Por Diego Crevelin de Sousa – 09/01/2017
Em 2016, Lenio Streck encerrou sua coluna Senso Incomum, no Conjur, com artigo denunciando que aquele foi o ano em que o direito mais apanhou da jurisprudência[1]. Ele tem razão. Claro, não vem de agora. É filme velho. Mas no ano passado a coça realmente foi feia. Extraordinária. Acachapante! O breve ranking por ele listado e demais decisões citadas constituem exemplos contundentes.
E olha que ele deixou de fora do seu rol as inquietantes decisões proferidas na esteira do art. 139, IV, do Código Fux[2]. Desnecessário citar alguma. Basta ver uma. Qualquer uma. Talvez, poucas se salvem.
Agora, faça-se justiça: o dispositivo, por si só, não é o culpado pelas atrocidades levadas a efeito a pretexto da sua aplicação.
Substancialmente, ele não difere do art. 461 do diploma vigente até 17.03.2016. A única inovação digna de nota é que estende as medidas indutivas às execuções de pagamento de quantia, de resto dado absolutamente insuficiente para justificar a desafortunada guinada que assistimos. Curioso notar que, embora há anos se apregoe a prevalência da tutela específica sobre genérica, ao tempo do direito anterior inexistia o vulgar estímulo ao uso de soluções desse naipe, que ora avançam despudoradamente sobre os mais comezinhos direitos e garantias fundamentais. De algum modo, a dignidade da pessoa humana e a regra da menor onerosidade (antes, art. 620; hoje, art. 805) fizeram barreira.
Para ficar num exemplo: hoje, há quem defenda a suspensão do CPF ou do CNPJ do executado que não paga o valor devido, o que jamais foi advogado em relação ao executado que descumpria ordens mandamentais expedidas pelo Estado-juiz (qualquer que fosse o período de descumprimento ou conteúdo da ordem inadimplida). Só que o pagamento de quantia não é ontológica nem moralmente superior ao de qualquer obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa diversa de dinheiro, razão por que nada justifica que à sua efetivação sejam postas medidas executórias mais potentes que as destinadas às demais modalidades obrigacionais (se bem que direitos específicos, in natura, costumam reclamar maior necessidade de pronta efetivação, dado o risco de perecimento ou inutilidade – p.ex. a execução de determinado procedimento cirúrgico ou a proibição de uma transmissão televisiva irregular).
Então, a que se deve essa drástica mudança?
Contemporaneamente, surgiu um dado novo e relevante: o frenesi doutrinário que estimula essas descabidas excentricidades. De uma hora para a outra, parte da doutrina (é a ela que se dirige esta reflexão) resolveu dar legitimação simbólica a tais soluções.
Talvez produto da própria inconsequência. A (inconfessável) associação de executado a meliante (de fato, há devedores contumazes e desprezíveis, mas isso não lhes tira a condição de sujeitos de direito e, pragmaticamente, eles sequer representam a totalidade daqueles que se veem impossibilitados de solverem seus débitos e se encontram às voltas com uma execução) e a insistência na bandeira da efetividade a todo custo (o vociferado processo de resultados, que ao invés de moderar o discurso transformou-se em veleidade que promete muito mais do que é capaz de entregar, e, por isso mesmo, se constituiu em inesgotável fonte de frustrações) geraram um processo de maturação perversa que atiçou com gasolina o fogo da intolerância. Ignorando que o juiz jamais realizará legitimamente o direito se o executado não tiver patrimônio expropriável e suficiente – técnica executória alguma supera esse dado da realidade socioeconômica! –, a (compreensível, mas perigosamente estimulada) indignação com o insucesso da tutela jurisdicional foi forjando até inconscientemente o imaginário reducionista de que os fins justificam os meios, redundando em corriqueiras soluções (constrições ou medidas indutivas) de duvidosa legalidade bancadas com o fito de constranger o executado a dispor “voluntariamente” do que não lhe pode ser tomado à força. Isso em pleno Estado Democrático de Direito!
O raciocínio é circular e capcioso (podendo até ser defendido sem essa percepção): partindo das premissas de que “o propósito e a promessa são corretos” e “o fim perseguido só não é atingido porque o executado é renitente”, conclui-se que a única solução possível é atribuir (compulsivamente) cada vez mais poderes executórios ao Estado-juiz (mutatis mutandis, a mesma lógica por detrás dos poderes oficiosos antecipatórios, instrutórios, de flexibilização procedimental além das hipóteses do art. 139, VI, CPC, de edição de provimentos vinculantes – quando compreendidos como mecanismos de redução do acervo e interdição do debate – etc., quem sabe capazes de conduzir a uma espécie de poder total). Em regra, quando se trata da efetividade da tutela executiva – por todos desejada, frise-se –, o discurso hegemônico despreza a substancialidade garantística do processo[3] (na verdade, essa concepção que é alvo de certa irritação), desconsidera alternativas possíveis (p.ex. discutir seriamente o rol de bens absolutamente impenhoráveis para buscar a sua alteração por lei) e aposta apenas no empoderamento do juiz por meio de regras de malha aberta (o que vira terreno fértil para a suplementação do arbítrio dada a inexistência de uma consistente teoria da decisão capaz de fazer efetivos os mecanismos de controle), mesmo que essa preferência não apresente comprovações empíricas do seu êxito. Parece não se perceber que insistir em discurso irrealizável é a receita ideal para alimentar o monstro do autoritarismo[4].
Bem verdade que a mudança de parte da doutrina, já com reflexos em decisões, mormente de primeiro grau, é o dado aparente de uma equação complexa. Não é fácil precisar quem é causa ou consequência. E mesmo no contexto atual, de notório enfraquecimento da doutrina (deve ser sempre lembrada a célebre frase de então Ministro do STJ a dizer que “não me importam o que dizem os doutrinadores”[5]) e pelo qual ela tem sua parcela de culpa, pois aceitou ser subjugada pelos tribunais, descabe indagar, conquanto interessante a especulação, se ela emulou algo novo ou se foi apropriada estrategicamente pela jurisprudência. De fato, em alguma medida, todos estamos envolvidos.
De um lado, exequentes partem da legítima pretensão de satisfação de seus créditos, mas não se incomodam em receber “não importa como” (lembremos: para cada decisão inusitada em termos de medidas indutivas há um requerimento do mesmo jaez). De outro, executados não abrem mão de proteções legitimamente erguidas em seu favor pela lei processual (p.ex. regras de impenhorabilidade), embora também, não raro, abusem protelatoriamente do processo (o que explica – mas não justifica – a prática de certos abusos contra si). Entre os dois, o Estado-juiz se vê pressionado a realizar pronta e integralmente o direito, conquanto deva atentar para a condição de assegurador dos direitos e garantias fundamentais[6], inclusive do executado, que também os tem, máxime aqueles voltados à preservação da sua dignidade. Não se olvide a influência da realidade circundante, presente na figura da fantasmagórica “opinião pública”. Veículos de mídia não especializada e o público em geral estão cada vez mais metidos nos assuntos jurídicos, antes restritos às raias dos especialistas, com a diferença de que, em regra, suas preocupações são utilitaristas, sem qualquer compromisso com as garantias processuais (eles as consideram filigranas que protegem o “mau pagador” e frustram o atingimento da “justiça”, compreendida, grosso modo, no ponto, como pagamento “seja como for”; não por acaso se regozijam com notícias de penhoras extravagantes ou incomuns medidas de indução, impreterivelmente retumbantes sucessos de visualização e compartilhamento nas redes sociais). Não fosse bastante, o poder simbólico exercido pela doutrina e pela jurisprudência ficam comprometidos em face do raro alcance de consensos acerca do que se pode, ou não, fazer em termos de efetivação da tutela executiva (não só em relação à execução, na verdade). Alguns identificam e respeitam o que compreendem como limites, enquanto outros, certamente munidos dos mais nobres propósitos, ali divisam espaços de insuficiência normativa pelos quais é possível avançar e inovar. Da imbricação de tudo isso, é cada vez mais corrente a banalização do discurso jurídico pela assunção de razões leigas na explicação teórica (doutrina), condução dos processos e tomadas de decisões (jurisprudência), com a fragilização da autonomia do direito[7] (exemplo frisante é a opinião de alguns atores jurídicos, inclusive membros dos mais altos Tribunais do país, de que é “necessário ouvir a voz das ruas” para decidir). Enfim, há sempre uma tensão dialética entre visões concorrentes de mundo, cujos modos-de-ser conduzem a resultados diversos, embora pareça inegável que, hoje, a pretensão de satisfação “a todo custo” ganha com folgas – e avança a passos largos, mesmo que não se saiba pra onde...
Compreendida a existência desse intrincado amálgama, insiste-se: no tema em questão, o primeiro sinal claro no sentido da mudança de orientação foi dado pela doutrina e por isso essa reflexão se volta a ela. Foi a doutrina, sem lastro jurídico-positivo, quem apontou para esse caminho, sempre na crença de que outorgar cada vez mais poder ao Estado-juiz mediante cláusulas gerais e medidas atípicas é a única (ou principal) alternativa à efetividade da tutela executiva.
Parte significativa da doutrina deseja que seja assim. Mas o desejo surge na falta. E é preciso cuidar do desejo porque nunca se goza o bastante (psicanaliticamente falando). Há sempre um resto a gozar… O risco é o de virar refém de um desejo que encerra um ciclo vicioso. O exemplo do consumismo é irritantemente irrefutável (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho): ligando o consumo à satisfação, sempre se quer consumir mais. Porém, como aí o consumo visa suprir um vazio que vem de outro lugar, ele nunca basta. Preenche-se (falsamente) o vazio com novas aquisições (que geram mais vazio). Não é diferente com o desejo de poder. Quando se atrela a concessão de poderes à obtenção de determinados resultados sem se indagar sobre a legitimidade e os limites da sua obtenção, cai-se numa armadilha: não alcançados os fins, roga-se por mais poder. O problema é que quando os fins são irrealizáveis a concessão de poderes jamais será suficiente. Sempre faltará poder... O problema do poder jamais será o excesso, mas a falta. É um ciclo vicioso em que o poder reproduz poder em escala incontrolável, até o ponto em que se concebe o poder como um fim em si mesmo, o poder pelo poder. Talvez isso explique, ao menos em parte, o que se passa com a empolgação de parte da doutrina em torno das medidas indutivas.
Por outro lado, o valor da novidade, conquanto efêmero – o tempo de validade da condição de novidade é cada vez mais curto, vide, p.ex., o ritmo frenético de sucessão dos ciclos tecnológicos –, tem um extraordinário poder de distrair a atenção de tudo que é estabelecido (descartabilidade própria da modernidade e tempo líquidos, das quais fala Bauman). E isso também dialoga com a questão em liça.
É que, ao tempo do CPC/73, setores da doutrina e da jurisprudência buscavam justificativas tão criativas quanto insustentáveis para estender o uso da prisão civil para além das raias da execução de alimentos, ainda que em caráter excepcional. A tese mais corrente e pretensamente sofisticada era a de que ponderação do constituinte originário (definir que só cabe prisão civil contra o devedor de alimentos – a hipótese do depositário fiel foi afastada pelo STF, no RE 466.434/SP) não impediria uma segunda ponderação pelo juiz, no caso concreto. Mas ao admitir o afastamento do art. 5º, LXVII, CRFB, regra fechada com antecedente e consequente definidos de modo consideravelmente claro e preciso, jamais se explicou adequadamente o que restaria das garantias individuais contra os abusos do poder (inclusive do Judiciário), em si, e o papel do Legislativo como fonte produtora dessas proteções mínimas, corroendo a força da tripartição de funções (art. 2º, CRFB)[8]. Outra via argumentativa percorrida era a invocação atípica da figura do contempt of court, como se faz nos países aderentes à tradição do common law (pelo visto, essa colonização é um novo/eterno fetiche de parte da processualística pátria), tão veementemente focada na tutela da autoridade da corte que nem se constrangia por arrostar texto expresso da Constituição posto para garantir o cidadão de proteção contra os abusos do poder. Em ambos os casos, presente um perigoso movimento de fragilização normativo-constitucional (êxito do que “se quer” sobre o que “se pode”) sob o pretexto da efetividade.
Mas não é que agora, com o aludido dispositivo da novel legislação processual, a prisão civil tem sido relegada até mesmo nas execuções de alimentos? Ironicamente, mesmo ali frações da doutrina e da jurisprudência, tão influentes quanto anárquicas, têm preferido a aplicação de medida atípica, definida ao sabor da casuística inventividade do decisor, ao invés do emprego pronto e empiricamente mais eficaz da prisão civil[9]. Uma mescla curiosa entre o desejo pelo (poder) que falta e a fragilização do institucionalizado na esteira do fascínio produzido pelo “novo”. Até que surge outro brinquedinho… e começa tudo outra vez. Ad infinitum.
É preocupante o que se tem visto a pretexto do art. 139, IV, da lei processual civil. Há quem defenda a proibição de frequentar determinados lugares, ou, mais amplamente, restrições de fim de semana (seja lá o que isso for!). E a doutrina, em parte, dando corda. Sem oferecer elementos que definam os limites para o uso adequado do referido preceito. Acomodada, esperando a jurisprudência fazer… Abrindo mão do seu papel (crise de identidade (?)) de fornecer constrangimentos epistemológicos (Lenio Streck). Sem nem ao menos se perguntar: se tudo isso é possível diante do novo dispositivo e ele não difere substancialmente do art. 461 do Código anterior, por que ninguém pensou nisso antes (ou mais atrás ainda, desde o art. 84 do Código de Defesa do Consumidor), ainda que restrito às obrigações específicas? Dormimos no ponto esse tempo todo? Ou seria o despertar do desejo de (mais) poder? A devoção pelo “novo” (que sequer existe enquanto novo!)? Afinal, o que aconteceu para, de repente, termos tanta ousadia?
Com a licença da analogia, pense-se numa criança que, querendo uma bola e estando frustrada por haver ganhado um livro, resolve usar o recebido como se o querido fosse – ao invés de ler o livro, chuta-o. Pura pirraça, pois sabe que a destinação empregada é inadequada. O que fazer? Incentivar essa conduta? É uma alternativa, mas os efeitos colaterais podem ser terríveis na formação psíquica de quem vive ensimesmado e tem de interagir socialmente. Melhor sinalizar o limite. Interditar. Fazer entender que nem sempre ganhamos o que queremos (ou julgamos merecer). Afinal, viver exige conviver (e, no extremo, não é esse o papel do direito?).
Finalmente, 2017 chegou. Que sejamos mais comportados. Que aceitemos os limites. Que não façamos pirraça, nem tenhamos orgulho dela. Parafraseando Streck, que neste ano sejamos apanhados pela vergonha redentora[10].
Notas e Referências:
[1] http://www.conjur.com.br/2016-dez-29/senso-incomum-breve-ranking-decisoes-fragilizaram-direito-2016. Acessado em 02.10.2017.
[2] Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (…) IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.
[3] Estabelecendo as bases do processo como instituição de garantia, consultar o brilhante texto de Eduardo José da Fonseca Costa: http://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Acessado em 02.01.2016.
[4] Autoritarismo, aqui, entendido como toda forma de exercício do poder estatal mediante a fragilização dos direitos. A amplitude é proposital porque normalmente são lembrados apenas os modelos processuais de corte socialista e fascista, deixando de fora o processo edificado pela ideologia neoliberal, cujo discurso eficientista, porém, é igualmente corrosivo dos direitos e garantias fundamentais. Atentando para o ponto, cite-se Dierle José Coelho Nunes (Processo Jurisdicional Democrático. Juruá. 2008. p.157-176). Para uma ampla compressão dos fundamentos, propósitos e características de modelos processuais liberal, social, fascista e gerencial, consultar o extraordinário texto de Eduardo José da Fonseca Costa: Uma Espectroscopia Ideológica do Debate entre Garantismo e Ativismo. in Ativismo Judicial e Garantismo Processual. Coords. Fredie Didier Jr, José Renato Nalini, Glauco Gumerato Ramos e Wilson Levy. Jus Podivm. 2013, p.171-186.
[5] A frase é do Ministro do STJ Humberto Gomes de Barros, registrada no AgReg em ERESP 279.889-AL: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”. Não deixa de ser curioso que, algum tempo depois, o mesmo Ministro manifestou preocupação com o modo como o STJ vinha decidindo, naquilo que muito espirituosamente batizou de “jurisprudência banana boat”. http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI64574,101048-Gomes+de+Barros+Jurisprudencia+do+STJ+deve+funcionar+como+um+farol. Acessado em 02.01.2017. Quem sabe a fragilização da doutrina e a hipertrofia da autoconsciência de cada Ministro, tão enfatizada na fala inicialmente transcrita, possa, de algum modo, ter contribuído para o estado de coisas que, mais a diante, veio a inquietar Sua Excelência.
[6] Sobre a necessidade de o juiz ser visto como garantidor dos direitos e garantias fundamentais, vale ler o brilhante texto de Dierle Nunes e Lúcio Delfino: http://www.conjur.com.br/2014-set-03/juiz-visto-garantidor-direitos-fundamentais-nada
[7] No contexto, Lúcio Delfino fala, corretamente, na naturalização do indevido processo legal: http://www.conjur.com.br/2016-jun-01/lucio-delfino-naturalizacao-indevido-processo-legal. Acessado em 02.01.2016.
[8] Partindo do conceito de economia da confiança desenvolvido por Scott Shapiro, Bruno Torrano produziu crítica brilhante à pretensão de reponderação. Seu texto foi produzido no contexto da decisão do STF – especialmente do voto do Ministro Luis Roberto Barroso – no bojo dos pedidos cautelares formulados nas ADC´s 43 e 44, mas atende perfeitamente a reflexão aqui realizada. Isso, porque aquelas ações têm por objeto a declaração de constitucionalidade do art. 283, CPP, que toca o tema da presunção de inocência, enquanto aqui se fala da prisão civil, ambas, cada uma a seu modo, dirigidas à disciplina concebida/ponderada pelo constituinte originário ao direito fundamental de liberdade. Ora, como o STF – no caso objeto do texto de Bruno – e a doutrina – no tema aqui tratado – sustentam uma segunda ponderação dos interesses individuais e coletivos a respeito do direito fundamental de liberdade, autorizando juízes a afastarem a deliberação do constituinte originário acerca de direito fundamental de primeira geração com status de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, CRFB), tem-se evidente a relevância do seu texto in casu. Mesmo que possa haver divergência parcial – p.ex. filio-me aos que, com Dworkin, defendem que toda decisão deve ser proferida com base em argumentos de princípio –, a convergência é plena no ponto que ora interessa: “Aqui, calha trazer a lume um ensinamento do positivismo jurídico que, do ponto de vista teórico, consegue proteger os direitos de cidadãos sem recair na radical afirmação de que toda e qualquer decisão judicial deve ser baseada, somente, em argumentos de princípio. Trata-se do conceito de economia da confiança. Segundo Scott Shapiro, sistemas jurídicos não são apenas instituições planejadoras complexas destinadas a distribuir competência e autoridade. Sistemas jurídicos têm outra característica fundamental: o manejo de confiança dentro da extensa cadeia de oficiais do sistema que lidarão com a norma jurídica criada. Legisladores, ao promulgarem leis, estabelecem implícita ou explicitamente o grau de discricionariedade admitido no momento da interpretação dos textos legais. Em determinadas áreas, é possível que os legisladores entendam ser adequada para o ideal funcionamento das instituições sociais a atribuição de maior confiança no caráter e na competência dos magistrados e de outros oficiais encarregados de dar concretude à norma. Argumentos consequencialistas podem fazer parte do jogo decisório desde que estejam em consonância com a abertura admitida pela norma predecessora: em setores de direito econômico, direito concorrencial, direito empresarial, direito regulatório, direito falimentar, e assim por diante, geralmente fundamentos pragmáticos são legalmente válidos em razão da natureza da matéria tratada e dos efeitos econômicos envolvidos. Em outras áreas, todavia, o legislador opta por conferir menor ou quase nenhuma confiança à criatividade do aplicador do direito, de modo a preservar o aspecto objetivo e conservador da interpretação jurídica. Nessas hipóteses, a escolha legislativa é pelo entrincheiramento de direitos individuais mesmo quando confrontados com clamor público contrário ou mesmo quando sua preservação leve a consequências consideradas como injustas por parcela razoável da população. Note-se bem: a opção legislativa é realizada após o devido juízo de ponderação entre os interesses individuais e sociais conflitantes. Legisladores criam proteções a direitos individuais apenas depois de sopesarem os custos de deixarem à mercê de flutuações oportunistas a garantia de tais direitos com os custos que o entrincheiramento induz na proteção da segurança coletiva. Não é função do magistrado reponderar a solução entendida pelo Parlamento como a mais adequada. Leia-se: sob pena de violação à lógica do planejamento jurídico-constitucional, não cabe ao magistrado reabrir a controvérsia moral que ensejou, em um primeiro momento, a edição da própria norma jurídica garantidora de direitos: ‘a existência e conteúdo de um plano não podem ser determinados por fatos cuja existência o plano objetiva assentar’”. (os negritos são do original e o itálico são meus). O Ministro Barroso e a execução provisória da pena criminal (Parte 2 – Ativismo judicial como “reponderação”). In http://emporiododireito.com.br/o-ministro-barroso-e-a-execucao-provisoria-da-pena-criminal-parte-2-ativismo-judicial-como-reponderacao-por-bruno-torrano/. Acessado em 06.01.2017.
[9] Nem se argumente que medidas menos danosas que a prisão são aplicadas em respeito à regra da menor onerosidade (art. 805). Afinal, esta só entra em cena quando concorrem meios igualmente eficazes à satisfação do direito, o que não ocorre in casu. Definitivamente, o saber de experiência acumulado impõe concluir que nada constrange mais ao cumprimento do que a prisão – não por outro motivo se buscava (embora alguns ainda busquem…) estender a prisão civil para além do devedor de alimentos.
[10] A expressão é uma referência a este texto: http://www.conjur.com.br/2016-dez-22/senso-incomum-2016-ano-submissao-final-direito-vergonha-libertara. Acessado em 02.01.2016.
.
Diego Crevelin de Sousa é Especialista em Direito Processual Civil (Universidade Anhaguera-Uniderp). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor das Faculdades Integradas de Aracruz – FAACZ, ES. Advogado.
.
Imagem Ilustrativa do Post: Zwischen den Zeilen // Foto de: Tekke // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tekkebln/6970680322
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.