos Catalan

Desde muito as mulheres disputam o espaço público e a participação nos núcleos de debates que influenciam a condução das democracias, de modo que a representação das mulheres é reivindicada pelo movimento feminista, cuja história demonstra que o reconhecimento de determinados direitos é intrínseco à conquista desses espaços por e para as mulheres. No entanto, a permissão de transitar nos meios de construção das democracias se expressa a partir da divisão sexual do trabalho e por todo conjunto do que é viver a partir de valores e classificações determinadas pelo sexo; pela divisão genérica dos espaços sociais: criação-procriação, público-privado, pessoal-político; pela existência de formas, relações, estruturas e instituições hierárquicas de poder e domínio autoritário, fundadas na exploração de alguns grupos por outros, que delimitam suas capacidades de decidir; pela definição da mulher enquanto ser social em torno de uma sexualidade expropriada, procriadora ou erótica, de um corpo que serve aos outros.[1] Consequentemente, a dificuldade enfrentada pelas mulheres quando pretendem se libertar do espaço privado revela que todas estão à disposição dos outros e sob o domínio dos homens e de suas instituições patriarcais e classistas.

Ainda assim, paralelamente à opressão que todas as mulheres estão submetidas por sua condição genérica, existem diferenças entre elas devido à sua situação histórica e particular de vida, formando-se níveis de intensidade e alcance dessas opressões, que são o objeto de uma análise interseccional das experiências das mulheres. Presente, o sistema patriarcal se desenvolve e se adequa a partir do surgimento de determinados feitos e atua a fim de perpetuar o controle da sexualidade da mulher, elemento nuclear da opressão,[2] de modo que toda a relação social de dominação existente entre uma relação sexual se constitui na divisão entre o masculino-ativo e o feminino-passivo, configurando os desejos de ambos os sexos.[3]

Desse modo, o controle exercido pelo poder patriarcal objetiva a manutenção da ordem econômica, pois o logro de manter a mulher no espaço privado e, ao mesmo tempo, encantada por cumprir papéis sociais estereotipados, reconhece nelas a ideia de que necessitam ser protegidas, já que são responsáveis pela existência humana e, então, dependentes de ações materiais e simbólicas realizadas por homens. Percebe-se, que o poder exercido é a essência da subordinação e está presente em todas as relações sociais, bem como na reprodução dos sujeitos sociais, no público e no privado. No ponto, o movimento feminista passa a vindicar uma vida sem discriminação às mulheres, e apesar das oposições logra um câmbio paradigmático por intermédio da exigência de que os direitos das mulheres fossem considerados direitos humanos, intensificando o vínculo entre igualdade e não discriminação.[4]

A batalha travada pelas mulheres para ser parte desses espaços conduziu, em 1910, na Segunda Conferência de Mulheres Socialistas, a aprovação da proposta de um dia de luta pela libertação das mulheres e, alguns anos mais tarde, em 1917, a participação das mulheres na Revolução Russa[5] marcou, como conta Alexandra Kollontai, o dia em que as mulheres trabalhadoras saíram às ruas, ergueram a tocha da revolução proletária e incendiaram o mundo. Após anos e a partir de 1960, o Dia Internacional das Mulheres é retomado como data de luta do movimento feminista, sendo que a existência de um dia comum segue sendo imprescindível para a mobilização de uma longa e sólida cadeia do movimento de mulheres proletárias.[6] Ocorre que, a incorporação pela Organização das Nações Unidas do 8 de março incentivou um viés institucional da comemoração e, em especial, depois dos anos 1980, a data foi cooptada pela sociedade de consumo e pelas felicitações que o capitalismo impõe.Os meios de comunicação e as diversas instituições e empresas transformaram a data em mais um evento do mercado, “[...] um dia de flores, de homenagens, de presentes... e de reforço da feminilidade tradicional. Nos últimos anos esse tem sido até mesmo um movimento de investida antifeminista: jornais e revistas publicam artigos questionando se o feminismo ainda existe ou se ainda é necessário buscar a igualdade”.[7] Possível que as/os leitores tenham passado os olhos em algumas chamadas de notícias sobre a espera dos segmentos do comércio para um aumento nas vendas em razão do dia da mulher, só as floriculturas marcam aumento de mais de 70% que o comum. Ademais, muitos espaços realizam promoções destinadas às mulheres, como as grandes livrarias, que prometem desconto de 50% em livros, mas não em todos, apenas os para mulheres. Pelo dito, defende-se, assim, que nem todo dia é dia da mulher. O 8 de março se inscreve num contexto histórico e ideológico muito concreto e seu objetivo, em seu começo, não foi, contrariamente à ideia amplamente difundida, a rememoração de nenhuma catástrofe que envolveu um grande número de mulheres, mas sim reafirmar a população feminina um direito tão elementar como o do sufrágio. Logo, a recuperação histórica do significado da data é uma contribuição importante para a reflexão sobre o que é constitutivo da luta feminista: a afirmação, cada vez mais, da autonomia e da soberania das mulheres e de igualdade entre os sexos tem que ser parte fundamental de todos os processos de transformação.[8]               

Nesse sentido, tomo a liberdade de, nesse espaço, agradecer o movimento 8M-Porto Alegre, que organizou com poucos braços e com muita garra, uma marcha a fim de reafirmar a data como parte da militância, como parte de um projeto de construção de um movimento de mulheres fortes, capaz de atuar em conjunto com outros movimentos e organizações sociais, que articule a luta pela libertação das mulheres e pela transformação das relações de classe e raça[9]. Por isso, é urgente reconectar as mulheres ao passado, recuperar o sentimento de pertencimento, ao lugar, ao terreno e às pessoas que formam parte da rotina e da convivência, seja no trabalho, seja no ambiente doméstico, para retomar o significado do Dia da Mulher e seguir a construir as condições para uma transformação integral das relações sociais. 

Avante mulheres!

 

[1] LAGARDE Y DE LOS RÍOS, Marcela. Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas. Universidad Nacional Autónoma de México, Ciudad Universitaria, Coyoacán, 2005, p. 175-76.

[2] SAFFIOTI, Heleieth I.B. Gênero Patriarcado Violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p.47.

[3] BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A condição feminina e a violência simbólica. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: BetBolso, 2016, p. 38.

 

[4] FACIO, Alda. Viena, 1993, cuando las mujeres nos hicimos humanas. In: LAGARDE, Marcela; VALCARCEL, Amelia. (Orgs). Feminismo, género e igualdad. Madrid: Pensamiento Iberoamericano, 2011, p. 6-7.

[5] “Após sua aprovação na Segunda Conferência de Mulheres Socialistas, em 1910, inspirada no Woman’s Day (Dia da Mulher) organizado pelas socialistas dos Estados Unidos, as comemorações de um dia internacional das mulheres organizadas pelas militantes socialistas ocorreram em dias diferentes a cada ano nos distintos países. [...] Foram as manifestações das mulheres na Rússia, no dia 8 de março de 1917 (23 de fevereiro segundo o antigo calendário russo) que motivaram a escolha do dia 8 de março como a data comum para a comemoração. [...] A confluência das comemorações do Dia Internacional das Mulheres com a greve das operarias têxteis e a revolta das mulheres com a escassez de alimentos foi o estopim da Revolucao de Fevereiro de 1917.”ÁLVEREZ, González. Ana Isabel. As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. Tradução Alessandra Ceregati. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p.13.

[6] KOLLONTAI, Alexandra. International Women’s Day. Clevand, Ohio: Hera Press, 1982. Microfilme.

[7] ÁLVEREZ, González. Op.cit, p.17.

[8] Ibidem. Op.cit, p.25.

[9] Ibidem. Op.cit., p.11.

 

Imagem Ilustrativa do Post: 8M - Marcha Mundial das Mulheres // Foto de: Renata Fetzner // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/SitmJ9

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura