Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
Após 2 anos, em razão da pandemia, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomou os julgamentos em plenário classicamente presencial nesta semana, em 27 de abril de 2022.
Na assentada o Ministro Sérgio Kukina, Presidente do Colegiado, suscitou Questão de Ordem, de relevância jurídica e prática, no julgamento do REsp 1.638.772/SC, de relatoria da Ministra Regina Helena Costa, no sentido de ter o STJ que adequar suas teses de temas de REsp’s Repetitivos sempre que o Supremo Tribunal Federal (STF) definir teses de Repercussão Geral em sentido diverso.
Trata-se do Tema 994/STJ que tinha, até então, a seguinte redação, definida em 26 de abril de 2019, exatamente 3 anos passados:
Os valores de ICMS não integram a base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta - CPRB, instituída pela Medida Provisória n. 540/2011, convertida na Lei n. 12.546/2011.
Em entendimento oposto o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral 1.187.264/SP, em 24 de fevereiro de 2021 definiu, por maioria[i], tese no Tema 1.048 com o seguinte teor:
É constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta - CPRB
Em juízo de retratação no referido REsp 1.638.772/SC, portanto, o STJ alterou a tese do Tema 994 para uma redação idêntica à do STF:
É constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta - CPRB.
A Questão de Ordem suscitada tinha o objetivo de alterar procedimento que vem sendo adotado pela 1ª Seção do STJ em tais situações, notadamente, conforme exposto pelo Min. Sérgio Kukina, por entender que o STJ não deve reescrever a tese, mas sim cancelar o tema, assim como se cancelam as súmulas.
Afirmou, ainda, que a adequação da tese de tema de REsp Repetitivo, em termos constitucionais, poderia ser interpretado no sentido de uma usurpação de competência do STF pelo STJ, que tem o papel de definir temas infraconstitucionais.
Todos os ministros que se manifestaram sobre a Questão de Ordem foram acordes com estes fundamentos, nada obstante, por vislumbrarem certa dificuldade prática e procedimental na gestão processual de REsp’s interpostos nos tribunais de origem, decidiram manter o procedimento de readequação da tese pelo STJ quando o STF se posiciona em Repercussão Geral com uma interpretação contraposta.
Nesse sentido, a Mina. Assussete Magalhães pontuou que simplesmente cancelar o tema traria inconveniente no caso de interposição apenas de REsp, com dificuldade para os tribunais de origem no julgamento de admissibilidade.
O Min. Herman Benjamin destacou a possibilidade de aumento da carga de trabalho do próprio STJ.
O Min. Mauro Campbell explicou que, não mais existindo tese em tema de REsp Repetitivo, se não for interposto RE, mas apenas REsp, a parte teria que, eventualmente, apresentar Reclamação para o STF manter sua tese, já que o STJ não teria instrumento processual vigente para alterar as decisões dos tribunais que sejam dissonantes àquele tema que foi cancelado.
A Mina. Regina Helena disse que a ausência de tese de REsp Repetitivo obstaria a aplicação nos REsp's nas origens, para se negar seguimento com base na tese do Resp Repetitivo, adicionando que esta situação geraria efeitos no cabimento dos recursos, com reflexo entre Agravo Interno versus Agravo em Recuso Especial.
O Min. Gurgel de Faria assentiu com o entendimento da maioria então formada.
Uma indagação que também foi feita pelo Min. Sérgio Kukina, em contraposição, foi a de que os tribunais de origem podem negar seguimento a REsp com base em tese de Repercussão Geral, o que, muito embora tenham também concordado os outros ministros com esta posição, pelos critérios procedimentais e pragmáticos acima apontados a Questão de Ordem foi rejeitada.
O debate jurisdicional é oportuno e ilumina situação processual e procedimental entre posições contrárias dos Tribunais Superiores não vislumbrada pelo Código de Processo Civil, o que vem recebendo atenção da doutrina.
Luiz Guilherme Marinoni, a propósito, utiliza o termo “zona de penumbra” em situações como a presente:
Existe, nessa dimensão, uma zona de penumbra que recai sobre as funções do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, a exigir urgente e adequada elaboração teórica destinada a evitar maior desgaste ao Poder Judiciário. Essa zona de penumbra constitui o resultado da falta de percepção de que todos os juízes têm o dever de interpretar a lei conforme à Constituição, de que a construção democrática dos precedentes pressupõe ampla discussão e debate sobre a interpretação da lei, e de que as funções das duas Cortes jamais poderão ser desempenhadas com racionalidade e efetividade, em proveito do desenvolvimento do direito, da segurança jurídica e da coerência do direito, enquanto estiverem sobrepostas[ii].
Trata-se, a rigor, não apenas de uma singela questão prática-procedimental. O que se vislumbra é a própria essência das competências constitucionais dos Tribunais Superiores, em matérias constitucionais e infraconstitucionais que se sobrepõem, e da racionalidade dos precedentes vinculantes.
Com efeito, é certo que o que deve prevalecer é o entendimento definido em Repercussão Geral, considerando ser estabelecido em termos constitucionais e, se há reconhecimento de constitucionalidade pelo STF, consectariamente há afirmação – mesmo que não expressa – da inconstitucionalidade de entendimentos contrários, como eventual tese em tema de Recurso Especial Repetitivo.
Situação diversa um pouco mais complexa é se foi o STF que usurpou competência do STJ ao julgar RE com interpretação de legislação infraconstitucional, o que não é objeto deste texto[iii].
Os fundamentos para a rejeição da Questão de Ordem, como se viu, atinem à uma gestão processual, às consequências práticas da alteração do procedimento, o que demonstra a internalização no âmbito do STJ – parece-nos adequado afirmar -, das disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, particularmente o art. 20.
Estas consequências práticas-procedimentais têm relevância de análise. O cancelamento do tema de REsp Repetitivo e sua consequente inexistência impossibilita, por óbvio, a negativa de seguimento pelos tribunais de origem dos REsp’s com base no tema cancelado, o que não impede a inadmissibilidade por ofensa à tema de Repercussão Geral.
Acaso alterada a tese do REsp Repetitivo, como vem decidindo o STJ, para adequar à tese de Repercussão Geral, contendo a tese do STJ menção sobre a constitucionalidade, haverá duas teses idênticas proferidas por ambos Tribunais Superiores que tem competências constitucionais diversas.
Daí algumas reflexões a respeito destas sobreposições, umas singelas, outras mais complexas:
a) o recorrente, no REsp, prequestiona matéria constitucional conforme a tese do REsp Repetitivo, que é expressa sobre a constitucionalidade da matéria?
b) o recorrente, muito embora o acórdão tenha prequestionamento apenas infraconstitucional, além do REsp também interpõe RE?
c) se não interposto RE, ainda se aplica a súmula 126 do STJ[iv]?
d) no juízo de admissibilidade as Vice-Presidências dos tribunais admitem ambos recursos, se interpostos? d.1) encaminham primeiro para o STJ ou STF?
e) se o STJ entender ser matéria constitucional – como consta, aliás, na tese do tema de REsp Repetitivo – julga o recurso com fundamento constitucional? e.1) converte, nos termos do art. 1.032 do CPC, o REsp em RE?
f) no STF, julga-se o REsp convertido? f.1) devolve o STF o recurso para o STJ para aplicar sua tese e do próprio STJ sobre a (in)constitucionalidade da controvérsia?
g) inadmitido o REsp na origem com base no tema de REsp com questão constitucional e também, nas sequência, o Agravo Interno interposto, eventual Reclamação deve ser apresentada perante o STJ? g.1) o STJ julgaria Reclamação para assentar seu precedente com expressa matéria constitucional? g.2) ou a Reclamação em REsp deve ser proposta no STF? g.3) ou, ainda, prudente propor duas Reclamações, uma para cada Tribunal Superior?
h) por último, se houver tema de REsp definido e posterior julgamento de Repercussão Geral com interpretação oposta, as Vice-Presidências dos tribunais de justiças e federais devem já negar seguimento aos REsp’s antes da alteração da tese do tema de REsp Repetitivo pelo STJ? h.1) neste caso, caberia Agravo Interno por ambas as partes, por ofensa à ambos precedentes, do STF e STJ?
Evidente que no presente espaço da Coluna não se aprofundará as vicissitudes – jurídicas-processuais-constitucionais e pragmáticas – que a Questão de Ordem debatida no âmbito do STJ suscita. O objetivo é apenas trazer a celeuma jurisdicional ocorrida em torno de uma (in)coerência sistêmica, impingir reflexões das competências constitucionais de ambos Tribunais Superiores na federação brasileira e a necessidade de amadurecimento das questões, interlocução institucional e aprimoramento do procedimento relativo à importantes pronunciamentos judiciais vinculativos da jurisdição, que refletem e geram efeitos em todos os setores, públicos e privados.
O que se debate, enfim, é a segurança jurídica.
Notas e Referências
[i] Conforme consta no Acórdão: “Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Virtual do Plenário, sob a Presidência do Senhor Ministro LUIZ FUX, em conformidade com a certidão de julgamento, por maioria, apreciando o tema 1048 da repercussão geral, acordam em negar provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro ALEXANDRE DE MORAES, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros MARCO AURÉLIO (Relator), RICARDO LEWANDOWSKI, CÁRMEN LÚCIA e ROSA WEBER. Foi fixada a seguinte tese: ‘É constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta CPRB’. Brasília, 24 de fevereiro de 2021”.
[ii] MARINONI, Luiz Guilherme. A zona de penumbra entre o STJ e o STF. O controle incidental de constitucionalidade a partir dos precedentes do STJ, In, Direitos fundamentais, dignidade e Constituição: estudos em homenagem à Ingo Wolfgang Sarlet, p. 726-727.
[iii] Na obra referenciada Luiz Guilherme Marinoni afirma “que ao Supremo Tribunal Federal não cabe interferir sobre a interpretação da lei, ainda que nos termos da Constituição, mas apenas controlar a constitucionalidade da interpretação delineada e definida pela Corte incumbida de atribuir sentido à lei federal” (p. 727). O ex-Presidente do STJ, Min. Nilson Vital Naves, já afirmou: “6. Não é útil, conveniente e nem é legítimo ao Supremo entrar na matéria infraconstitucional, cuja jurisdição pertence ao Superior. Significa que é vedado o conhecimento do extraordinário a pretexto de ofensa à Constituição e, em seguida, o desfecho da causa fundado no direito infraconstitucional (provimento). De acordo com o sistema vigente, apenas o Superior tem autorização constitucional, mediante o recurso especial, para decidir as causas aplicando-se-Ihes o direito ordinário. 7. As decisões do Superior, tratando-se de matéria infraconstitucional, hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada, tanto como já o são as oriundas de recurso especial, quanto haverão de sê-lo as provenientes do exercício das competências originária e ordinária” (O Superior Tribunal e a Questão Constitucional, p. 290). Disponível em: https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/EJur/article/download/3745/3866.
[iv] Súmula 126/STJ: “É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário”.
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